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sábado, 31 de outubro de 2015

AINDA QUE MAL, de Carlos Drummond de Andrade




Ainda que mal pergunte, 
ainda que mal respondas; 
ainda que mal te entenda, 
ainda que mal repitas; 
ainda que mal insista, 
ainda que mal desculpes; 
ainda que mal me exprima, 
ainda que mal me julgues; 
ainda que mal me mostre, 
ainda que mal me vejas; 
ainda que mal te encare, 
ainda que mal te furtes; 
ainda que mal te siga, 
ainda que mal te voltes; 
ainda que mal te ame, 
ainda que mal o saibas; 
ainda que mal te agarre, 
ainda que mal te mates; 
ainda assim te pergunto 
e me queimando em teu seio, 
me salvo e me dano: amor. 



Carlos Drummond de Andrade faria hoje 113 anos. Aniversário improvável, mesmo numa época em que a longevidade humana bate recordes. Escolhi este poema para o homenagear, em primeiro lugar porque gosto muito dele; depois porque o texto do poeta brasileiro demonstra como a repetição consegue criar beleza, ritmo e não menoriza o conteúdo.
Neste poema, Drummond de Andrade trabalha a partir da repetição duma expressão longa e nada poética – “ainda que mal” -, contudo, através dela aproxima-nos da poesia, revelando que as minudências do quotidiano também são elegíveis para a pena do poeta.
A repetição cria o ritmo acelerado de um diálogo inexistente para o escritor brasileiro revelar que a força do amor triunfa sobre um extensa lista de pequenas grandes contrariedades. A vida sempre esteve cheia de “emboras”, de “mas” e muitos “ainda que mal”, a questão é como reagir a eles. Com a força do amor, tudo parece mais fácil, porque sem ele, “ainda que bem” faça quase tudo, o resultado sabe sempre a derrota.

Há tantas maneiras e formas de amar que, ainda que “mal nos pareça”, emperramos a vida por culpa própria, querendo tirar os mas e os embora do caminho, quando eles estão lá, precisamente, para tornar mais saborosa a nossa vitória. 
Gabriel Vilas Boas



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

QUEM TEM MEDO DO HALLOWEEN?


Vivemos numa sociedade global. As tradições que seguimos já não são apenas aquelas que pertencem às nossas terras, aos nossos antepassados ou ao nosso país. Até porque nos tornamos muito mais críticos em relação a determinadas tradições, rejeitando algumas, deixando morrer outras, especialmente quando têm pouco que ver com os nossos valores.
Por outro lado, a vivência de qualquer tradição depende muito dos seus dinamizadores. E hoje a vida de uma tradição depende também do seu valor económico. É assim com o Natal (em detrimento da Páscoa), com o dia de São Valentim, com o Carnaval, com os Santos Populares.

O Halloween ou Dia das Bruxas ganhou o seu espaço porque é uma mina para o comércio, mas também porque se dirige aos mais jovens e ganhou raízes na Escola, através da disciplina de Inglês.
Não vejo nenhum mal nisso! Cada geração tem o direito a reconhecer-se em determinadas tradições e deixar no baú do esquecimento outras que pouco lhe dizem. Hoje ninguém censura o abandono da tradição taurina que Portugal teve muito arreigada durante grande parte do século XX. Não vejo porque censurar o Halloween apenas por ser uma tradição anglo-americana. As suas origens são celtas e sofreram ao longo dos séculos importantes variações, onde o pagão e o cristão se misturaram. Há, no entanto, um elemento nuclear nesta tradição, miscelânea de diversas origens: de uma maneira divertida, o ser humana quer enfrentar/afugentar a morte, espantá-la. É uma temática difícil de abordar junto dos jovens e esta festa, tão criticada por alguns por ser inglesa, acaba por fazer os jovens brincar com uma ideia que lhes podia parecer sinistra.

Claro que a Escola foi forte dinamizadora desta tradição, promovendo atividades, eventos, festas. Mas isso nunca me pareceu mal. Mostrou uma tradição estrangeira que o marketing americano espalhou pelo mundo, como a coca-cola espalhou o pai natal vestido de vermelho e a troca de prendas no Natal.
Gostaríamos que fossem as tradições portugueses a ter primazia? Que fosse colocadas em plano de relevância? Elas têm de valer por si e não apenas por serem portuguesas. Se os jovens não aderem a elas é porque deixaram de fazer sentido ou quem as dinamiza não as sabe promover. Mas nem sempre é assim. Por exemplo, na aldeia de Cidões, em Vinhais, que não tem mais de dezassete habitantes, são esperadas três mil pessoas durante este fim-de-semana para a festa da Cabra e do Canhoto. Com origens celtas, esta festa começa ao pô-do-sol do dia 31 de outubro e termina de madrugada com os rituais do acendimento da fogueira e a queima da cabra Matchorra num pote, com pão e vinho da terra.


O ambiente é animado por música e danças tradicionais celtas e inclui a tradicional queima do bode, através do qual o povo quer simbolizar a queima das coisas más, do azar, das sombras. Como dizem em Cidões “Quem da cabra comer e ao Canhoto se aquecer, um ano de sorte vai ter!”.
Este Halloween transmontano não se vende em lojas, não organiza bailes, mas atrai igualmente gente. Quando fazem sentido e são bem organizadas, as tradições não precisam de ter ciúmes umas das outras. Há espaço para todas e, além disso, nós pertencemos cada vez mais a um espaço cultural mais amplo.
Gabriel Vilas Boas


quinta-feira, 29 de outubro de 2015

AGAMÉMNON, de Ésquilo, no TNSJ


Agamémnon, tragédia escrita por Ésquilo, foi a segunda proposta que o encenador Tiago Rodrigues apresentou ao público do TNSJ, neste final de outubro maravilhoso para quem gosta de teatro clássico.
A tragédia do dramaturgo grego chama-se “Agamémnon”, mas o encenador fez de Clitemnestra o centro da ação trágica.
Esta é uma peça sobre a vingança, uma vingança sem remorsos e até com um certo prazer; uma vingança prometida dez anos antes, ou seja, no momento da partida dos gregos para Troia, quando Agamémnon decidiu sacrificar a inocente Ifigénia, sua filha e de Clitemnestra, para que os deuses enviassem os desejados ventos que pusessem os barcos a caminho de Troia.

Clitemnestra já tinha avisado em “Ifigénia” que não esqueceria a traição vergonhosa do marido e dez anos foi tempo suficiente para preparar toda uma vingança.
A peça de Agamémnon começa com um clima de falsa festa (os atores bebem champagne enquanto passeiam pelo palco), esse nevoeiro incessante, que Clitemnestra preparou para receber o grande triunfador de Troia.
Agamémnon pressente a desgraça latente e está inquieto, mas não adivinha toda a amplitude da vingança da esposa. Durante dez anos, esta traiu Agamémnon com Egisto, primo e um dos principais inimigos do rei de Argos; tratou sem amor os filhos de
Agamémnon, Electra e Orestes, e aguardou pacientemente dez anos para consumar a total vingança: enquanto Agamémnon tomava banho e se preparava para a festa, em honra da sua vitória troiana, Clitemnestra e Egisto desferem com a espada o golpe fatal em Agamémnon. Olhos nos olhos para que este morresse com a perfeita noção de que de uma vingança e humilhação se tratavam.

 Inúteis foram os avisos de Cassandra, escrava que Agamémnon trouxera de Troia, a quem Egisto lançara olhares desejosos, antes de consumar a posse do seu corpo à força e por fim lhe cortar a cabeça.
Inúteis foram os avisos de Electra, que um pai confuso não entendeu nem conseguiu enquadrar. 
Achei muito interessante o papel que Tiago Rodrigues reservou ao coro, investido de povo de Argos, que não sabia o que fazer nem o que dizer. Uma palavra os caracterizava e aproxima de nós: indecisão. Gritavam, clamavam, queriam fazer algo, mas não avisaram o seu rei da perfídia que contra ele se urdia nem impediriam que Egisto e Clitemnestra consumassem o assassínio. Achavam mal a vingança da rainha como tinham achado mal que Agamémnon tivesse sacrificado a inocente Ifigénia dez anos antes. Na indecisão, deixaram o crime acontecer. Próprio de pessoas fracas, ainda propuseram a Clitemnestra uma saída airosa: culpar Egisto. Ela recusou. Não era nenhum fantoche.

Clitemnestra assume inteiramente a felicidade que a vingança lhe traz. Não havia nada para lhe perdoar, porque ela havia decidido morrer às suas próprias mãos, morrer por Ifigénia. Como diz repetidamente ao longo da peça, ela ficara em Auris (local do sacrifício de Ifigénia), dez anos antes.
Esta peça tem de ser vista em relação direta com "Ifigénia" de Eurípides. A vingança de Clitemnestra é uma consequência natural de uma decisão pessoal, desumana, incompreensível, evitável e irracional de Agamémnon. Segue-se “Electra”, daqui a dois dias, para completar a trilogia.
Curiosa a maneira como Tiago Rodrigues decide a intervenção final do coro, que, na minha opinião, decalca a voz de muitos de nós, atualmente: “Alguém nos ouve?”
Claro que ninguém os ouviu nem nos ouve. Não fizeram (fazemos) nada! É por isso que ninguém nos ouve. Quando passarmos a fazer, passam a ouvir-nos. E a história será, certamente, diferente. Uma tragédia não é uma inevitabilidade divina!

Gabriel Vilas Boas

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

VERDADE E RECONCILIAÇÃO NA ÁFRICA DO SUL, 1988

       

Com o objetivo de transformar a África do Sul do apartheid na visão da Nação do Arco-Íris de Nelson Mandela, o bispo anglicano da cidade do Cabo, Dsmond Tutu, criou a Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) em 1995 para investigar muitos dos momentos mais sombrios que o país viveu entre 1960 e 1994. Imbuída de um espírito de reconciliação cristã, esta comissão propunha uma justiça regeneradora na qual as vítimas e as suas famílias ficariam cara a cara com aqueles que as tinham magoado. Em troca da revelação/confissão  total do envolvimento em atos de violência com motivações políticas e violações dos direitos humanos, as testemunhas não seriam processadas criminalmente.

A CVR pôs a nu pormenores de muitas atrocidades cometidas não só pelo sistema de segurança da minoria branca e por extremistas pró-apartheid como também por membros do Congresso Nacional Africano. No seu Prefácio ao meu muito aguardado Relatório, publicado a 28 de outubro de 1998, Desmond Tutu enfrentou os seus críticos e justificou o exercício como um elemento necessário à regeneração. Como tal e apesar dos seus erros, o Relatório continuou a ser um modelo para a resolução dos conflitos dentro da África do Sul.
Dada a relevância das palavras do bispo do Cabo, cito um trecho do famoso Prefácio.

«Foi-nos concedido um grande privilégio. Trata-se de um privilégio com elevados custos, mas que não desejaríamos trocar por nada deste mundo. Alguns de nós já viveram um stress pós-traumático e tornaram-se cada vez mais cientes de quão intensamente feridos fomos todos; de quão feridos e esgotados estamos todos. O apartheid afetou-nos a um nível muito mais profundo que alguma vez imaginaríamos. Nós, na Comissão temos sido um microcosmos da nossa sociedade, refletindo a sua alienação, suspeita e falta de confiança uns nos outros. As nossas primeiras reuniões na Comissão foram muito difíceis e cheias de tensão. Deus foi bom ao ajudar-nos a tornarmo-nos mais unidos. Talvez sejamos um sinal de esperança de que, se as pessoas com um passado mais hostil conseguem unir-se como nós, então existe na África do Sul a expectativa de que seremos capazes de nos unir. Estando feridos, somos chamados a curar.»

Desmond Tutu

terça-feira, 27 de outubro de 2015

FICAR A VER NAVIOS


A expressão ficar a ver navios significar ficar à espera do que não veio, que acabou por não acontecer, ou não se teve. Há mais que uma explicação, mas vejamos as duas mais reproduzidas.
Ficar a ver navios terá sido o que aconteceu aos que esperavam nos lugares mais altos da cidade de Lisboa, na esperança de ver regressar a casa o rei Dom Sebastião, pois só viram navios e nada de el-rei…
Ainda que possa ser esta uma boa explicação, aquela que está relacionada com as invasões francesas parece ser mais plausível e mais consensual. Conta-se que por altura das ditas invasões francesas, que levou à fuga da família real para o Brasil, em Novembro de 1807, as tropas napoleónicas caminharam decididamente para Lisboa a fim de tomar o poder. Nos dias que antecederam a partida da família real, a azáfama no cais de Belém assim como o espalhafato foram tremendos e inusitados.
Passageiros, bens e mantimentos foram carregados para os barcos e seguiu-se uma correria contra o tempo porque os franceses estavam a chegar e a família real tinha de partir. Dela faziam parte Dona Maria I, a rainha louca, que recusava aos gritos a abandonar os súbitos, cheia de vergonha de fugir.

Após várias versões, uma investigação mais recente de José Dantas, veio esclarecer que entre família real e nobreza terão sido quase quinhentas as pessoas que partiram para o Brasil, em dezasseis embarcações, sem contar com a armada inglesa que fez escolta. O povo que ficou em terra ainda viu os barcos durante dois dias na barra do rio Tejo, à espera que os ventos os empurrassem para o mar.

A 29 de novembro, as tropas francesas entraram em Lisboa, ainda a tempo de verem a corte portuguesa já a caminho do Rio de Janeiro, a nova capital do reino. Os homens comandados pelo general Junot ficaram assim, literalmente, a ver navios!

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

NO BAIRRO DO AMOR, de Jorge Palma




“NO BAIRRO DO AMOR” de Jorge Palma é uma das mais belas canções sobre a fraternidade e a utopia. O ano passado, Jorge Palma andou em digressão pelo país recordando toda a poesia e filosofia de um dos álbuns mais marcantes da música portuguesa do final do século XX.
Apesar de sonhadora, a letra está bem consciente da realidade. A realidade é feita de solidão, de um mundo a preto e branco, onde cada um anda cheio “de nódoas negras sentimentais”. A única diferença é que Jorge Palma propõe um regresso à infância, esse lugar mágico, verdadeiro e real onde há um “carrossel” e podemos pintar um bairro sem sofrimento, dor, crimes, infelicidades.

Parece uma ideia infantil mas não é. Jorge Palma diz que se pode concretizar com a única força motriz que move os adultos: o Amor.
Reparemos, no entanto, que Palma apresenta o Amor como algo inclusivo, por isso sugere a ideia de bairro, de comunidade, de vizinhança. Esconde aquela visão exclusivista, de constante escolha com que a modernidade vive o amor. Como tivéssemos sempre que estar a optar, como se o Amor não tivesse múltiplas formas de se manifestar. E tem! E não precisámos de chegar à idade da sabedoria para o descobrir. É possível fazer isso em todas as idades, desde que percebamos que Amar é primeiro dar e só depois receber. Mas não é uma troca, um negócio.

Há vinte e cinco anos, Jorge adivinhava que o “Bairro do Amor” seria um local marginal, apesar do carrossel, apesar de ser desenhado a lápis de cor, apesar de nele não haver problemas. É curioso pensar na força da solidão. Cada vez mais acho que não tem que ver com a ausência de pessoas, nem de pessoas que pensem como nós ou de pessoas que sofram como nós.
A solidão é feita dos nossos medos, dos nossos egoísmos, da nossa ambição em viver em condomínios fechados.
Talvez os bairros nunca mais voltem a ser o que foram, talvez o “Bairro do Amor” nunca consiga sair do papel, o certo é que a música de Jorge Palma acende um clarão na imensa e triste solidão em que vivemos e com ela a vida volta a ter a magia do carrossel.
Gabriel Vilas Boas


domingo, 25 de outubro de 2015

SACRIFÍCIO



Sacrifício, sacrifício, sacrifício,
Quase sempre uma opção
Quando a forte ambição
Desejava maior benefício.

Culpavam-se os deuses,
Culpava-se o destino,
Mas era o humano desatino
Que propunha troca interesseira
Vergonha da humanidade inteira.

Ganhámos o habito do negócio,
Mas perdemos a dimensão
Do lucro e do prejuízo.
Criámos uma mentalidade,
Uma razão sem razão,
Que se impôs como verdade
Que não oferecia contestação.

O Sacrifício faz parte da vida,
Mas não é a própria vida,
Porque assim a negaria.
Quase sempre um escolha,
Deixamo-lo ser dominador
Encher a nossa vida de dor,
Como quem se encolhe
Num medo absurdo
Do Futuro.

Chamam-lhe responsabilidade,
Recusa de egocentrismo…
Não será antes conformismo
Disfarçado de inevitabilidade?

Tantas vezes uma pacto suicida,
Que fizemos com os deuses,
Com os outros ou com a vida.
Se não o conseguirmos vencer
Tornar-se-á castigo sem crime,
Verdadeiro desperdício sublime,
De tempo e vidas deitadas a perder.

Gabriel Vilas Boas

sábado, 24 de outubro de 2015

IFIGÉNIA, de Eurípedes no TNSJ


Durante 10 dias, o dramaturgo e encenador Tiago Rodrigues traz ao Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, três extraordinárias tragédias – Ifigénia, Agamémnon, Electra – que nos permitem o reencontro, há muito ansiado por mim, com os grandes autores clássicos, especialmente os gregos.
Apenas um único senão: somente oito apresentações, no Porto, para estas três magníficas peças, é pouquíssimo, para todo o público do norte que gosta de teatro. Fui à estreia, na passada quinta-feira. A sala estava quase repleta e entre a plateia muita gente ligada ao mundo da representação: Lúcia Moniz, Mariana Pacheco, António Capelo, entre vários outros.


 Tiago Rodrigues e o seu magnífico elenco reinventou Ifigénia de Eurípides, dialogando com a extraordinária tragédia do dramaturgo grego e colocando-nos perante uma série de questões que a própria tragédia Ifigénia evoca.
Para perceber esta tragédia, temos de recuar a Helena (aquela que foi de Troia mas antes tinha sido dos gregos), cujo rapto ou a fuga ativou o cumprimentou de uma promessa que o pai de Helena fez jurar a todos seus pretendentes: se ela fosse raptada, todos os chefes gregos se deviam empenhar no seu resgate. Menelau exigiu ao rei dos gregos e seu irmão, Agamémnon, o cumprimento dessa promessa, mas não havia vento que permitisse que os barcos gregos partisse para Troia. Para que os deuses trouxessem o vento, um sacrifício se reclamava: Ifigénia, filha de Agamémnon e Clitemnestra tinha de ser imolada. O rei de Troia concordou, mas o seu coração de pai estremeceu e ele quis voltar com a palavra a traz, no entanto, acabou por ceder e sacrificar a sua própria filha.

Toda a peça gira em torno deste drama pessoal de Agamémnon. Um sacrifício pessoal em nome de um bem comum. Agamémnon debate-se com um dilema terrível, até porque era pressionado por Menelau, por Ulisses, pelos gregos e depois, por Clitemnestra, por Ifigénia e, sobretudo, pela sua consciência, pelo seu amor de pai.
Podia parecer que a grande culpada de tudo aquilo era Helena. Aquela que foi raptada ou se deixou raptar. Mas Helena não era mais do que uma ideia do passado, que naquele momento do drama de Agamémnon e Ifigénia já não estava presente. Podemos dizer que é ela a raiz dos problemas, mas ela está ausente, nada decide. O que decidiu o sacrifício de Ifigénia foi outra coisa que não Helena: a defesa da honra dos gregos, o exemplo de sacrifício que Agamémnon devia dar em prol do país. Com muito bem notou o encenador Tiago Rodrigues numa entrevista dada em agosto passado, “no fundo nós sabemos que o que move os humanos é outra coisa. São precisas ideias para justificar a ação.”

E a verdade é que Agamémnon não se consegue justificar à esposa que por acaso também era irmã de Helena. Mas, para ela, Helena era só uma ideia tal como é apenas uma ideia que as tragédias têm de acabar mal ou são de confiança. Para ela não havia como perdoar o marido, não havia nada que entender nem seria possível esquecer. Isabel Abreu esteve muito bem no papel de Clitemnestra. Emprestou à personagem a força da razão de um coração de mãe, vergastou Agamémnon, destruindo todos os seus argumentos, especialmente aquele que se refere ao destino e à culpa, tão associados às tragédias.
Miguel Borges, na difícil pele de Agamémnon, também teve uma atuação digna de nota, ao exibir toda a fragilidade de um náufrago, que se perdeu no labirinto da sua consciência e do seu dever. Derrotado aos pontos por um coro de mulheres zangadas que faziam o papel do público e lhe questionavam as decisões e as indecisões, contestando também os fundamentos da própria tragédia, como se ela trouxesse um guião pré-definido que não pode ser alterado. Mas pode…é o momento em que os humanos desafiam os deuses, outros dirão que é apenas o momento em que os Homem se desafia.

Gabriel Vilas Boas

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PROPOSTA INDECENTE


Há pouco mais de uma semana, Merkel reuniu os seus parceiros europeus para lhes falar seriamente sobre o problema dos refugiados sírios na europa. Na sala instalou-se o silêncio dos cobardes. A chanceler queria saber quem estava disposto a receber refugiados e quanto estavam dispostos a contribuir para tamanha empresa humanitária. O incómodo sucedeu-se ao silêncio.

Verdadeiramente ninguém quer receber dos sírios nem está interessado em gastar mais de um punhado de euros para a sua salvação. Merkel deve ter pensado lá com os seus botões “O monstro que eu criei!”. E, realmente, este monstro de insensibilidade, arrogância e desumanidade, que se chama europa, cresce de uma forma assustadora.
Como sempre acontece no reino do fingimento e das conveniências, em que se tornaram as relações entre os países desenvolvidos, há sempre uma solução clean para qualquer problema. Os burocratas de Bruxelas já propuseram e Merkel teve de aceitar, a maioria dos Presidentes da EU até suspirou de alívio e o primeiro-ministro deve ter sorrido à Estaline: o problema dos migrantes resolve-se através da Turquia. A proposta é simples: os turcos ficam com os dois milhões de refugiados sírios nas suas fronteiras, servindo de estado-tampão à sua entrada na europa dos pseudo ricos e em os turcos trocam recebem três mil milhões de euros, ou seja, seis vezes mais do que aquilo que se pensava gastar com todo este problema dos refugiados. 


No entanto, o mais interessante da proposta da União Europeia à Turquia está na vontade da UE em acelerar o processo de integração turca na UE, passando por cima de todas as desconfianças em relação à qualidade da democracia da Turquia e da defesa dos direitos humanos. Para começar, a europa dará 75 mil vistos aos turcos para estes poderem, desde já, entrar livremente no espaço europeu, quando ainda há poucos meses isso estava fora de questão por questões de segurança.
Ao que parece os turcos já não são perigosos, já se tornaram em verdadeiros democratas, já não chacinaram os curdos, deixaram de ser uma ameaça islâmica e Erdogan deixou de ser o agente duplo que Berlim e Paris tanto temiam.
A proposta que a UE fez à Turquia é indecente, indecorosa, imoral. Humilha a europa antes de humilhar os sírios e traduz polidamente aquela triste frase que o primeiro-ministro inglês, David Cameron, quando comparou a vaga de emigrantes ilegais que tentavam entrar no Reino Unido a uma praga de mosquitos que urgia afastar para bem longe.

Acredito, sinceramente, que a Alemanha estivesse disposta a receber quase um milhão de migrantes e que também estivesse disposta a custear grande parte das despesas, mas Merkel sempre foi, antes de tudo, uma pragmática que privilegia a eficácia. Por isso foi a Ancara falar com o primeiro-ministro turco e apresentar-lhe uma proposta indecente dos valores em que a europa, em que me revejo, se fundou: democracia, solidariedade, humanidade.
Erdogan deve aceitar, acrescentado ainda mais uma quantas exigências para disfarçar o seu contentamento. Depois sorrirá como Estaline o fez em Yalta, quando Churchill sarrabiscou um esboço de uma europa dividida em dois grandes blocos políticos, dando o pontapé de saída para uma guerra gelada de quarenta anos.
Felizmente, agora a História demora menos tempo a acertar contas com estas figurinhas armadas em figurões.

Gabriel Vilas Boas

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

VÉNUS PEDINDO A VULCANO A ARMADURA PARA ENEIAS, de Boucher


Eneias, o troiano, o herói da Eneida de Vergílio, estava destinado a desembarcar em Itália e tornar-se antepassado dos romanos. À sua chegada, foi encarregue de uma série de guerras instigado por Juno, que levaram a sua mãe, Vénus, a vir em sua ajuda.
A pintura de Boucher (1732) mostra uma Vénus galanteadora e quase nua, deusa da beleza e do Amor, sentada numa nuvem rodeada de cisnes e de gansos – dois dos seus atributos. Está a olhar para o marido, Vulcano, e a pedir-lhe uma armadura especial para o seu filho.
Boucher, pintor principal do rei Luís XV de França, foi muito criticado por ser demasiado comodista e não pintar nada mais sério do que putti, ninfas e mulheres semi-nuas. No entanto, este estilo despreocupado e até um pouco frívolo, típico do Rococó, era o ideal para pinturas, decorações, tapeçarias e cenários da corte do rei.
O elemento-chave desta pintura de Boucher é Vulcano, deus do Fogo que preside sobre a forja. Vulcano é o patrono dos metalúrgicos e foi ele que fabricou os famosos raios de Júpiter, no entanto foi expulso do Olimpo quando tentou libertar a mãe que Júpiter acorrentara como castigo.
Desterrado na ilha de Lemnos na Grécia, onde construiu um palácio para si e instalou forjas, que seriam os vulcões da Terra. Os Ciclópes (gigantes com um só olho) eram os seus assistentes. Infelizmente ele partiu a perna na sua queda para a Terra e ficou coxo para sempre. Enfim, Vénus era casada com um coxo…
Vulcano criou muitas obras de arte engenhosas, tanto para os deuses como para os mortais a pedido dos seus pares, incluindo os famosos escudos, magnificamente decorados, um para Aquiles e outro para Eneias. Também produziu uma armadura completa para Júpiter, que prometeu a Vulcano aquilo que ele desejasse como recompensa. Vulcano pediu a casta Minerva mas, incapaz de a violar, derramou a sua semente na Terra, ato do qual nasceu Erictónio.
Vulcano acabou por desposar Vénus, que lhe era permanentemente infiel. Também passar de uma Minerva a uma Véus é como ir de um extremo ao outro da fogacidade feminina do Olimpo, mas Vulcano não deve ter refletido sobre isso. No entanto, Vulcano era muito esperto. Ficou célebre a história  que descreve como ele concebeu uma rede invisível, onde apanhou a sua  Vénus a ser-lhe infiel com Marte. Quando o casal de amantes foi surpreendido num abraço de paixão, Vulcano expô-los aos restantes deuses que, para tristeza de Vulcano, se divertiram bastante com a desventura de Vulcano em vez de mostrar indignação com a atitude de Vénus. Mercúrico chegou mesmo a escarnecer do deus do Fogo, dizendo que gostaria de estar no lugar de Marte.

Na pintura, a deformidade de Vulcano é normalmente visível e muitas vezes aparece semi-nu e desgrenhado trabalhando na sua forja. Outras vezes é mostrada a bater metal na bigorna com um martelo ou a segurar um raio com as tenazes. Doutras vezes pode estar ainda a soprar as chamas, de rosto enegrecido pelo fumo. De forma apropriada, muitas vezes, aparece por cima das lareiras, como acontece na pintura de Peruzzi, Vulcano Na Sua Forja.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A BATALHA DE TRAFALGAR, 1805



«Sua Senhoria veio ter comigo à popa, e depois de ordenar o envio de certos sinais, por volta de um quarto para o meio-dia, disse: “Senhor Pasco, quero transmitir à armada que A INGLATERRA TEM CONFIANÇA QUE TODOS CUMPRIRÃO O SEU DEVER.” E acrescentou: “Tem de ser rápido, pois tenho mais um a enviar, que não pode demorar.” Respondi: “Se vossa senhoria me permitir que substitua confiança por expectativa, o sinal será enviado em breve porque o termo expectativa, consta do vocabulário, e o termo confiança tem de ser soletrado.” Sua Senhoria respondeu à pressa e com aparente satisfação: “Pode ser, Pasco, faça isso já.” – John Pasco, Sinaleiro, Hms Victory, 1805.

As célebres palavras de encorajamento do Vice-almirante Lord Nelson à sua armada, transmitidas no recém-introduzido sistema de sinalização por telégrafo, foram seguidas pelas suas igualmente famosas: «Envolvam mais o inimigo», quando comandava a primeira das duas linhas britânicas num ataque pela direita ao centro da linha franco-espanhola.
A sua tática, destinada a dispersar a armada inimiga e a tirar partido do seu poder de fogo superior, alterou os pressupostos tradicionais em relação à guerra naval e transformou a napoleónica batalha naval de Trafalgar, perto de Gibraltar, numa série de combates individuais.  

A nau capitaneada por Nelson, HMS Victory, envolveu-se numa luta cerrada com o segundo navio da linha francesa, o Redoutable. Quando os navios se embrenharam na luta, Lorde Nelson foi atingido na espinha por um tirador empoleirado no cordame francês. Transportado para baixo, a sua morte tornou-se lendária.
Entre as suas últimas palavras, tal como contou o cirurgião de bordo William Beattie, contam-se um apelo a favor da sua amante Emma Hamilton (“Tomem conta da pobre Lady Hamilton”). Já as suas derradeiras palavras foram sobre a sua vida na Royal Navy: «Graças a Deus, cumpri o meu dever.»

O corpo de Lord Nelson regressou a Inglaterra para o funeral, e a sua reputação como herói, que garantira o domínio naval britânico durante um século, consolidou-se de forma definitiva e até lendária.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

DAR-LHE UM AMOK


O que significa esta expressão? Algo parecido com “Passar-se da marmita”, mas se calhar ficamos na mesma.
Amok é uma síndrome (conjunto de sinais e sintomas que caracterizam determinada condição ou doença) psiquiátrica, que consiste numa súbita e espontânea explosão de raiva numa pessoa.

O nome surgiu a partir do termo malaio “meng-âmok”, que significa «atacar e matar com ira cega», e referia-se a uma forma de loucura passageira, em que uma pessoa mata outros indivíduos. Os malaios, assim como os indonésios, relacionavam o termo e o comportamento com questões espirituais. Acreditavam que o amok era provocado pelo espírito mau de um tigre que entrava no corpo de alguém e provocava a reação agressiva.

A palavra está associada a um fenómeno ancestral e sociocultural da Malásia: uma pessoa, quase sempre homem, sem historial de violência, agarra numa arma, tenta matar várias pessoas e depois comete suicídio. Já em 1770, o explorador James Cook descreveu casos semelhantes deste comportamento violento de pessoas malaias que, segundo os seus relatos, matavam pessoas um pouco à sorte.

Entre os vários psiquiatras que aplicam o termo amok a atitudes explosivas e violentas, está o psiquiatra americano Joseph Westermeyer. O clínico usou o termo para se referir a um ataque no Laos, em 1972, como um exemplo desta síndrome, que está classificada oficialmente como condição psiquiátrica desde 1849.
Os contornos de um ataque destes são muito semelhantes aos dos massacres contemporâneos, se pensarmos, por exemplo, nos casos de jovens ou adultos que entram armados em escolas e disparam indiscriminadamente. O massacre no liceu de Columbe, nos EUA, em 1999, é um dos mais conhecidos.

No entanto, o significado violento da palavra amok foi sendo amenizado ao longo dos anos. Hoje em dia, usamos a expressão para nos referimos a alguém que teve uma reação mais intempestiva, imprevisível, ou a uma situação de confusão. Todavia sem a carga dramática e trágica que ela tem sobre o seu sentido original.