Há vinte anos,
quando a noite caia fria sobre Coimbra e eu descia da faculdade para a Baixa ao
encontro de alguns amigos para uma animada tertúlia antes do jantar, um amigo
de toda a vida atirou, meio a medo, enquanto caminhávamos: “Gabriel, o Miguel Torga
morreu!” Eles sabiam quanto gostava do escritor transmontano que amou Coimbra
com a própria vida.
Na verdade,
Miguel Torga foi o grande responsável por eu hoje gostar tanto de literatura e
de escrever. Descobri-o ainda adolescente, quando li “Os Bichos”, mas conheci-o, verdadeiramente,
no início da década de noventa, quando devorei quase todos os seus livros, após
comprá-los um por um, com o dinheiro da minha semanada.
Amei a sua
escrita como a de nenhum outro escritor. Depois dos iniciáticos “Bichos” e “Novos
Contos da Montanha”, parti à descoberta daquele escritor tão telúrico, tão
íntegro, tão livre, no romance autobiográfico “Criação do Mundo”, publicado em
vários volumes. Depois peguei no seu “Diário”, onde se registou e registou o
Portugal do seu tempo, o mundo em que viveu, as transformações da europa, a
reconquista da liberdade e da democracia. Pelo meio, Torga lá deixava cair algumas das suas pérolas poéticas que me fizeram também tentar escrever poesia.
A sua poesia,
reunida em “Obra Poética” está espalhada em pequenos livros de poesia e nas
várias edições de “Diário”. Ela tem a força brutal da natureza e do Homem.
Quando lemos um poema de Torga sentimos a beleza incomensurável que se vê da
Galafura, a dor dum filho que acaba de perder uma mãe, o espírito inquieto dum
Orpheu Rebelde. NA verdade, recebemos quase sempre uma “Prenda de Aniversário”,
que parece que nos resume a vida:
É
o que ficou.
A lembrança perene
Do que fomos, sentimos e pudemos
No tempo intemporal da juventude.
Ilusões de energia e de saúde
Em cada gesto que já não fazemos,
Mas apetecemos.
É o vazio de nós
Cheio de nós.
As indeléveis pegadas que deixamos
Nos líricos caminhos percorridos
Invisíveis à vista desarmada.
É o que ficou. O calor memorado
Da fogueira apagada.
Todos os Orientes da imaginação,
Visitados,
Presentes no arroz quotidiano
Comido destramente
Com triviais tridentes
Ocidentais.
É o que ficou e ficará, Mulher.
A cinza destes versos invernais
De amor e de tristeza,
E a íntima certeza
De que é tudo verdade
O que de nós disser
A mudez da saudade.
A lembrança perene
Do que fomos, sentimos e pudemos
No tempo intemporal da juventude.
Ilusões de energia e de saúde
Em cada gesto que já não fazemos,
Mas apetecemos.
É o vazio de nós
Cheio de nós.
As indeléveis pegadas que deixamos
Nos líricos caminhos percorridos
Invisíveis à vista desarmada.
É o que ficou. O calor memorado
Da fogueira apagada.
Todos os Orientes da imaginação,
Visitados,
Presentes no arroz quotidiano
Comido destramente
Com triviais tridentes
Ocidentais.
É o que ficou e ficará, Mulher.
A cinza destes versos invernais
De amor e de tristeza,
E a íntima certeza
De que é tudo verdade
O que de nós disser
A mudez da saudade.
É difícil
perceber/dizer o que Miguel Torga fez melhor: poesia ou escrever contos. Apesar de tudo,
inclino-me para a narrativa. “Os Bichos”, “Contos da Montanha”, “Novos Contos
da Montanha”, “Criação do Mundo” são livros extraordinários que revelam uma
escrita simples e bela, onde abundam recursos expressivos de grande qualidade
poética, misturados com uma mensagem objetiva, criada a partir de realidades que
todos conhecem.
Não há ninguém
que tenha descrito melhor o Portugal real dos tempos da ditadura do que o
sisudo Dr. Adolfo Rocha, verdadeiro nome do escritor Miguel Torga. Está lá a
ruralidade, o atraso cultural do povo, a falta de instrução, as dificuldades
económicas, a vida de dificuldades, mas também a integridade, a alegria de
viver, a honestidade portuguesas.
Torga era um
homem profundamente livre e sem medo. A ditadura dava os primeiros passos e ele
apontava-lhe o dedo. Esteve preso três meses, os seus livros foram proibidos
durante algum tempo e houve edições retiradas à pressa das livrarias, mas
depois o bom senso acabou por prevalecer. Ele não era político, era humanista.
Essa humanidade
está também presente na sua relação com Deus. Miguel Torga foi o escritor ateu
mais católico que conheci. A sua obra é também uma profunda dialética com Deus.
Aquele Deus que o inquietava, porque duvidava da sua existência, e aquele Deus
que vivia nas crenças dos portugueses que ele respeitava e aceitava.
A liberdade de
Torga via-se na independência que sempre patenteou. O traço mais evidente dessa
independência é que todos os seus livros foram edições de autor, pagas pelo
próprio, no papel mais simples possível. Foi assim quando era um jovem escritor
desconhecido, foi assim quando todos se curvavam perante as suas palavras, os
seus pensamentos, a sua presença.
É certo que
faltou o Nobel a Miguel Torga, numa falha grave da Academia Sueca para com a
língua portuguesa, no entanto o escritor de S. Martinho de Anta teve sempre o
reconhecimento literário dos seus pares e dos seus leitores. Ganhou o maior
prémio da literatura portuguesa – o Prémio Camões -, ganhou inúmeros outros galardões literários
quer em Portugal quer no estrangeiro e ganhou, sobretudo um lugar no coração de
toda uma geração que guarda os seus livros como uma relíquia preciosa de que
jamais se separará.
Gabriel Vilas Boas
Sou uma apaixonada pela leitura do Torga.
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