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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, 
ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas 
— Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço, 
Este cansaço, 
Cansaço. 

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado? 
Para eles a vida vivida ou sonhada, 
Para eles o sonho sonhado ou vivido, 
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
Para mim só um grande, um profundo, 
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
Um supremíssimo cansaço, Íssimno, íssimo, íssimo, 

Cansaço... 

Álvaro de Campos, in "Poemas"

domingo, 3 de fevereiro de 2019

INVERNO

Apagou-se a fogueira.
Que frio na lareira
Do coração!
Neva
Na solidão
Da vida.
Como ardias outrora,
Nos dias de ventura.
Não me deixes assim
Nesta algidez de morte prematura.

 E o vento traz e leva
Um recado de eterna despedida.


Amor! Amor!
Sei ainda o teu nome redentor,
Chamo ainda por ti a cada hora!
Arde outra vez em mim
Miguel Torga, 
Coimbra, Janeiro, 1978

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

QUERO O MEU CHAPÉU DE VOLTA


Há livros infantis que são divertidos, outros vão um passo além: são sublimes e os seus ensinamentos abrangem até os adultos. São livros que valem a pena ler, como as histórias de Jon Klassen, escritor e ilustrador canadiano. 


Quero o meu chapéu de volta” foi escolhido pelo New York Times Book Review como um dos dez melhores livros ilustrados do ano em que foi publicado, sendo um sucesso imediato. É um livro encantador e ao mesmo tempo sombrio, com uma narrativa subtil, cujos protagonistas, a princípio inexpressivos, de repente, revelam tudo o que está dentro deles, para que nos possamos identificar completamente com a suas vivências. 

A história começa com um urso que perde o chapéu. 

Como é lógico, o urso quer encontrar seu chapéu. Sem o chapéu, ele sente-se perdido e desesperado, por isso ele começa a procurá-lo. 

Ele pergunta a cada um dos animais que encontra na floresta se eles o viram. 

A raposa e o sapo não viram. A tartaruga não viu o chapéu, mas aceita a ajuda do urso para escalar uma rocha. A cobra refere que, uma vez, viu um chapéu azul e redondo, mas esse não era o chapéu que nosso amigo está à procura, pois ele é vermelho e pontudo. O tatu nem sabe o que é um chapéu. 

Ninguém parece ter visto o seu chapéu. 

Até a lebre, que a usa, diz a ele que não a viu. Ela nega categoricamente: “Não, por que é que me pergunta isso? Eu não vi chapéu nenhum por aí. Eu nunca ousaria roubar um chapéu. Para de me fazer perguntas!” 


É então que Klassen nos dá o primeiro ensinamento do livro: quando estamos demasiado imbuídos no nosso mundo emocional, é como se tivéssemos vendas que nos impedissem de ver claramente à nossa volta. Deixando as emoções assumirem o comando, deixamos de pensar claramente e de aproveitar as oportunidades / soluções que estão bem à frente dos nossos olhos. É uma autêntica cegueira emocional. 

A história continua. 

A certa altura, já deprimido, o urso cai no chão e olha para o céu. 



É então que ele dá rédea solta ao seu diálogo interior. 

“Pobre chapéu, sinto tanto a sua falta”. 

Nesse momento, ele começa a imaginar o quanto se sentirá mal se não encontrar o chapéu, se se deixar vencer pelo desespero e por pensamentos catastróficos, que o atiram cada vez mais para um poço de negatividade, situação que todos os adultos e até algumas mesmo crianças mais velhas irão identificar. 


Passado algum tempo, aparece o cervo e pergunta-lhe como é o seu chapéu. Quando o urso começar a descrever o chapéu, o cervo recorda-se onde o viu, ou melhor, com quem o viu. É aí que o urso se levanta de um salto e volta a correr pelo bosque, até chegar à lebre. 


Então, finalmente, ele recupera o chapéu. 

Através desta história simples, Klassen encoraja-nos a refletir sobre as armadilhas emocionais e mentais que muitas vezes criamos a nós mesmos e que nos impedem de encontrar rapidamente a melhor solução.



in, Rincón de la Psicologia

sábado, 29 de dezembro de 2018

A HISTÓRIA REZA POR AMOS OZ


O final do ano traz sempre destas notícias tristes: morreu Amos Oz, escritor israelita insigne e um baluarte na luta pela paz.  
Amos Oz foi um verdadeiro príncipe da palavra e da paz, num contexto marcado pela guerra, pelo ódio, pela incompreensão, como é o cenário do Médio Oriente, desde meio do século XX até aos dias de hoje. 

Apesar de ser um tenaz lutador pela paz, é  guerra que marca a vida deste israelita, nascido em Jerusalém. Desde logo, o ano em que nasceu, 1939, recorda-nos o início  do conflito mais marcante da história da humanidade: a II Guerra Mundial, depois, porque Amos participou como soldado na Guerra dos Seis Dias (1967) e na Yom-Kippur (1973). 

Essa terrível experiência marcou a sua vida tanto quanto a literatura ou a filosofia, de tal forma que dedicou grande parte da sua existência à defesa da convivência pacífica entre israelitas e palestinianos. 

Espírito superior e com um talento ímpar para a escrita, Amos Oz deixou-nos trinta e cinco obras, das quais destaco, obviamente, Uma História De Amor E Trevas (2002). Várias vezes à porta do Nobel da Literatura, sem nunca o ter conquistado, Oz havia de se empenhar na construção da paz, ajudando a formar o movimento PAZ AGORA, em 1977. Essa defesa intransigente do valor da paz criou-lhe muitos anticorpos dentro do estado hebraico, mas Oz não se importou. Numa entrevista recente disse mesmo que considerava um elogio quando lhe chamavam traidor.

 «Acho que traidor pode ser um título honorífico. Muitos grandes homens e mulheres do seu tempo foram chamado traidores simplesmente porque estavam à frente do seu tempo.»

Infelizmente Amos Oz estava à frente de um tempo onde a guerra ainda é vista como solução. Ao morrer, amargurado e derrotado pelo cancro, a poucas horas de finalizar 2018, Amos Oz deixa-nos os seus belos livros (romances, ensaios, contos, histórias para crianças) e sobretudo o seu exemplo de cidadania, civismo, humanidade e coragem. Verdadeiramente foi esse o lema que adotou para a vida e o apelido para o nome, quando aos quinze anos mudou o apelido de Klausner para OZ, que em hebraico significa "Coragem", "Força". 

Gabriel Vilas Boas 

quarta-feira, 23 de maio de 2018

OS CUS DE JUDAS


O romance de António Lobo Antunes foca o tema da guerra colonial portuguesa e os traumas que ela deixou nos combatentes portugueses.
         Ao longo de todo o romance ressalta o sentimento de revolta perante uma guerra sem sentido, em defesa dum patriotismo balofo e dum regime que a maioria odiava de tão despótico que era.
         A voz do narrador é a voz do autor pois percebe-se que o protagonista é um soldado que foi mobilizado para Angola, exercendo também a função de médico, tal como o autor do romance.
         A narrativa demonstra também o absurdo da guerra colonial, pois percebe-se que os soldados não lutavam por uma causa, não entendiam porque estavam naquele fim do mundo (Os cus de Judas), não partilhavam a ideia de pátria serôdia do Dr. Salazar e seus apaniguados, não sentiam aquele território como seu, não sentiam nos africanos os seus inimigos … em suma, não percebiam por que tinham de matar e morrer por um ideal que não era o seu.
       
  Por outro lado, Os Cus de Judas retratam a dolorosa experiência da guerra colonial a partir da visão de um soldado português que alguns anos depois da guerra ter terminado, retoma as suas memórias sobre a guerra, relembrando factos, histórias, impressões, locais, pessoas e sobretudo sentimentos, aparentemente desconexos (como lhe vinham à memória). Essa recordação é notoriamente dolorosa e parece sempre tão real e tão próxima que ilustra de uma maneira fiel, os traumas que a guerra em África em cerca de um milhão de portugueses que combateram nas ex-colónias portuguesas.

O livro propõe uma reflexão sobre um tempo e uma guerra de guerrilha que marcou uma geração de portugueses, de uma forma indelével. E como o autor muito bem faz notar, a raiva que transparece no livro é também pelo não reconhecimento desses traumas por parte daquele Portugal que ficou a gozar a paz. António Lobo Antunes acentua muito essa ingratidão, esse olhar de lado, como se os combatentes em África fossem doentes mentais, a quem se tivesse de dar um desconto por algumas atitudes mais agressivas. 


O livro é a voz de muitos ex. combatentes que não entendem esse tratamento ingrato, de desprezo , por vezes humilhante a são votados pelos seus compatriotas quando estiveram a dar a vida por eles, numa guerra que nunca quiseram, e que os transtornou de modo irreversível.
         Por outro lado, o romance marca de forma categórica a revolta e muitas vezes o ódio do autor a Salazar e ao regime do Estado Novo, por lhes terem destruído muito mais que a juventude, a confiança de viver.
Gabriel Araújo

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

NÃO SE PODE MORAR NOS OLHOS DE UM GATO, por Rafaela Leite


Não se pode morar nos olhos de um gato: uma parábola da resiliência do ser humano e da sua adaptação às condições mais adversas

         



O último romance de Ana Margarida de Carvalho é um drama intenso. A estória passa-se no Brasil. Século XIX, período final da escravatura comerciável: um grupo de pessoas bastante heterogéneo que seguia num tumbeiro clandestino desagua numa praia após terem sido vítimas de um naufrágio - uma senhora aristocrata mais a sua filha triste, um/a criado/a, uma santa de madeira, um capataz, um escravo, um padre, um estudante, um menino pretinho e mais um ou outro ser que se vão juntando numa praia. É em torno desta realidade que a ação se começa a engendrar.
         
Tendo como pano de fundo a treva, a negação, a exploração do lado mais sombrio do homem, estas personagens trazem consigo o peso do mundo e das suas desgraças, outras o peso do tráfico de escravos organizado no Brasil, para onde foram viver. Sob um céu impiedoso, num pedaço de areia que desaparece na maré alta, enclausurados por penhascos a pique sobre o mar, apenas com uma plataforma para se refugiarem, uma caverna e uma poça de água doce, os náufragos, tão diferentes entre si, com histórias privadas tão distintas, são confrontados uns com os outros, consigo próprios e com a natureza inclemente que lhes fornece o mínimo para sobreviverem e o máximo para perecerem.

Cada personagem, arrastada pelo seu destino funesto, presa nas suas memórias e condicionada por uma situação desesperada, numa autêntica prisão de rocha, areia e mar, vai-se transformando numa dinâmica de extrema brutalidade, que nunca anda longe da loucura. O leitor depara-se deste modo com um universo fechado, concentracionário, sem leis, em que se agitam as pulsões mais desenfreadas, onde todos se vigiam e se debatem.
        
Não se pode morar nos olhos de um gato é assim um romance sobre os homens e as suas relações, sejam elas denunciadoras de crimes, amor, ódio, vingança…. as personagens que nele desfilam debatem-se com uma grande questão: a alteridade, a capacidade de olhar o outro por dentro e de ser capaz de se colocar na pele dele, sobretudo na daquele que está em posição desfavorável. Desta forma é deslindada e destrinçada a facilidade com que se julga o outro com base no preconceito, seja ele baseado na aparência, na cor de pele, estatuto social ou intelectual, como se as pessoas fossem só o que é visível exteriormente e o interior não necessitasse de ser cultivado e cuidado…
        
Para sobreviverem, estes seres terão de se transformar metaforicamente num monstro funcional, dotado de muitos braços (força) e muitas cabeças (inteligência) e só alcançarão este estado quando se munirem da capacidade de se colocarem na pele do outro e de o aceitar na sua diferença. O leitor encontrará assim, nesta tragédia, a verdade destas personagens, que não é mais do que a verdade inerente a cada um de nós.
         Este é, portanto, um romance que nos acusa de andarmos distraídos, pois embora saibamos que o sórdido habita ao nosso lado, que os gritos de revolta são geralmente estrangulados porque queremos/deixamos, o certo é que o nosso comodismo e egocentrismo continuam a falar mais alto. Será talvez por essa razão que Não se pode morar nos olhos de um gato

 Rafaela Leite

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O ARTISTA É UM FINGIDOR?


Fernando Pessoa escreveu no poema Autopsicografia que o poeta é um fingidor. Todo o escritor precisa de o ser! E também o ator, o pintor, o cineasta… O artista precisa de fingir para criar! A realidade é notícia, é história e, sobretudo, é, muitas vezes, aborrecida.

No entanto, ao contrário do leitor, do espetador, do ouvinte, o artista não pode ser um fingidor amador. Fingir é a sua arte, fingir é a sua profissão e todo o seu encanto está em fazer, por momentos, os outros acreditar na verosimilhança do seu poema, da sua atuação, da sua pintura futurista. Para isso, ele precisa de viver a personagem que criou, de sorver a sua personalidade, de entrar dentro dela e fazê-la caminhar num palco ou numa folha de papel. É ele que lhe dá vida, que lhe empresta personalidade, comportamentos e sentimentos.
Quando o consegue plenamente, será que podemos afirmar que continua a fingir? Quem representa, quem escreve com frequência ou até quem pinta com regularidade e alguma qualidade sabe perfeitamente quão doloroso é o processo criativo. A dor não é nenhum fingimento. O amor, o ódio, a alegria, a revolta, a compaixão, o medo que poeta ou ator expelem das suas personagens foram vividos, muitas vezes sofridos.


É comum os escritores falarem de experiências traumáticas de escrita como é recorrente vários atores falarem com assombro das experiências que viveram (não fingiram viver) ao representar determinada peça.
Claro que essas experiências passam e os atores partem para outra história, como cada um de nós o faz com as diversas experiências por que passa na vida.
Escrever, representar, criar qualquer objeto artístico é tão sério e tão “verdadeiro” como outra coisa qualquer. Ninguém diz de um economista que tem um “jeitinho” para as contas, nem que faz uns cálculos para desenfastiar do aborrecimento da vida; ninguém desdenha da arte de um pasteleiro ou de uma cozinheira como um ócio tolo de quem tem muito tempo para desperdiçar, apesar dos bolos fazerem mal à saúde.
O artista sente a dor que finge, transmutando-se em várias personalidades, num trabalho incansável que alimenta o espírito daqueles que precisam de algo mais do que a intragável mesmice.

gavb    

sábado, 11 de junho de 2016

AS PESSOAS SENSÍVEIS


11 de junho de 1999 – Sophia de Mello Breyner ganha o PRÉMIO CAMÕES,  o maior galardão da literatura portuguesa.
Dez anos após Miguel Torga receber o primeiro galardão, Sophia via reconhecida toda um vida literária de exceção, onde a figura da mãe criou uma contista de livros juvenis “exemplares” e a mulher transbordava sensibilidade e coragem, na denúncia de um país reprimido.
A poesia de Sophia é ímpar. Ao lado da temática do amor, há a audaz crítica social, onde a ironia era uma arma própria de gente sábia. Recupero hoje um dos poemas que mais aprecio.

 PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a podre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Por não tinham outra
O dinheiro cheira a podre e cheira
 A roupa 
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra



«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo,
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas
Ó cheio de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
                                                                                               Sophia de Mello Breyner, in Livro Sexto, 1962


Todo o poema é uma crítica mordaz e sonora à hipocrisia daquelas pessoas que fingem uma santidade e retidão inquestionáveis e vivem despudoradamente à custa dos outros.
A ironia marca o tom do poema desde a primeira estrofe, que assumirá contornos mais duros nos versos seguintes, quando a poetiza cataloga como podridão moral a atitude daqueles que vivem à custa do suor (trabalho) dos outros.

A tripla apóstrofe anafórica da penúltima estrofe é um grito de revolta e indignação da poetiza perante todos aqueles que conscientemente (“por eles sabem o que fazem”) se ufanam de grandes virtudes quando aplicam os piores sofrimentos a gente indefesa e humilde.
Sophia termina como começou: irónica, porque não acho que deseje o perdão de Deus para estas “pessoas sensíveis”. Afinal elas sabem bem o que fazem e nós também sabemos.
Há mais de cinquenta anos que o sabemos como Sophia sabia e por isso, incomodada, o denunciou. Valeu de muito pouco, porque continuamos estupidamente sensíveis a pessoas hipocritamente sensíveis.

GAVB

segunda-feira, 30 de maio de 2016

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, de Jorge Amado

Dona Flor e Seus Dois Maridos é um dos melhores romances de Jorge Amado e de toda a literatura brasileira. Nele Jorge Amado relata as aventuras de Dona Flor e seus dois maridos, Vadinho e Teodoro. O romance está dividido em cinco partes. A primeira e a segunda partes tratam da morte de Vadinho em pleno Carnaval baiano e do seu velório, onde as amigas, mais ou menos chegadas, de dona Flor trataram de pôr a nu o passado e o presente salafrário, libertino, jogador, gozador, malandro, e amante da farra, de Vadinho. Ao lado desta fama negativa, nasceu a boa recordação das histórias de um homem companheiro e tremendamente safado, memorizada em pequenas histórias ilustrativas do seu carácter e do amor que o unia à esposa. Em todas essas histórias ressalta a alegria, a ternura, a malandragem, o vício pelo jogo e pelas mulheres bonitas.
           

Em paralelo surge uma plêiade de personagens secundárias, mas relevantes para a definição de certos aspetos da vida baiana: os hábitos e ambições duma pequena burguesia mais assemelhada com o povo. Nessas personagens características e pitorescas nota-se o contrate cómico e ridículo entre a aparência e a essência tão próprias dos brasileiros. Esse contrate está presente na luta entre a defesa da moral e dos bons costumes que convive com a «sem vergonhice» das traições de mulheres e homens, do império do desejo, do vício do jogo, do desejo de riqueza.
  

Nestas personagens, na sua maneira de ser e de agir ou falar, está representado o viver da Baía, mas sobretudo do brasileiro (porque não do Homem?) que o autor pretende mostrar alegre, brincalhão, exagerado, safado, algo irresponsável, por vezes libertino, um pouco hipócrita, mas sempre cheio de ternura, sempre amigo, sempre amigo, sempre apaixonado.

Desde logo, há que realçar como traço primordial do romance e da protagonista a escola de culinária “Sabor e Arte”, que serve para vincar a excelente cozinheira que dona Flor era e o prazer que os seus pratos únicos repercutiam no paladar de cada um que teve o prazer de os provar. Este motivo da escola de culinária sancionou as receitas tipicamente baianas de dona Flor, deixadas no início de cada parte do romance, funcionando tal estratagema como uma espécie de homenagem à excelente comida da Baia.

A terceira parte fala da viuvez de dona Flor. Como foi difícil esquecer Vadinho, principalmente a falta que fazia na cama, onde sempre foi rei. Como crescia o seu desejo ardente de fêmea que só o seu primeiro marido soube explorar; ao mesmo tempo que aumentava o número de pretendentes ao seu belo corpo de jovem viúva.
            
A luta de dona Flor foi imensa. Entre o fogo do desejo sexual cada vez mais intenso e a sua integridade moral. Uma luta destinada a ser vencida pela matéria, mas vestida como coisa humana e não como indecência.
A luta entre desejo e moral, entre corpo e matéria é uma dicotomia de sempre do ser humano que ganha maior ênfase no brasileiro. Jorge Amado pretende desmistificar esta luta que trespassa todo o romance, atribuindo ao desejo carnal da mulher e do homem (mesmo quando há a moral e o matrimónio) o distintivo de humano, tendência natural e nunca degenerescência psicológica. É o combate à hipocrisia social que Jorge Amado faz através de personagens como dona Gisa, mostrando o ridículo e o cómico das «xeretas» da Baía, como dona Dinorá ou dona Rosilda.
Nesta terceira parte é ainda traçada a grandiosidade e mediocridade da raça humana. Grandiosidade, bondade e humanidade em dona Norma, que entende as ânsias sexuais de dona Flor; mediocridade nos aproveitadores pretendentes de dona Flor de que o «Príncipe», o senhor Aluísio é legítimo e infeliz representante.

A quarta parte trata do segundo casamento de dona Flor. Flor casa com o farmacêutico Teodoro. Homem discreto, honrado, de razoáveis posses, dedicado, sensível, honesto, apaixonado e respeitador. Uma segurança, enquanto marido. Incapaz das canalhices do primeiro, muito menos dos seus vícios. Sem deixar de ter aspeto jovem e agradável. Ele permite a dona Flor a segurança económica, a respeitabilidade, a organização dos sentimentos e a garantia da satisfação sexual, estatuto social e dedicação.

A quinta parte é a mais saborosa e fantástica do romance. É aquela em que Vadinho regressa do além e, mostrando-se só para dona Flor, a convence a fazer novamente amor com ele. A princípio cheia de escrúpulos, ela acaba por ceder. Aprende a lição que o amor é um profundo sentimento de alma e de corpo. Sem deixar de amar Teodoro, ele percebe que precisa de Vadinho para responder à parte fogosa, sensual, material de que também é constituída. Percebe que não trai ninguém porque ambas são manifestações do seu Amor.
É neste ponto que entra todo o fantástico e misticismo da obra, pois é através de poderes sobrenaturais que Vadinho regressa, aparece e faz amor com dona Flor para todo o sempre. É esse mesmo poder que o faz inclinar a roleta ou as cartas viciadas para os palpites sugeridos pelos amigos. É esse misticismo e fantástico tão brasileiros que surge m nas evocações de rituais e crendices que os brasileiros foram beber na sua costela africana e americana, onde os ritos, superstições, macumbas e crendices se cruzam e integram com as personagens e com o fluir da história.
Obviamente, dona Flor fica com os dois maridos: um Vadinho malandro e jogador, mas amoroso, ternurento e, sobretudo, competente em negócios de cama; e Teodoro, calmo, organizado, delicado, sensível, apaixonado e respeitador.
          
Neste romance, Jorge Amado retrata o baiano, mas também o brasileiro: o seu desejo de amor, mais carnal que espiritual, mais desejo que moral; a sua ânsia de estatuto social; a sua vontade de fazer tudo perfeito; a sua fome de conhecimento; a sua intenção de crescer intelectualmente. Contudo, no final, a sua eterna concessão ao jogo, ao Carnaval, ao samba, ao riso, à «malandragem», à «safadeza» da pequena traição, ao desejo e à falha.
O brasileiro místico, mas humano, hipócrita, todavia compreensivo, ambicioso, no entanto nobre e sempre alegre. O riso é a sua alma e a sua força e também seu eterno fascínio.
Tudo isto conta Jorge Amado com palavras de cristal, onde a beleza sorridente e comovente nasce do calão, do neologismo, do registo familiar, mas também da variedade e da exatidão com que fixa emoções, caracteres, paisagens (excelente descrição do mar da Baia), mas sobretudo a extraordinária maneira de nas suas palavras e criações (como este romance) fazer ressoar a própria vida.
Gabriel Vilas Boas

sábado, 23 de abril de 2016

CERVANTES E SHAKESPEARE - DOIS GÉNIOS DA LITERATURA


Entre 22 e 23 de abril de 1616, há precisamente 400 anos, o mundo despedia-se de dois enormíssimos escritores: o espanhol Miguel Cervantes e o inglês William Shakespeare. Nunca mais Espanha e Inglaterra tiveram escritores tão extraordinários.
Miguel Cervantes deixou-nos Dom Quixote De La Mancha, que alguns críticos literários consideraram a melhor obra de ficção de todos os tempos, enquanto Shakespeare legou-nos textos dramáticos imortais como Romeu e Julieta, Macbeth, Sonho de Uma Noite de Verão, O Mercador de Veneza, Rei Lear, Hamlet. As salas de teatro e de cinema tornaram a obra do inglês mais imortal e universal, porque o dramaturgo cria diamantes em bruto que os encenadores e os atores lapidam até à perfeição.

No entanto, a história de Dom Quixote e do seu fiel escudeiro Sancho Pança é muito mais do que o lado B de um romance de cavalaria, onde Cervantes satiriza os preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis de pacotilha vigentes na época. O mais icónico romance de Cervantes ensina-nos que a utopia e a loucura fazem tão parte da vida quanto a mais concreta realidade, havendo sempre protagonistas para qualquer uma delas. Quatro séculos depois, por cada dez Sanchos encontraremos pelo menos um Dom Quixote que verá gigantes onde os outros vêem apenas moinhos. E como cada um precisa do outro para viver.
O teatro também precisou de Sir William Shakespeare para se reinventar. Desde os enormes Sófocles, Eurípides, Ésquilo que a humanidade não conhecia alguém tão dotado para pôr o Mundo no palco. Felizmente que logo depois apareceu Molière, mas a Felicidade não é dada a generosidades excessivas. 

Quatrocentos anos depois ainda não saímos de cena porque há sempre um Hamlet, um Lear, um Romeu ou uma Julieta que nos habitam de uma maneira tão intensa e profunda que se torna impossível não amar as peças daquele bardo que fazia sonetos e peças de teatros com a mesma sublime categoria. Acresce ainda que o mais conhecido cidadão de Stratford-upon-Avon encantava o seu público com uma linguagem barroca, virtuosamente trabalhada, tão espirituosa quanto sábia. As suas personagens de alta estirpe social eram modelos de linguagem, encantando quer pela forma quer pelo conteúdo.
Cervantes e Shakespeare não podem ficar fechados nas páginas dos livros, evocados numa qualquer nota biográfica de calendário nem apreendidos à pressa em frases célebres postadas nas redes sociais. Precisamos que se entranhem em nós através de espetáculos memoráveis, atuações sublimes e encenações/produções inovadoras.
Precisamos tanto que nos inquietem a vida… outra vez!

Gabriel Vilas Boas 

sábado, 20 de fevereiro de 2016

EM NOME DE UMBERTO ECO


Talvez a maioria de nós conheça o “Em Nome da Rosa” do cinema, mas todos sabem quem escreveu o romance e não quem realizou o filme. Umberto Eco morreu ontem. Não contava! Esperava-o ver em Portugal, lá para o outono, nas comemorações do centenário do Museu Grão Vasco. Já não vai ser possível…

O bom dos escritores é que o melhor deles permanece – a sua obra. Dela emerge o sublime “Em Nome da Rosa”, um romance extraordinário que relata as aventuras de um frade franciscano, Guilherme de Baskerville, e do seu jovem aprendiz Adson von Melk, que são chamados para resolver uma misteriosa morte numa abadia medieval.
O enigma, o mistério, a arguta inteligência do franciscano são apenas o cimento narrativo para Umberto Eco desenvolver uma tripla temática: a religião (e as suas fronteiras com o conhecimento e com o Homem), o amor aos livros e o riso.

Eco transmite de uma forma muito clara o poder que a Igreja Católica tinha na sociedade da Idade Média, dominando a sua mentalidade e por via disso exercendo um poder autoritário e totalitário. E também desumano, que não admitia réplica e justificava como ações do maligno tudo o que não conseguia explicar ou não lhe interessava explicar. Ora, é esse poder podre que Umberto Eco quis expor através do seu protagonista, fabulosamente interpretado por Sean Connery. Ele não podia aceitar uma igreja sem humanismo e adorava de tal forma o conhecimento para aceitar respostas emocionais para aquilo que era racional. A sua luta no enredo e de Eco na literatura/cidadania era demonstrar que é possível conciliar fé e razão. Como diria Santo Agostinho “Compreender para crer, crer para compreender.”  
O franciscano, tão orgulhoso da sua capacidade intelectual quanto da sua fé, não acreditava em livros proibidos e por isso prova que os assassínios tinham uma explicação lógica e fútil. A chave do enigma estava na Biblioteca da abadia. Local onde todo o conhecimento se concentrava, tornara-se no centro do poder, pois poucos tinham acesso a todos os livros. 

Tão pouco habituados a partilhar o poder como a encontrar outra visão para a relação do Homem com Deus, os velhos guardiões do modelo teocêntrico não podiam conceder que os mais cultos frades achassem natural o riso e a comédia, depois de lerem o Livro II da Poética de Aristóteles. Por isso trataram de os envenenar e, em desespero, destruir uma das melhores bibliotecas europeias da época medieval. Mesmo assim o riso triunfou sobre o medo. Talvez porque seja apenas humano e sobre ele não possa descer qualquer sombra de pecado. Hoje rimo-nos destes monges obtusos da época medieval, mas a mudança de mentalidades sempre foi um processo doloroso, porque lida com o medo, o poder e o desconhecido.
O riso mata o temor mas o temor não mata a fé. Uma fé que vive de temor nem chega a ser fé, é apenas um inútil medo que o vento levará com o tempo.
Quando releio o livro ou revejo o filme, lembro-me de quão importante é o riso e o Amor para o Homem e recordo a frase do romance que mais me marcou:
“A vida seria tranquila sem amor. Segura, sossegada e… monótona!”

Gabriel Vilas Boas 


terça-feira, 15 de setembro de 2015

AGATHA CHRISTIE


“Eis a melhor receita para um romance policial: um detetive nunca deve saber mais que o leitor.” – Agatha Christie

Se fosse viva, a britânica Agatha Christie completaria hoje 125 anos de vida. Não seria impossível nem tão prodigioso como a fama que alcançou durante todo o século XX, em que se tornou a rainha do romance policial.
Agatha Christie protagonizou uma vida de aparente recato, mas tão cheias de peripécias, aventuras e algum mistério como algumas das suas histórias. O que mais impressiona na longa vida literária da autora inglesa é a imensa legião de fãs que granjeou em mais de uma centena de países, onde vendeu mais de 4 mil milhões de livros. Agatha Christie é a romancista mais lida em todo o mundo!
Donde vem tanta fama? Agatha Christie escreve romances policiais de uma maneira sublime. O romance policial excita a mente, cria no leitor o prazer da descoberta e da leitura, desafia constantemente. E a autora inglesa soube explorar muito bem os vários subgéneros que o romance policial permite.


Além de uma trabalhadora incansável (chegou a escrever um livro em três dias), a criadora de Miss Marple tirou enorme partido de todas as suas experiências, nomeadamente das viagens que fez com o seu segundo marido, Max Mallowan, nas suas diversas viagens arqueológicas.
Agatha Christie recebe influências de diversos autores, como John Milton, Alexandre Dumas, Jane Austen, Lewis Carroll, mas o seu favorito era, sem dúvida, Charles Dickens. Outra figura incontornável da sua biblioteca foi Conan Doyle, o criador da mítica figura do detetive Sherlock Holmes. No entanto, Agatha Christie superou em fama e popularidade qualquer um deles ao criar o famoso detetive belga Hercule Poirot. Meticuloso, ordenado, amante de objetos aos pares, extremamente inteligente, o belga era conhecido e amado por leitores e espetadores pelo uso das suas “celulazinhas cinzentas”.

Ao lado de Poirot, Agatha Christie fez crescer outra heroína dos romances policiais, a solteirona Miss Marple. Jane era uma detetive amadora, nada viajada, mas muito astuta, que resolvia todos os seus crimes e mistérios usando apenas o conhecimento da natureza humana.
Além de Poirot e Jane Marple, a autora de “Um Crime no Expresso no Oriente” produziu outros heróis da investigação como o casal Tomy e Tuppence; Parker Pyne e Ariadne Oliver. O crime e o mistério eram o coração da sua trama, que normalmente se passava em aldeias ou pequenas vilas inglesas e contava quase sempre com a presença de um médico.
Além de romancista, Agatha Christie foi também contista, poeta e dramaturga. Ainda que as suas peças teatrais tenham alcançado algum êxito, são as histórias policiais que lhe granjearam a fama que levou a rainha de Inglaterra a atribuir-lhe o título de “Dama” em 1971. Entre os seus maiores êxitos destaco “O Caso dos Dez Negrinhos”, “O Assassino de Roger Ackroyd” e o já citado “Um Crime no Expresso do Oriente”, que vendeu mais de três milhões de cópias e foi transposto para o cinema em 1974 pelo realizador Sidney Lumet. O êxito foi semelhante ao do livro, o que permitiu a Ingrid Bergman arrecadar o Óscar de Melhor Atriz Secundária.
Ler Agatha Christie nunca é uma obrigação, mas um prazer que rapidamente se transforma num vício bom.

Gabriel Vilas Boas