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terça-feira, 30 de setembro de 2014

BERNARDO SANTARENO



                A literatura portuguesa é conhecida pelos seus poetas, pelos seus romancistas ou contistas, mas pouco pelos seus dramaturgos. Apesar de Gil Vicente ou Almeida Garrett, a dramaturgia tradicional é pouco expressiva e muito menos conhecida. No entanto, o século XX produziu um excelente dramaturgo – Bernardo Santareno.
                Bernardo Santareno não é outro senão o médico e escalabitano António Martinho do Rosário, que dedicou cerca de metade da sua vida à escrita. Curiosamente, não se iniciou pelo drama. Seguindo a tradição nacional, começou por publicar poemas e depois romances, mas após três anos de escrita errante, rendeu-se ao modo literário que consagrou o mestre Gil. Durante vinte e cinco anos, publicou várias peças, entre as quais ganha especial destaque O Judeu, que chegou a ser objeto de estudo pelos alunos de 12º ano.
          A obra dramática de Bernardo Santareno reflete as suas vivências enquanto médico, as suas experiências numa expedição de bacalhoeiros ao Mar do Norte, a luta pessoal que travou contra a discriminação política, moral, social e sexual de que foi alvo (Bernardo era um assumido homossexual). Bernardo Santareno era um homem de esquerda, que lutou contra o longo inverno totalitário, que constituiu o Estado Novo de Oliveira Salazar, durante quatro décadas.
           
     Na sua obra podemos vislumbrar claramente dois períodos. O primeiro, entre 1957 e 1965, mostra um escritor apostado em defender o direito à diferença, à dignidade humana perante todas as formas de opressão e preconceito moral e social. São deste tempo obras como: A Promessa, O Bailarino, A Excomungada, O Lugre, O Crime da Aldeia Velha.
    Com o célebre O Judeu ( 1966), o escritor       santareno inicia um segunda fase da sua obra de que também fazem parte textos relevantes como: A Traição do Padre Martinho, Os Marginais e a Revolução, onde o mais importante dramaturgo do século XX assume um papel mais ativo na procura da queda do regime fascista e tenta intervir ativamente na transformação social em curso com a Revolução de Abril.
  O Judeu, a sua peça mais conhecida e emblemática é profundamente icónica e metafórica.
    Organizada em três atos, retrata a via-sacra do dramaturgo setecentista António José da Silva, que pagou com a própria vida, o facto de ser judeu e de gostar de escrever peças satíricas que muito incomodavam a velha igreja ortodoxa, em 1739, numa fogueira inquisitorial.
               
Com esta peça, Bernardo Santareno pretendia mostrar a proximidade entre os valores e as crenças dos tempos dos autos de fé e os tempos do Estado Novo. Há mesmo semelhanças linguísticas e físicas entre o ditador Oliveira Salazar e algumas personagens de O Judeu como o Inquisidor-Mor. Na peça de Bernardo Santareno podemos observar a referência à PIDE através do Estudante Pálido. Quando este olha de uma forma cruel e impressiva para António José da Silva a comparação entre o terror da repressão salazarista e a inquisição é por demais evidente.
No final da peça, a personagem Cavaleiro de Oliveira (uma espécie de coro grego na sua função de narrador-comentador) grita “iluminai o povo de Portugal”.
Portugal atingiu a democracia, a liberdade e a tolerância mas continua a precisar (e muito) que lhe iluminem o caminho. E descobrir a obra dramática de Bernardo Santareno é um bom começo.

Gabriel Vilas Boas    

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

AO SOM DE... JORGE PEIXINHO


Jorge Peixinho foi para além de um grande compositor do século XX português, um músico completo, na medida em que compunha, interpretava, dirigia, analisava e ainda divulgava, não só a sua música como a de outros compositores seus contemporâneos. Era também um professor que transmitia o conhecimento com um entusiasmo tão cativante, que estimulava qualquer aluno a compor. Era um cidadão íntegro e exemplar que lutava pelos ideais em que acreditava com uma grande sinceridade, honestidade e espontaneidade, qualidades que nem sempre agradavam aos que estavam em posições de chefia e que por isso causaram alguns dissabores a Jorge Peixinho que dizia sempre aquilo que pensava e lhe ia na alma estivesse onde estivesse. Era também um amigo que ia com os seus alunos a concertos, aos Encontros de Música Contemporânea na Gulbenkian e depois recebia esses jovens em sua casa para continuarem a discussão sobre aquilo que tinham acabado de ouvir e também para dar conta dos seus projetos e do que se estava a produzir em termos musicais na restante Europa e no mundo.
Jorge Peixinho foi sempre um homem de esquerda. Antes da revolução de abril foi perseguido por dizer em alta voz o que pensava e depois manteve uma participação cívica ativa tendo sido membro da assembleia municipal do Montijo, eleito pela CDU.

Jorge Peixinho com três discípulos na sua casa, na Rua de S. Bento, em Lisboa. Um deles haveria de ser compositor, Eduardo Luís Patriarca.
Iniciou a sua  vida musical aos seis anos quando começou a ter aulas de piano com uma tia, no Montijo, sua terra natal, onde nasceu em 1940. Prosseguiu os estudos de piano e composição no Conservatório de Música de Lisboa, terminando em 1958 o Curso Superior de Piano. Em 1959 partiu para Roma, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e com a finalidade de aperfeiçoar os estudos em composição. Aí permaneceu por dois anos, tomando contacto com o atonalismo serial, o dodecafonismo e o cromatismo que passa a utilizar nas suas composições. Foi em Roma que teve o primeiro contacto com a música de Schoenberg e de Webern que em Lisboa não se ouvia. Estudou com Boris Perena e Goffredo Petrassi na Academia de Santa Cecília em Roma, obtendo o diploma de aperfeiçoamento em Composição. Posteriormente, trabalhou com Luigi Nono em Veneza e com Pierre Boulez e Stockausen na Academia de Música de Basileia. Participou também em diversos Cursos Internacionais de Darmstadt e fez um sério trabalho de pesquisa em música electrónica em Gante, na Bélgica. Este contacto com as novas tendências musicais europeias influenciou as suas composições, tornando-o um inovador e o introdutor da chamada música de vanguarda em Portugal. Em 1970 fundou, juntamente com alguns músicos portugueses, o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, que dirigiu até à sua morte em 1995. Participou em inúmeros festivais e eventos de música contemporânea em diversos países divulgando obras de compositores como Constança Capdeville, Emanuel Nunes, Clotilde Rosa e outros.
Produziu uma vasta e diversificada obra, muita dela gravada em CD. Para audição, proponho uma das suas últimas obras, o Concerto para Harpa e Conjunto Instrumental, interpretado pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa.
Margarida Assis

domingo, 28 de setembro de 2014

A EDUCAÇÃO É COMO O ALGODÃO: NÃO ENGANA


Há uns anos, um certo correspondente do jornal espanhol “El País” dizia que tinha uma certa dificuldade em justificar ao seu chefe o pouco que escrevia sobre Portugal, porque na verdade grande parte do que se passava no nosso país era virtual ou não passava de ameaças de acontecimentos. Quando a semana começava, uma série de proto acontecimentos prometiam muita ação, mas quando ele se preparava para escrever o resumo da semana para o seu jornal via que tinha muito pouco de real para escrever. As promessas dos ministros não passavam disso, semana após semana; as tricas de baixa política sucediam-se mas eram tão enfastiantes e repetitivas que nem aos espanhóis interessariam e não havia, de todo, factos relevantes na economia, sociedade ou cultura a assinalar.
O jornalista temia seriamente pelo seu emprego como eu hoje temi pelo tema da minha crónica. Não vos queria sobrecarregar com a via-sacra do senhor Passos que continua irrevogavelmente com o seu governo ainda que para isso tenho de usar o mais velho truque socrático da História. Não me entusiasmam aquelas eleições partidárias abertas ao povo onde um chora o oportunismo do outro e ambos se acusam de falta de carácter. Não há melhor carta de recomendação para quem já se vê a governar o país daqui por uns meses. Podia discorrer sobre o aniversário do mais titulado clube português dos últimos quarenta anos, não fosse o caso dos dirigentes desse clube, há uns anos, terem “antecipado” a data da sua fundação em treze anos. Como não fiquei convencido da fundamentação “científica” deixei de saber ao certo quando nasceu e perdi a vontade de me referir ao evento.

Entretanto, numa folha anónima de jornal tropeço no nome de Pasteur, o químico e bacteriologista francês do século XIX que morreu num triste dia de setembro igualzinho ao de hoje.
 Foi ele que solucionou o problema dos produtores de vinhos e cervejas franceses que não conseguiam perceber porque os seus produtos azedavam. Pasteur descobriu que a acidificação do vinho ocorria devida à presença de micro-organismos vivos que se encontravam no ar e por isso propôs o aquecimento do vinho lentamente a temperaturas até 60ºC para matar as batérias. Depois o líquido devia ser fechado hermeticamente em cubas para evitar nova contaminação. Estava criado o famoso processo de pasteurização dos alimentos. Este processo foi poucos anos mais tarde aplicado ao leite e contribuiu muito para a segurança alimentar deste alimento essencial. Quando hoje falamos de “leite pasteurizado” falamos, obviamente, dele. Não poderia haveria melhor maneira de o imortalizar.
A teoria de Pasteur foi aplicada na medicina que passou a ferver os instrumentos usados em procedimentos médicos e cirúrgicos. Pasteur investigou também os microscópicos agentes patogénicos e descobriu a vacina contra a raiva.
No campo da Química, Pasteur notabilizou-se por ter descoberto a base molecular para a assimetria de certos cristais.

                Era de homens como Pasteur, mas nascidos em Portugal, que eu gostaria de “falar”. Eles têm sempre algo a ensinar. Neles há sempre algo de bom para a sociedade e as suas propostas não são faits-divers de trazer por casa. Com eles nenhum jornalista perde o emprego nem o cronista deixa de ter assunto. Eles são os heróis que contam, aqueles que vêm nas enciclopédias e nos livros de História. Vão-se fazendo algumas espécies nas universidades, nos institutos de investigação, nos laboratórios de países que apostam seriamente numa coisa que se chama Educação.    

Gabriel Vilas Boas

sábado, 27 de setembro de 2014

GEORGE CLOONEY, WHAT ELSE?


          George Clooney, o homem de quem se fala por estes dias nos meandros cinematográficos, chegou ao mundo do cinema com vinte e cinco anos, mas a sua carreira começou duma maneira titubeante. Os primeiros aplausos surgiram através duma série – Serviço de Urgência – entre 1994 e 1999, em que o ator norte-americano fazia o papel do médico Doug Ross.
Com esse desempenho, Hollywood convenceu-se das capacidades cinéfilas do ator e começaram a aparecer convites para filmes com maior fulgor. O realizador Steven Soderbergh teve um papel decisivo na afirmação de Clooney, pois os dois trabalharam em parceria durante uma década (1998 -2007), década durante a qual George Clooney conquistou grande parte da reputação de ator de que hoje goza e lançou-se igualmente na realização e produção de filmes.

Foi neste período que Clooney ganhou o seu único óscar enquanto ator com o seu desempenho no filme “Syrianna” (2005) e se estreiou enquanto realizador com "Boa Noite e Boa sorte” (2005), onde também participou como ator. Foi uma década de ouro na carreira do ator americano, já que assinou atuações bem conseguidas em “Três Reis” (1999), “Irmão, onde estás?" (2000), “Ocean’s 12” (2004) e “Ocean’s 13” (2007).
 

O sucesso voltaria em 2011, através da realização de “Nos Idos de Março”, onde Clooney aliou à produção a escrita do argumento adaptado. O filme retrata os sujos meandros da política americana e os diversos jogos de poder que rodeiam a candidatura dum político a primeira escolha do Partido Democrático para a posterior candidatura a Presidente dos EUA.
Ainda em 2011, Clooney participou ativamente no filme “Os Descendentes”, com que ganhou o globo de ouro e uma nomeação para Óscar, na categoria de melhor ator.
O ano seguinte trouxe-o de novo para a ribalta com a produção de“Argo”, vencedor do Óscar de Melhor Filme. O ano de 2013, revelou mais uma boa atuação de Clooney, desta vez em Gravidade”, que embora não tenha arrebatado nenhum prémio ganhou a consideração do público.

Hoje, o galã dos ecrãs, o eterno sedutor decidiu-se finalmente a casar. A escolhida é a advogada dos direitos humanos Amal Alamuddin, na romântica Veneza. A fina flor do jet-set mundial esteve presente para felicitar o casal e brindar à sua felicidade.
Embora longe, sempre podemos tirar um nespresso e erguer um sorriso ao ator. What else?


Gabriel Vilas Boas

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

ÓPERA DE SIDNEY



A Ópera de Sydney é um dos edifícios mais espetaculares e deslumbrantes com que a arquitetura moderna presenteou a humanidade.
Situado numa das cidades mais importantes da Austrália, Sidney, teve uma construção polémica, longa e muito dispendiosa. No entanto, é inquestionável que se trata duma obra maravilhosa e imponente, digna de ser vista e apreciada quer do exterior quer do interior.
Em 1957, o jovem arquiteto dinamarquês Jørn Utzon, de apenas 38 anos, ganhou o concurso internacional para a Ópera de Sidney, entre mais de duzentos projetos concorrentes. Dois anos mais tarde começou a trabalhar no seu projeto com o arquiteto anglo-dinamarquês Ove Arup. A obra sofreu vários contratempos, os custos dispararam e a polémica instalou-se entre os arquitetos e o cliente da obra, o governo australiano. Mesmo para um país riquíssimo como a Austrália, uma derrapagem de mil por cento era demasiado. Como essas divergências fossem insanáveis, Utzon abandonou a direção da obra em 1966, mas esta não caiu e acabou por ser concluída sete anos mais tarde, em 1973, no dia 20 de outubro.
A construção tem a forma de barco, o que não é alheio ao local onde se situa: o porto de Sidney, um dos mais belos de todo o mundo.
O edifício impõe-se pela beleza arquitetónica, pela extraordinária acústica e pela localização – na Ponta de Bennelong.
Jorn Utzon insere-se na terceira geração de arquitetos modernistas. O objetivo que subjaz a esta corrente de pensamento é a procura do excecional, o que leva à criação de megaestruturas, usando materiais modernos. Estilisticamente, Utzon procurou o movimento, a curva e rejeitou por completo a ortogonalidade.

Muito influenciado por Gaudí, o arquiteto dinamarquês criou o impossível ao fundir a extraordinária beleza do espaço com a tecnologia, junto à água. A cobertura do edifício foi concebida em grandes calotes formadas por nervuras em betão prefabricado, revistido a grés cerâmico, baço ou brilhante, criando um jogo de reflexos, tal como a água. Interiormente não apresenta correspondência formal com o exterior.
Interiormente, a ópera de Sidney tem cerca de 1000 divisões, entre as quais se destacam cinco teatros, cinco estúdios de ensaio, dois auditórios, uma biblioteca, algumas galerias de exposições, quatro restaurantes, seis bares e várias lojas de recordações.
Desde a sua inauguração há 41 anos tem abrigado as mais memoráveis atuações artísticas. Consoante se toque, dentro das suas portas, uma sonata de Beethoven ou uma ópera de Verdi, assim se escolhem as cores que, cá fora, a iluminam. E desse modo se reflete a sua imagem no mar que fica em frente.

O seu maior auditório, o Concert Hall, tem capacidade para 2690 pessoas sentadas.  Se um dia forem a Sidney não deixem de ocupar um desses lugares por um par de horas. Qualquer concerto ganha uma dimensão superlativa quando interpretado num espaço tão magnífico.

Gabriel Vilas Boas


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

«O BAILE NO MOULIN DE LA GALETTE», DE RENOIR


"O Baile no Moulin de la Galette" é uma das pinturas mais famosas do grande August Renoir. Trata-se dum óleo sobre tela, datado de 1876, onde o pintor francês quis mostrar uma multidão animada a divertir-se num recinto de baile, em Paris, conhecido por «Moulin de la Galete».

Renoir fez inúmeras visitas ao local do baile, para desenhar esboços da pista de dança ao ar livre e planificar o seu quadro. Ele queria mostrar o melhor do lugar, com toda aquela gente vestida com as suas roupas mais requintadas.
As pinceladas leves e delicadas do pintor contribuem para que tudo pareça belo e harmonioso. As cores garridas e o traço difuso faziam com que esta tela parecesse às pessoas algo berrante e por acabar. Contudo, para Renoir, tratava-se de captar uma perceção instantânea de luz e de movimento.
Um olhar mais atento sobre o quadro permite observar como o chão resplandece de luz e cor. O chão ofusca pelo branco usado e mesmo as sombras estão pintadas em azul em vez de branco.
Devemos também notar a maneira hábil como Renoir dispõe as figuras no quadro. Numa primeira impressão, podemos concluir que se trata duma “fotografia” casual, mas, na realidade, todos os presentes foram cuidadosamente dispostos na tela, deixando a maior parte dos amigos do pintor de frente para o observador do quadro. Deste modo, podemos analisar as várias emoções dos amigos de Renoir, plasmadas nos seus jovens rostos. Como curiosidade, chamo a atenção para os dois homens sentados de frente para nós, que são nem mais nem menos que Georges e Norbert, amigos íntimos do pintor.


A rapariga, sentada de frente para o observador, era uma jovem das redondezas da cidade luz que Renoir convenceu a posar para ele no seu vestido às riscas. Já os dançarinos mais próximos são o pintor Cardenas e uma modelo de nome Margot.
Tudo isto nos leva concluir que esta foi uma composição trabalhada ao pormenor por Renoir e que a aparente casualidade e naturalidade das figuras representadas é só isso: aparente.
Quando foi exibido pela primeira vez, o quadro foi muito criticado e muita gente detestava-o, sobretudo pela aparência um tanto ou quanto desfocada da cena. No entanto, esta interpretação da vida popular parisiense foi ganhando adeptos e tornou-se numa das obras-primas de Renoir e do impressionismo. Adquira por Gustave Caillebotte, pertence atualmente ao Estado francês por doação daquele e tornou-se num dos quadros mais caros já vendidos.
Gabriel Vilas Boas   

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

D. PEDRO IV, O HERÓI ROMÂNTICO



Num dia de outono como o de hoje, no mesmo quarto onde tinha nascido, no Palácio de Queluz, falecia D. Pedro IV de Portugal, a poucos dias de completar trinta e seis anos, vítima de tuberculose. 

D. Pedro viveu muito, viveu rápido. Ele é uma das figuras mais importantes da nossa História coletiva e marca o princípio do fim do império português, ainda que nem ele nem os seus pares tivessem plena consciência disso. 

D. Pedro nunca fugiu aos desafios que o destino e as circunstâncias lhe colocaram. Não nasceu para ser rei e muito menos imperador do Brasil, mas a morte prematura do irmão António e as invasões francesas colocaram a coroa em terras de Vera Cruz, onde D. Pedro cresceu e aprendeu a amar um povo que falava português com sotaque. Herdou do pai o amor à liberdade e da mãe a impetuosidade castelhana. Talvez por isso, D. Pedro fosse aquele ser impulsivo e volúvel, capaz de grandes ódios e de grandes amores. Romântico e autoritário, ambicioso e generoso, grosseiro e sedutor, D. Pedro não passava indiferente a ninguém. 



Quando um homem destes assume o comando dum povo e se depara com circunstâncias históricas inesperadas, é mais que certo que o seu nome preencherá largas páginas dos livros de História. 

A sua educação não foi um primor nem seguiu o manual das melhores práticas para quem se preparava para ser monarca do império português em pleno século XIX. No entanto, D. Pedro estava longe de ser o inculto que muitos tiveram a ousadia de escrever. Ao longo dos anos, procurou preencher as lacunas evidentes que tinha, aprimorando os seus conhecimentos e demonstrando um enorme desejo por aprender. D. Pedro gostava imenso de música e sabia tocar uma grande diversidade de instrumentos: piano, flauta, fagote, trombone, clarinete, violão, cravo… Também gostava muito de pintar e desenhar, como de caçar e montar. Homem despretensioso, gostava de fazer trabalhos indicados para serviçais. Dizem que era bom mecânico, torneiro e marceneiro!

O amor à liberdade que herdou do pai não se viu apenas na libertação que fez do Brasil ou no resgate da coroa portuguesa e dos ideiais liberais sequestrados pelo irmão Miguel. Desde cedo D. Pedro se mostrou contra a escravatura. D. Pedro não acreditava em diferenças raciais e muito menos numa presumível inferioridade do negro, como era comum na época. O primeiro imperador do Brasil deixou clara a sua opinião sobre o tema: "Eu sei que o meu sangue é da mesma cor que o dos negros". Completamente avesso à escravidão, pretendeu debater com os deputados uma forma de extingui-la. D. Pedro I foi um governante muito à frente da elite brasileira do seu tempo. Ele afrontou os valores da escravidão, combatendo com vigor o hábito de alguns funcionários públicos de mandar escravos para trabalhar no seu lugar.



No entanto, foi na ação política que D. Pedro melhor exprimiu a sua personalidade e os seus valores. Quando chegou a altura de tomar decisões, não se engasgou, não teve medo nem adiou. Quando o pai o intimou a regressar a Lisboa, a fim de obrigar os brasileiros a regressar à sua condição de colónia, D. Pedro põe-se à frente do exército brasileiro e soltou o famosíssimo grito de Ipiranga – “Liberdade ou Morte”. Talvez tenha sido por ele estar à frente do imenso Brasil que o pai aceitou a descarada independência brasileira a troco duma considerável quantia de dinheiro. Talvez porque, sentindo-se brasileiro, nunca deixou de ser português, regressou para assumir um trono em que só se sentou de passagem, pois projetara deixá-lo à filha e ao irmão, entre quem arquitetou um casamento de conveniência. Infelizmente, D. Miguel não tinha o desprendimento, a honestidade, o idealismo do irmão e por isso não honrou os compromissos assumidos. E D. Pedro teve que libertar Portugal como tinha libertado o Brasil. Como um herói romântico, de espada na mão, desembarcou no Mindelo, resistiu ao cerco do Porto e só parou quando conseguiu repor a filha no trono que era dele. A obra ficara acabada em Évora Monte poucas semanas antes de morrer. Tuberculoso ainda viu a filha assumir oficialmente a coroa, quatro dias antes de falecer, mas já não pôde regressar ao “seu” Brasil, onde o filho esperava a maioridade para assumir efetivamente o poder. 

O Coração de D. Pedro repousa na Igreja da Lapa, no Porto


A vida passara num fósforo, mas D. Pedro deixou o seu traço entre as estrelas. Como um herói romântico amado, odiado, finalmente, amado. Deve ser por isso que os brasileiros pediram a trasladação dos seus restos mortais para o Museu de Ipiranga, S. Paulo e que os portuenses lhe ergueram uma estátua equestre no sítio mais nobre da sua cidade, porque, apesar de ter nascido em Queluz, o seu coração ficou agarrado ao Porto como uma “Lapa”. 

Gabriel Vilas Boas

terça-feira, 23 de setembro de 2014

FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO CÓMICO DA MAIA

                
Há vinte anos, José Leitão, a alma e a cara do grupo de Teatro Art’Imagem, propôs à Câmara Municipal da Maia, a realização conjunta de algo inédito em Portugal: um festival de teatro cómico. Com uma prática cultural e desportiva determinada, a edilidade maiata aceitou o desafio, assegurando a parte logística e a divulgação do evento.
                Apesar de todas as imperfeições que uma primeira vez acarreta, a semente da arte de Molière fermentou entre os maiatos, que a partir da segunda edição (1996) exigiram que o teatro cómico invadisse a cidade do Lidador na primeira quinzena de Outubro. Com uma regularidade quase Suíça, o Art’Imagem e a Câmara da Maia têm posto de pé um dos melhores festivais de teatro do país.
                Durante dez dias (entre 26 de setembro e 5 de outubro), a Maia enche-se de espetáculos de rua, mímica, fantoches, marionetas, café-teatro, standy comedy e, claro, representações de peças de dramaturgos nacionais e estrangeiros, a cargo de diversas companhias portuguesas e internacionais, convidadas para o certame.

                O espaço onde decorre as apresentações/representações é o Fórum da Maia e em especial o seu imponente Grande Auditório, que tem capacidade para acolher setecentas pessoas. Normalmente, os espetáculos esgotam até porque há uma política de preço reduzido dos bilhetes (entre os 2,5/3 euros). Todas as noites há dois espetáculos, um às 21h.30m. e outro duas horas mais tarde. Aos domingos, há ainda um espetáculo, às 16h., especialmente direcionado para crianças e adolescentes.
               
Este ano, o Festival Internacional de Teatro Cómico da Maia traz ao grande público companhias espanholas, chilenas, brasileiras e portuguesas. Destaco, no primeiro dia (26 de setembro), a peça “O Vosso Pior Pesadelo”, levada à cena pelos anfitriões Art’Imagem; no dia 28, recomendo “A verdadeira história da Barbie” pelos Cassefaz. A 30 de setembro, despertam enorme curiosidade os chilenos AVA3 Producciones de Santiago com a peça “Solo por esta noche”. A 2 de  outubro, os brasileiros Santa Ignorância do Maranhão fazem subir ao palco “Pão com ovo”, enquanto no dia 3, os portugueses A Barraca prometem animar a noite com “Fernão, Mentes?”. No penúltimo dia do Festival, a reputadíssima companhia Teatro da Comuna propõe uma peça que estou muito curioso por ver: “Quem quer ser irrevogável?”, pois acho que o riso combinará com a ironia e a crítica política.


             Como podem ver o programa é variado e cheio de interesse. Por estes dias, a Maia é um grande palco e tu tens de lá estar… pelo menos uma noite!
    Gabriel Vilas Boas     

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

LEONARD COHEN


Leonard Cohen fez ontem 81 anos e para assinalar a data resolveu comprar ele próprio a prenda… para os fãs: o seu 13.º disco – “Popular Problems”. 

Parece impossível mas o canadiano, de voz rouca e encorpada, que escreve canções como um poeta e as interpreta como um velho sábio, continua a produzir músicas. “Popular Problems” é um trabalho sobre o mundo em que vivemos, onde o sofrimento e a luta para se ser reconhecido traçam a alma de muita gente. Neste trabalho destacaria a música “Nermind”, onde uma voz feminina canta em árabe, representando as vítimas dos conflitos armados e os oprimidos do mundo inteiro. 

Cohen revela-se para a música já depois dos trinta anos, quando edita o seu primeiro álbum – “Songs of Leonard Cohen”- em 1967. Seguem-se trabalhos mais ou menos regulares até final da década de setenta. Há medida que a idade avançava, os seus álbuns foram tornando-se mais espaçados no tempo, até porque nem sempre a inspiração acompanhava um espírito tão exigente, mas o público continuava fiel ao senhor de voz grave e cavernosa que um dia compôs “Dance me to the end of love”, “Hallelujah”, “I´m your man” ou “Suzanne”.





Por detrás do músico sempre esteve o poeta e o pensador que escreveu coletâneas de poemas ("Let Us Compare Mythologies"; "Flowers of Hitler") e novelas ("The Favourite Game"; "Beautiful Losers") e que em 2011 recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias de Letras.

Os anos 90 trazem uma inesperada aproximação ao budismo, que o levam a ingressar num mosteiro perto de Los Angeles e tornar-se monge zen, adquirindo o nome de Dharma de Jikan, ou seja, “o silencioso”. Foi uma experiência de cinco anos que o fez regressar à música para compor mais dois álbuns no início do século XXI: “Tem new songs”(2001) e “Dear Heather” (2004)

Com setenta anos, pensava-se que o velho judeu nascido no Canadá se retirava dos palcos por limite de idade, mas não! Há dois anos Cohen surpreendeu o mundo com “Old Ideas” e lançou-se numa série de concertos pelo mundo inteiro, entre os quais um em Lisboa.


Apesar de se ter tornado um ícone citado em livros (“História do Cerco de Lisboa”, Saramago e “Eat, pray, love”, Elisabeth Gilbert) e em músicas (“Pennyroyal”, Nirvana), Leonard Cohen recusa-se a ser “apenas” uma lenda à espera do fim. Com “Popular Problems”, ele combina country, blues e gospel, para abordar os seus temas preferidos de sempre: religião, guerra, morte e amor. 

Apesar da beleza e profundidade dos poemas de Cohen, apetece-me terminar, citando imperfeitamente a canção que Frank Sinatra imortalizou
For what is a man, what has he got?
If not himself, than he has naugth
To say the things he truly feels
And not the words of one who kneels

The record shows, he took the blows
But he did it... his way

Gabriel Vilas Boas

domingo, 21 de setembro de 2014

EUROPA: AMEAÇA DE FRAGMENTAÇÃO


Há uns meses largos, o primeiro-ministro escocês Alex Salmond reivindicou junto do seu homólogo inglês mais autonomia para o seu governo dentro do Reino Unido. David Cameron disse que não e fez-se de forte: se Salmond queria mais autonomia, mais valia pôr a questão de independência da Escócia aos escoceses através de referendo. Estava mais que convencido da rejeição de tal proposta. Nos últimos dias deve ter amargurado tanta jactância, só possível em quem não conhece bem os orgulhosos escoceses. Há uma semana, os escoceses estavam mais inclinados para a cisão, mas à última hora, o coração british e o medo de perder a libra fê-los recuar.
Acho que fizeram bem. A alma grandiosa e nobre da Escócia pertence ao Reino Unido. Eles não queriam sair! Eles “apenas” queriam ser respeitados e considerados um parceiro igual à Inglaterra e não um parente de segundo que tinha que ficar agradecido de ser súbdito de Sua Majestade.


Não duvido que o medo da saída da União Europeia e a dúvida quanto à permanência da libra como moeda fizeram pender a balança para o lado do "Não", mas também estou certo que os escoceses estavam mentalmente preparados para amarrarem sozinhos o seu futuro.
Muita gente comparou o caso escocês ao catalão, referindo que o caso escocês abriria a caixa de Pandora da fragmentação europeia, sendo a Catalunha a próxima a “exigir” a sua libertação de Espanha.
Acho que os dois casos têm pouco em comum. Os escoceses queriam ficar… com mais respeito e consideração; os catalães querem sair debaixo do jugo de Madrid porque não suportam que a capital seja Madrid e que tenham de lhe prestar vassalagem. Os escoceses estavam preparados para assumir a rutura apesar de não a quererem; os catalães, ou melhor, os barcelonistas não estão preparados nem economicamente nem mentalmente para sair de Espanha.

Barcelona acha-se rica e autossuficiente, mas esquece que a sua riqueza lhe vem das inúmeras multinacionais que lá se instalaram e que não suportariam ficar fora do espaço da moeda única como certamente aconteceria à Catalunha. Por outro lado, Barcelona é profundamente cosmopolita e não estou a ver os catalães odiaram assim tanto Madrid para abdicarem da sua “dolce vita”. Se estivéssemos a falar dos bascos já não diriam o mesmo… 
Por falar em bascos: o que acharão eles desta ideia catalã de independência? Provavelmente o seu longo sorriso irónico se lembrará de como os “amigos” de Barcelona foram contra o desejo basco de sair de Espanha.
Além disto, ainda não estou convencido que a maioria da Catalunha almeje abandonar a grande Espanha. Julgo que essa vontade é muito maior em Barcelona que na região da Catalunha.
Reconheço a específica cultura catalã, a sua língua, a sua riqueza económica, mas não encontro “boas e fortes razões” para a sua saída do Reino de Filipe VI e Letizia.
Se a Catalunha se separar, será impossível impedir os bascos de “ir embora” e, nessa altura, a Espanha implodirá e a Europa terá outro desenho, pois a pequena Bélgica deixará de existir e outros casos surgirão para atormentar a União Europeia…


A única coisa positiva que vejo nesta nefasta deriva fragmentária da Europa é que tudo está a ser feito pacificamente e em democracia. E é assim que deve ser. Não podemos viver novamente tempos de violência como a sangrenta guerra nos balcãs, onde a Jugoslávia acabou da pior maneira.   
 Gabriel Vilas Boas


sábado, 20 de setembro de 2014

SOFIA LOREN


Sofia Loren faz hoje oitenta anos. A romana de olhar felino, lábios carnudos e pele morena conquistou o mundo do cinema nos anos cinquenta e sessenta do século passado, depois de conhecer o produtor de cinema Carlo Ponti. Ponti ficou deslumbrado pela beleza sedutora de Loren e não demorou a conquistar-lhe o coração e a fazer dela uma estrela de cinema.
Entre 1950 e 2009, Sofia Loren participou em quase noventa filmes. O seu momento áureo ocorreu no início da década de sessenta quando filmou “La Ciociara” (Duas Mulheres) que lhe valeu o Óscar de Melhor Atriz em 1962.

Sofia nasceu pobre e a sua mãe teve de batalhar muito para que a sua filha tivesse um futuro melhor que o seu. Com a Segunda Guerra Mundial, a situação piorou e a mudança para Nápoles só serviu para agravar as dificuldades. Uma inesperada Sofia magrinha foi lançada em concursos de beleza com catorze anos. O rosto encantava e três anos depois a sorte sorrir-lhe-ia quando participava em mais um concurso de beleza (em que voltou a não ganhar). Carlo Ponti, membro do júri, reparou nela. Ponti elevou Sofia a voos mais altos.
Em1952, Sofia entrava em “Abismos Africanos”. No filme chamava-se “Loren” e foi esse o nome que adotou para compor o seu nome artístico. Sofia fez então uso dos seus dotes físicos. Juntamente com Gina Lollobrigida preenchia as fantasias masculinas. Brilhou ao lado de atores italianos – Mastroianni ou de De Sica – e americanos, como Clark Gable ou Cary Grant, mas queria ir mais longe…

Foi com “A Orquídea” que o seu talento de representação transcendeu a sua beleza física. O júri do festival de Veneza distinguiu-a com o prémio de interpretação em 1958. Foi o início do reconhecimento do seu trabalho.
Em 1960, entra em “La Ciociara”, no papel principal, ou seja, o de uma mãe em plena guerra. Sofia desempenhou com mestria o papel da mulher/mãe devastada pelos horrores da guerra e Hollywood rendeu-se, oferecendo-lhe o óscar de melhor atriz.
Reencontrar-se-ia com a fama quatro anos mais tarde nos filmes “Matrimónio à italiana” e “Ontem, hoje e amanhã” contracenando com um grande amigo – Marcelo Mastroianni. Seria, aliás, com ele junto a si que receberia em 1990 o segundo Óscar, estatueta recebida a título honorário para “um dos genuínos tesouros do cinema mundial”.
Gabriel Vilas Boas

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

JARDINS VERTICAIS

No último artigo fiz referência a uma parede verde, um grande jardim vertical ao lado do edifício de La Caixa de Madrid projetado pelo botânico francês Patrick Blanc (Paris,1953-). Gostava de continuar abordar este tema que faz parte da arquitetura paisagística. É precisamente na incorporação de paisagem e arquitetura que Patrick Blanc apresenta todas as possibilidades do uso da vegetação nos edifícios, afirmando que as plantas não necessitam de terra, só necessitam de água, luz e dióxido de carbono.
 


Patrick Blanc desenvolveu uma técnica que permite que os seus jardins verticais sejam tão leves que possam ser instalados em qualquer tipo de parede, grande ou pequena, interior ou exterior e têm na sua construção três elementos fundamentais: uma estrutura metálica, uma “pele” plástica e uma capa de feltro de poliamida imputrescível. A rega e a fertilização são automatizadas e, funcionam como isolamento térmico e como um elemento purificador do ar, onde milhares de plantas e centenas de espécies se espalham formando uma variada paleta, onde os verdes geralmente dominam.



No intuito de minorar e suprir a falta de áreas verdes nas cidades, beneficiando e tirando partido dos espaços, os Jardins-Verticais têm vindo a ganhar “território” no quotidiano urbano, fazendo a diferença na arquitetura e na decoração.
Qualquer pessoa pode construir o seu Jardim-Vertical de maneira simples, fazendo autênticas “Paredes Vivas” que podem ser construídas em varandas, em salas e até mesmo em cozinhas. Estas “paredes” contribuem para a diminuição dos efeitos da emissão de carbono e para a climatização dos espaços.

 

Teresa Beyer

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

DA ARTE, DA PINTURA, DO VERÃO QUE SE VAI E DO OUTONO QUE ESPREITA...


GIUSEPPE ARCIMBOLDO (1526-1593)


Verão, Giuseppe Arcimboldo, óleo s/tela,1573,Museu do Louvre








 


Verão (detalhe) Giuseppe Arcimboldo óleo s/tela, 1573

Escrevo-vos da minha salinha de sempre, a de que mais gosto porque dona de um imenso janelão rasgado para uma parte do meu jardim atapetado de verde e povoado de duas laranjeiras e alguns limoeiros derreados hoje pelas bátegas de chuva insistentes. Ora em sussurros suaves, ora ameaçadora pela violência intensa do seu cair, esta chuva que parecia ter vindo apenas de visita, gostou tanto que resolveu ficar. Nestes últimos dias, adormece comigo a lembrar-me embalos longínquos da minha doce avó e acorda-me suavemente quase a dizer que as férias já lá vão e que são horas de me aprontar para o trabalho que nunca espera.
Este Verão que se vai foi, para mim, o primeiro de todos os meus verões. Não aprecio particularmente o calor  e quase adivinhando a estação atípica que agora termina, resolvi “ficar de férias” por cá, e não “ir de férias” por aí, como sempre fiz. E, tal como eu desejava, o Verão foi suave, com Zéfiro por companhia, fazendo-me respirar de alívio pois o ditado “nove meses de inverno, três de inferno”, que se aplica tão bem ao Douro (e a terras do Tâmega, tantas vezes) a que Amarante abre portas, não se confirmou. E o descanso, esse, foi garantido em sestas deliciosas debaixo das minhas frondosas árvores a destilar sombra e perfumes, a deixar espreitar o céu azul indiscreto ou sob um sol pintado de nuvens, cúmplice do meu desejo de silêncio, de paz e de suavidade.
E é aqui que surge Arcimboldo, porque numa dessas tardes de sossego, folheando alguns livros que há anos viviam esquecidos em algumas das estantes da minha razoável biblioteca, este pintor maneirista emerge e se ergue para mim, dando-se a conhecer.
Os historiadores de Arte apelidam-no de Maneirista porque também ele rejeita o racional, em favor da ambiguidade, do virtuosismo e da elegância e até de simbologias obscuras. Estes maneiristas eram os artistas da moda nas cortes mais sofisticadas da Europa e Arcimboldo foi, como ninguém, um dos preferidos de então.
“Estas pinturas assentavam como uma luva no “Sete Pecados (I)Mortais”, pensei eu, então; mas o azul do céu, a brisa fresca, o verde da quinta, o azul da piscina e a preguiça de agosto venceram Arcimboldo, que só agora chega pelas minhas mãos até vós.
O século XVI viu renascer o gosto por novas ciências como a botânica, a zoologia e a horticultura, onde a natureza e a busca pelo seu entendimento ocupam cada vez mais mentes sobredotadas. O estudo da fauna e da flora de forma intensiva foi também resultado das grandes viagens de descoberta do Novo Mundo, da África e da Ásia, em que os Portugueses foram os pioneiros. Animais e plantas foram estudados e dissecados para melhor conhecimento dos diferentes espécies que chegavam à Europa e intrigavam.
Jacopo Ligozzi, por exemplo, pintou séries de animais para a corte dos Habsburg, de Maximiliano II, em Viena. Mais tarde, trabalhou em Florença onde conheceu o grande naturalista Ulisse Aldrovandi, cujos volumes de História Natural foram ilustradas igualmente com desenhos de Arcimboldo.
As obras que vos trago hoje refletem o sério estudo científico da Natureza tão comum no século XVI e a originalidade da arte de Arcimboldo reside nestes rostos humanos que representam as diferentes estações do ano e onde, em vez de olhos, bocas ou narizes podemos encontrar cerejas voluptuosas , pêssegos rosados e  uvas em cachos deslumbrantes. Verdadeiros puzzles, não acham?
As interpretações da sua obra, sempre opostas e irreconciliáveis, em jogos de amor e ódio, e o próprio Arcimboldo, depressa ficaram no esquecimento após a sua morte, apenas redescoberto em 1930 quando o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, pelas mãos do seu diretor, Alfred Barr, incluiu Arcimboldo na Exposição Fantastic Art, Dada, Surrealism, por ser considerado fonte de inspiração para o movimento surrealista.
Nascido em Milão em 1526, filho do pintor Biagio, trabalhou desde cedo nas cidades próximas do Como e Monza, mas é como pintor e retratista da corte de Maximiliano II, em Viena, e depois em Praga, que se destaca e afirma. Arcimboldo criou para Maximiliano II a série de pinturas alegóricas As Quatro Estações, em bustos perfilados de imensa criatividade. Inverno, lembra os grotescos de Leonardo da Vinci, como bem se observa aqui.

Inverno, Giuseppe Arcimboldo,1573


Mas eis que chega o Outono pelas mágicas mãos de Arcimboldo. E o próximo domingo, vinte e um de setembro, assinalará a chegada oficial de uma estação nova que, ao que parece, já se vem instalando entre nós em pezinhos de lã…em passos sorrateiros de quem vem sem ser por mal.



Outono, Giuseppe Arcimboldo,1573

Se olharmos com atenção, verificamos que Arcimboldo não esqueceu nada. Neste busto inconfundível,  as uvas prevalecem com as suas parras amadurecidas em farta cabeleira, à espera da carícia do vindimador que as há-de transformar em doce e inebriante néctar. Os cogumelos  ouvem com atenção os passos da cozinheira hábil que os vai saltear em manta de presunto enquanto que a abóbora, imensa, espera ansiosa nadar em panela farta de sopa outonal. Castanhas, maçãs, pêras e marmelos surgem em apontamento aqui e ali. As florinhas campestres emolduram a cena delicada e nós, tal como Maximiliano II, olhamos em doce deslumbramento mais uma obra-prima do nosso encantamento. Engraçado o jogo claro-escuro e as nuances de tons dourados que inundam a tela.
Gosto do Outono. Dos seus frutos, da temperatura suave, da chuva, das tardes à volta de um chá, dos livros que leio enroscada numa manta quentinha em frente à lareira que por vezes apetece. Não gosto do Verão. É a estação dos excessos. Mas para quem aprecia todas as estações, fiquem com As Quatro Estações numa Cabeça. É que, apesar de dizermos constantemente que já não há estações como antigamente, olhem que há. Nós é que temos memória curta.
               
  

As Quatro Estações numa Cabeça, Giuseppe Arcimboldo,1590

         Terminei o meu texto e hoje, em jeito de confidência e de partilha de gostos pessoais, sem vos maçar muito com questões técnicas ou análises profundas das pinturas que trouxe hoje até vós. A chuva continua a cair lá fora. É hora de um chá. São servidos?

Rosa Maria Alves da Fonseca