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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MIGUEL TORGA CHORA A MORTE DE FERNANDO PESSOA


“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.”


Miguel Torga, in Diário I (3-12-1935)


domingo, 3 de fevereiro de 2019

INVERNO

Apagou-se a fogueira.
Que frio na lareira
Do coração!
Neva
Na solidão
Da vida.
Como ardias outrora,
Nos dias de ventura.
Não me deixes assim
Nesta algidez de morte prematura.

 E o vento traz e leva
Um recado de eterna despedida.


Amor! Amor!
Sei ainda o teu nome redentor,
Chamo ainda por ti a cada hora!
Arde outra vez em mim
Miguel Torga, 
Coimbra, Janeiro, 1978

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

SEREIA ENGANOSA

Mar!
Enganosa sereia rouca e triste!
Foste tu quem nos veio namorar,
foste tu depois que nos traíste!
Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de nos tentar
o teu encantamento!
"O Mar"
Mar!
Tinhas um nome que ninguém temia:
era um campo macio de lavrar
ou qualquer sugestão que apetecia
Mar!
Tinhas um choro de quem sofre tanto
que não pode calar-se, nem gritar,
nem aumentar nem sufocar o pranto… 
Mar!
Fomos então a ti cheios de amor!
E o fingido lameiro, a soluçar,
afogava o arado e o lavrador.
Miguel Torga

sábado, 21 de março de 2015

DIA MUNDIAL DA POESIA


A poesia é a sobremesa da vida!
Talvez seja a “inutilidade” que melhor faz à alma. Mais importante que haver um dia mundial da poesia é guardar um cantinho de cada dia para a poesia. Ganhar o hábito de ler um poema ou dois por dia é uma medida de profunda sabedoria e utilidade.
Há na poesia a profundidade das grandes ideias, a melodia da música, a delicadeza dos sentimentos explicados em palavras majestosas e precisas.
Quando decidimos mergulhar os olhos num poema devemos estar preparados para as emoções a que, inexoravelmente, nos transportará. Umas vezes, vaguearemos entre mares revoltos e perigosos, noutras abandonaremos o corpo e a mente ao doce prazer de viver.
A poesia é um bem delicado, caprichoso, misterioso e profundamente sedutor. Deve ser tratado como prima-dona que é! Cada estrofe, cada verso precisa de ser admirado com atenção, pois muitas vezes contém uma mensagem secreta que só almas atentas conseguem decifrar.
Como uma sobremesa gourmet, deve ser saboreada devagar, apreciando cada sensação: a textura das ideias, o cheiro das emoções, o sabor dos sentimentos, o som das sílabas, a beleza das metáforas, hipérboles e personificações.
Cada poema, cada poeta são seres únicos e irrepetíveis. Devemos deixá-los entrar nas nossas vidas e torná-los num segredo só nosso.
Deixo-vos dois poemas de dois poetas portugueses que admiro muito. Deixem que eles penetrem o vosso dia durante alguns minutos.


RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA



Para que ela tivesse um pescoço tão fino

Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa


Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Solitária exilada sem destino
Ávidos cruéis e fraudulentos


Sophia de Mello Breyner


SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga

sábado, 17 de janeiro de 2015

MIGUEL TORGA


Há vinte anos, quando a noite caia fria sobre Coimbra e eu descia da faculdade para a Baixa ao encontro de alguns amigos para uma animada tertúlia antes do jantar, um amigo de toda a vida atirou, meio a medo, enquanto caminhávamos: “Gabriel, o Miguel Torga morreu!” Eles sabiam quanto gostava do escritor transmontano que amou Coimbra com a própria vida.
Na verdade, Miguel Torga foi o grande responsável por eu hoje gostar tanto de literatura e de escrever. Descobri-o ainda adolescente, quando li  “Os Bichos”, mas conheci-o, verdadeiramente, no início da década de noventa, quando devorei quase todos os seus livros, após comprá-los um por um, com o dinheiro da minha semanada.



Amei a sua escrita como a de nenhum outro escritor. Depois dos iniciáticos “Bichos” e “Novos Contos da Montanha”, parti à descoberta daquele escritor tão telúrico, tão íntegro, tão livre, no romance autobiográfico “Criação do Mundo”, publicado em vários volumes. Depois peguei no seu “Diário”, onde se registou e registou o Portugal do seu tempo, o mundo em que viveu, as transformações da europa, a reconquista da liberdade e da democracia. Pelo meio, Torga lá deixava cair algumas das suas pérolas poéticas que me fizeram também tentar escrever poesia.



A sua poesia, reunida em “Obra Poética” está espalhada em pequenos livros de poesia e nas várias edições de “Diário”. Ela tem a força brutal da natureza e do Homem. Quando lemos um poema de Torga sentimos a beleza incomensurável que se vê da Galafura, a dor dum filho que acaba de perder uma mãe, o espírito inquieto dum Orpheu Rebelde. NA verdade, recebemos quase sempre uma “Prenda de Aniversário”, que parece que nos resume a vida:
É o que ficou.
A lembrança perene
Do que fomos, sentimos e pudemos
No tempo intemporal da juventude.
Ilusões de energia e de saúde
Em cada gesto que já não fazemos,
Mas apetecemos.
É o vazio de nós
Cheio de nós.
As indeléveis pegadas que deixamos
Nos líricos caminhos percorridos
Invisíveis à vista desarmada.
É o que ficou. O calor memorado
Da fogueira apagada.
Todos os Orientes da imaginação,
Visitados,
Presentes no arroz quotidiano
Comido destramente
Com triviais tridentes
Ocidentais.
É o que ficou e ficará, Mulher.
A cinza destes versos invernais
De amor e de tristeza,
E a íntima certeza
De que é tudo verdade
O que de nós disser
A mudez da saudade.


É difícil perceber/dizer o que Miguel Torga fez melhor: poesia ou escrever contos. Apesar de tudo, inclino-me para a narrativa. “Os Bichos”, “Contos da Montanha”, “Novos Contos da Montanha”, “Criação do Mundo” são livros extraordinários que revelam uma escrita simples e bela, onde abundam recursos expressivos de grande qualidade poética, misturados com uma mensagem objetiva, criada a partir de realidades que todos conhecem.
Não há ninguém que tenha descrito melhor o Portugal real dos tempos da ditadura do que o sisudo Dr. Adolfo Rocha, verdadeiro nome do escritor Miguel Torga. Está lá a ruralidade, o atraso cultural do povo, a falta de instrução, as dificuldades económicas, a vida de dificuldades, mas também a integridade, a alegria de viver, a honestidade portuguesas.
Torga era um homem profundamente livre e sem medo. A ditadura dava os primeiros passos e ele apontava-lhe o dedo. Esteve preso três meses, os seus livros foram proibidos durante algum tempo e houve edições retiradas à pressa das livrarias, mas depois o bom senso acabou por prevalecer. Ele não era político, era humanista.



Essa humanidade está também presente na sua relação com Deus. Miguel Torga foi o escritor ateu mais católico que conheci. A sua obra é também uma profunda dialética com Deus. Aquele Deus que o inquietava, porque duvidava da sua existência, e aquele Deus que vivia nas crenças dos portugueses que ele respeitava e aceitava.
A liberdade de Torga via-se na independência que sempre patenteou. O traço mais evidente dessa independência é que todos os seus livros foram edições de autor, pagas pelo próprio, no papel mais simples possível. Foi assim quando era um jovem escritor desconhecido, foi assim quando todos se curvavam perante as suas palavras, os seus pensamentos, a sua presença.



É certo que faltou o Nobel a Miguel Torga, numa falha grave da Academia Sueca para com a língua portuguesa, no entanto o escritor de S. Martinho de Anta teve sempre o reconhecimento literário dos seus pares e dos seus leitores. Ganhou o maior prémio da literatura portuguesa – o Prémio Camões -,  ganhou inúmeros outros galardões literários quer em Portugal quer no estrangeiro e ganhou, sobretudo um lugar no coração de toda uma geração que guarda os seus livros como uma relíquia preciosa de que jamais se separará.

Gabriel Vilas Boas