“O Presidente Salvador Allende compreendeu então, e o disse, que o Povo tinha o Governo, mas não o Poder. Frase mais alarmante, porque Allende levava dentro de si uma amêndoa legalista, que seria a semente de sua própria destruição: um homem que lutou até à morte na defesa da legalidade, teria sido capaz de sair pela porta da frente de La Moneda, de cabeça erguida, se o Congresso o houvesse destituído dentro dos parâmetros da Constituição”
Gabriel Garcia Marquez
Para a grande maioria das pessoas que hoje lê este blogue o dia 11 de setembro lembrará para sempre o ataque terrorista da Al-Qaeda às Torres Gémeas em Nova Iorque, que dizimou milhares de vida e organizou o mundo sob o signo do medo. No entanto, o que proponho aos leitores é um mergulho um pouco mais fundo no tempo: 11 de setembro de 1973, Chile.
O presidente Salvador Allende escolhia a espada em forma de bala e punha fim à própria vida, perante o inevitável triunfo do golpe militar do general Pinochet. O Chile ia mergulhar numa longa ditadura criminosa que durou dezassete anos.
Salvador Allende morreu poucos meses antes de eu nascer, por isso só os conheço dos livros de História, das biografias e dos romances. Cruzei-me com o seu nome há mais duas décadas quando Inglaterra e Espanha decidiam o que fazer com o seu carrasco, que, velhinho, entregou o poder na condição de não ser julgado, até porque muito poucos sabiam da profundidade dos crimes que cometera…
Pinochet fez-me procurar Allende e tenho-o descoberto ao longo destes anos. Tenho de confessar que o admiro. Não propriamente pelas ideias políticas, porque todos me desiludem, mas pela sua conduta cívica, pela sua coerência política, pela persistência e coragem demonstradas.
Allende tinha aquilo que definia os heróis da América Latina a meio do século XX: adorava o seu povo, era inteligente, amava a liberdade e a igualdade e pensava que se conquistavam sonhos, direitos e progresso com democracia, socialismo/comunismo e coragem. Infelizmente, acreditou muito na bondade humana.
Nascido numa família da classe média/alta, teve a oportunidade de estudar, conhecer os ideais marxistas, desde a génese, e a democracia liberal capitalista americana. Como qualquer jovem idealista, quis o melhor dos dois sistemas. Não podia ser doutra forma para quem nasceu num país pobre, cheio de desigualdades e estava sedento por fazer alguma coisa pelos conterrâneos.
Lançou-se na política como deputado desde os 25 anos e aos quarenta e cinco já era candidato a Presidente da República. Perdeu três eleições e ao fim de 18 anos conseguiu chegar ao mais alto cargo da sua nação. Marxista convicto, teimou em chegar ao poder pela via democrática e conseguiu-o. Foi o primeiro no mundo inteiro, mas isso não comoveu os EUA, que tudo fizeram para o derrubar como tudo tinham feito para impedir a sua ascensão.
Persistente, legalista, convicto dos seus ideais, chegou ao poder e pensou que o mais difícil estava feito. De Moscovo avisaram-no que devia ser duro com os opositores, eliminando-os e asfixiando a democracia, mas Allende rejeitou ignóbil conselho.
Resolveu pôr em prática os seus ideais socialistas e aplicá-los à economia: nacionalizou as minas de cobre e passou o controlo das minas de carvão para o Estado, ao mesmo tempo que entregava ao domínio estatal a companhia dos telefones. Interveio nos bancos pra defender os depositantes e não os banqueiros corruptos e fez a reforma agrária, tirando as terras por cultivar aos ricos latifundiários para as entregar aos camponeses. O seu projeto era construir o caminho chileno para o socialismo ou, como diria Frank Sinatra, fazer o caminho à sua maneira.
Os americanos, que gostam da democracia do eu mando e tu obedecesses, acharam que aquela democracia vermelha não lhes interessava e traçaram a sua cortina de ferro no hemisfério sul: nada de comunismo por perto, que a liberdade política dos vizinhos só pode existir quando é da mesma cor que a nossa.
Como não seguiu os conselhos do KGB Andropov, Salvador reinou em democracia, pensando que só a democracia o derrotaria. Nada mais errado!
A oposição de direita e os EUA uniram-se para prejudicar sua política. Em 4 de setembro de 1972, Allende denunciou em vão, nas Nações Unidas, as tentativas norte-americanas de desestabilização do Chile.
A situação económica tornou-se catastrófica Os investimentos privados dos chilenos caíram e o desemprego galopou. A população revoltou-se e passou a protestar em manifestações turbulentas conjugadas com a paralisação dos transportes e do comércio e com inúmeros atentados, que provocaram apagões e danificaram pontes e oleodutos.
Apesar das graves dificuldades económicas, a Unidade Popular de Allende obteve 43% dos votos nas eleições de 1973. Em junho desse mesmo ano, porém, ocorreu uma frustrada tentativa de golpe de Estado. Três meses depois, no dia 11 de setembro, o governo de Allende foi derrubado pelo exército, liderado pelo general Augusto Pinochet.
O homem que projetara ser o “Salvador” do seu povo acabou metido numa grande alhada, para a qual a única solução digna que encontrou foi a morte.
É difícil encontrar alguém com o espírito de luta, a coragem e a história de Allende. Ele foi um homem que, na verdade, teve o nome marcado na história: democraticamente a esquerda chegou ao poder, e pelas bombas foi apeada do governo.
Gabriel Araújo Vilas Boas.
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