O grande acontecimento cultural da semana foi a muito aguardada estreia do filme de João Botelho, “Os Maias”.
Depois de “Os Lusíadas”, a obra maior de Eça de Queiroz é, provavelmente, a mais conhecida e querida pela maioria dos portugueses. Talvez por isso se explique toda a expectativa em volta da película do cineasta duriense. A primeira impressão que me ficou depois de ver o filme é que o filme de João Botelho não desilude, mas não me enche as medidas. É um filme bom, mas não excecional como o romance de Eça de Queiroz.
O filme tem aspetos muito bons, outros situam-se num patamar mais abaixo. Começo pelo que gostei francamente: o extraordinário desempenho do ator Pedro Inês no papel de João da Ega, o alter-ego de Eça. Achei a sua atuação fabulosa! Uma naturalidade impressionante, uma capacidade extraordinária para desempenhar o relevante papel que Eça traçou para João da Ega: sintetizar duma maneira mordaz, irónica e profundamente crítica o ponto de vista de Eça sobre a sociedade portuguesa do final do século XIX. Graciano Dias, no papel de Carlos da Maia, teve um bom desempenho, assim como a belíssima Maria Flor, no papel de Maria Eduarda. No entanto, não posso deixar de notar que esperava bem mais da atriz brasileira, pois esperava que o seu desempenho mostrasse quanto fora irresistível a sua sensualidade e poder de atração junto de Carlos da Maia.
João Botelho consegue com o filme mostrar os costumes da pretensa elite burguesa que gravitava em redor do poder no final do século XIX. Fica bem evidente a Lisboa de ambientes aborrecidos e amolecidos, dos costumes agitados e das mentalidades sombrias, dos cinismos e traições, do glamour postiço, ou seja, tudo o que Eça queria criticar com a sua obra.
Há na primeira parte do filme uma cena dum jantar em casa dos Gouvarinho, onde se discute a situação do país. Nele se vê um Portugal a caminho da bancarrota, esmagado pelos empréstimos, afundado em segredos e atormentado pela tragédia. Aquele momento assenta como uma luva no país que hoje somos, isto é, um país sem sentido nem remédio, onde proliferam os Dâmasos, os Gouvarinhos, os banqueiros Cohen…
João Botelho em nada se afastou do texto queirosiano. Segue o enredo do romance, transpondo-o sem nada lhe acrescentar. Os puristas de Eça acharão muito bem, eu acho que Botelho devia ter sido mais ousado, colocando a história de amor entre Carlos da Maia e Maria Eduarda mais cedo em cena e dando-lhe um enfoque maior e, depois, partindo dela, tratar as cenas da vida romântica enquanto crónica de costumes com uma acutilância maior, talvez com maiores inferências para a atualidade. Talvez o cineasta tenha tido receio de mexer no sacrossanto texto de Eça e que a crítica lhe fosse adversa…
Um dos aspetos muito valorizados pelas primeiras críticas que surgiram acerca do trabalho do realizador português é a utilização das já famosas telas de João Queirós, de dimensões inusuais, como cenário. De facto, com elas, João Botelho recriou o ambiente da Lisboa oitocentista e deu ao seu filme um toque de ópera, organizando-o como um libreto. A opção parece-me muito válida para cenografar Lisboa, já em relação às paisagens do Douro, discordo. João Botelho podia muito bem filmar numa das várias quintas do Douro atual que o recuo à Santa Olávia de “Os Maias” seria automático. Ganharíamos em naturalidade e em beleza.
A opção pelas telas tem, no meu entendimento, uma enorme contrariedade: retira vida ao ambiente. As ruas de Lisboa do filme de Botelho não têm vida, não há barulho realístico, não há pessoas suficientes, assim como não há a luz do dia. O realizador filma muito os interiores… Podia ter recuperado esse défice com as filmagens no Douro, mas optou novamente pelas telas.
Estranhei também a ausência duma banda sonora marcada. Claro que isso seria uma opção de risco, mas quem não arrisca não petisca.
João Botelho apresenta os quadros de Eça, mas não os analisa profundamente, não lhes dá interligação evidente, deixando essa tarefa para Pedro Inês, que se desdobra em várias funções, quase todas elas executadas com grande talento.
Já em relação à definição dos caracteres sociais, o filme atinge plenamente os objetivos. Dâmaso, Cohen, o Gouvarinho são tipos muito bem trabalhados no filme e que podemos ver como arquétipos atuais. Se lhes tirássemos aquela roupa e lhes vestíssemos um fato Armani, nem precisávamos de legendas.
O filme termina com a famosa cena do incesto. Altamente simbólica da amoralidade e do sentimento de culpa que Portugal vive, conscientemente, há mais de cento e cinquenta anos.
Em conclusão, diria que o filme é bem conseguido, mas não excecional, talvez por falta de arrojo. A película do cineasta João Botelho fará muito pelo conhecimento da obra de Eça de Queiroz junto das gerações mais novas e não desiludirá os mais antigos e exigentes admiradores do romancista. Além disso, Eça já merecia que alguém tivesse a coragem de perpetuar a sua extraordinária obra para além dos livros.
Gabriel Vilas Boas
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