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domingo, 21 de abril de 2019

PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
sophia de mello breyner andresen

sábado, 11 de junho de 2016

AS PESSOAS SENSÍVEIS


11 de junho de 1999 – Sophia de Mello Breyner ganha o PRÉMIO CAMÕES,  o maior galardão da literatura portuguesa.
Dez anos após Miguel Torga receber o primeiro galardão, Sophia via reconhecida toda um vida literária de exceção, onde a figura da mãe criou uma contista de livros juvenis “exemplares” e a mulher transbordava sensibilidade e coragem, na denúncia de um país reprimido.
A poesia de Sophia é ímpar. Ao lado da temática do amor, há a audaz crítica social, onde a ironia era uma arma própria de gente sábia. Recupero hoje um dos poemas que mais aprecio.

 PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a podre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Por não tinham outra
O dinheiro cheira a podre e cheira
 A roupa 
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra



«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo,
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas
Ó cheio de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
                                                                                               Sophia de Mello Breyner, in Livro Sexto, 1962


Todo o poema é uma crítica mordaz e sonora à hipocrisia daquelas pessoas que fingem uma santidade e retidão inquestionáveis e vivem despudoradamente à custa dos outros.
A ironia marca o tom do poema desde a primeira estrofe, que assumirá contornos mais duros nos versos seguintes, quando a poetiza cataloga como podridão moral a atitude daqueles que vivem à custa do suor (trabalho) dos outros.

A tripla apóstrofe anafórica da penúltima estrofe é um grito de revolta e indignação da poetiza perante todos aqueles que conscientemente (“por eles sabem o que fazem”) se ufanam de grandes virtudes quando aplicam os piores sofrimentos a gente indefesa e humilde.
Sophia termina como começou: irónica, porque não acho que deseje o perdão de Deus para estas “pessoas sensíveis”. Afinal elas sabem bem o que fazem e nós também sabemos.
Há mais de cinquenta anos que o sabemos como Sophia sabia e por isso, incomodada, o denunciou. Valeu de muito pouco, porque continuamos estupidamente sensíveis a pessoas hipocritamente sensíveis.

GAVB

sábado, 21 de março de 2015

DIA MUNDIAL DA POESIA


A poesia é a sobremesa da vida!
Talvez seja a “inutilidade” que melhor faz à alma. Mais importante que haver um dia mundial da poesia é guardar um cantinho de cada dia para a poesia. Ganhar o hábito de ler um poema ou dois por dia é uma medida de profunda sabedoria e utilidade.
Há na poesia a profundidade das grandes ideias, a melodia da música, a delicadeza dos sentimentos explicados em palavras majestosas e precisas.
Quando decidimos mergulhar os olhos num poema devemos estar preparados para as emoções a que, inexoravelmente, nos transportará. Umas vezes, vaguearemos entre mares revoltos e perigosos, noutras abandonaremos o corpo e a mente ao doce prazer de viver.
A poesia é um bem delicado, caprichoso, misterioso e profundamente sedutor. Deve ser tratado como prima-dona que é! Cada estrofe, cada verso precisa de ser admirado com atenção, pois muitas vezes contém uma mensagem secreta que só almas atentas conseguem decifrar.
Como uma sobremesa gourmet, deve ser saboreada devagar, apreciando cada sensação: a textura das ideias, o cheiro das emoções, o sabor dos sentimentos, o som das sílabas, a beleza das metáforas, hipérboles e personificações.
Cada poema, cada poeta são seres únicos e irrepetíveis. Devemos deixá-los entrar nas nossas vidas e torná-los num segredo só nosso.
Deixo-vos dois poemas de dois poetas portugueses que admiro muito. Deixem que eles penetrem o vosso dia durante alguns minutos.


RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA



Para que ela tivesse um pescoço tão fino

Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa


Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Solitária exilada sem destino
Ávidos cruéis e fraudulentos


Sophia de Mello Breyner


SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga