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domingo, 25 de julho de 2021

MENTIROSOS E HIPÓCRITAS SOMOS TODOS NÓS

 

Quem é que não se tem divertido com a revelação de algumas conversas íntimas do presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, que estão a ser divulgadas pelo jornal espanhol El Confidencial? Descontando o caso em que ele dá a entender que Pinto da Costa desviou para contas particulares na Suíça parte do dinheiro da transferência de Pepe para o Real Madrid, o que já foi prontamente esclarecido pelo próprio FC Porto e desmentido pelo próprio Pérez, e que terá sido só uma mau exemplo do que normalmente acontece, foi tudo cómico, acendendo sorrisos por todo o lado. Afinal, é sempre um prazer ver reacender os resquícios de sinceridade tremeluzindo no meio de tanta conveniente hipocrisia.


Diz Florentino Pérez que as suas declarações foram retiradas  do contexto. E em que contexto é que serão aceitáveis frases como «Figo é um filho da p...»? Melhoria seria que apelasse á nossa benevolência, pois, em última análise, todos somos Florentino Pérez, ou não vivêssemos num mundo que baniu a sinceridade da esfera pública, por só servir para gerar conflitos. Só na sua intimidade as pessoas podem entregar-se ao luxo da honestidade e da transparência e dizer o que realmente pensam dos outros. Em público estão obrigadas a colocar a máscara da hipocrisia e a debitarem mentiras convenientes. Verdades privadas, públicas mentiras. O que Florentino Pérez diz naquelas gravações de Figo, Mourinho e Ronaldo, por exemplo, é muito parecido com o que Figo, Mourinho e Ronaldo diziam dele quando chegavam a casa. Só que estes tiveram a sorte de não serem escutados por uma parede com ouvidos, e com um gravador incorporado. 


Quer dizer, não vale a pena esconder que mentirosos e hipócritas somos todos nós. Ou já não estaríamos vivos. Daí que, neste caso, a figura mais antipática acabe por ser o denunciante, que não respeitou esse supremo direito que nos assiste. Qual? O de sermos um bocadinho sinceros quando ninguém nos está a ouvir. Não é pedir muito, pois não?

Temos a sinceridade e a verdade em muito boa conta, mas no nosso trato quotidiano e público, elas presidem a uma ausência. Ou seria impossível a convivência (mais ou menos) pacífica. A mentira e a hipocrisia têm pior fama, mas são mais úteis no meio social, onde funcionam como amortecedores de conflitos e tensões. Graças a essa prática constante, a esse padrão, a capacidade de fingir do ser humano teve um desenvolvimento extraordinário. Ao ponto de a «máscara» (a palavra «hipocrisia» foi originalmente usada para qualificar atores que ocultavam a realidade por trás da máscara) se confundir com o rosto e já não ser possível separá-los. A nossa máscara é o nosso rosto, o nosso rosto é a nossa máscara. Já repararam nisto? E também que é cada vez mais difícil fazer certas distinções?


Cristiano Ronaldo é um imbecil e Mourinho é um anormal. Ambos têm um ego monstruoso e estão sempre com aquele ar de desafio que os torna insuportáveis. 

Isto é mentira, quer dizer, verdade. 

Cristiano Ronaldo é culto, inteligente, e Mourinho é uma simpatia. São ambos muito humildes e cultivam uma simplicidade que os torna cativantes.

Isto é verdade, quer dizer, mentira.

Álvaro Magalhães, escritor.

domingo, 6 de dezembro de 2020

DIGNIDADE SELETIVA

 


Este tema foi levantado, no início desta semana, pelo ministro francês da administração interna, Gerald Darmanin, quando atacou dois dos mais importantes jogadores da seleção gaulesa de futebol - Antoine Griezmann (Barcelona) e Kylian Mbappé (Paris Saint-Germain) por terem condenado veementemente (e bem) a  violenta ação da polícia francesa na prisão de um produtor musical negro e terem-se feito esquecidos quando 98 polícias ficaram feridos, ao tentar controlar um manifestação contra a nova lei de segurança, que o governo quer implementar.

O Racismo é a discriminação baseada na cor e não na cor negra. É tão digno um produtor musical negro como um polícia branco. E depois há a lei a ordem, que é preciso respeitar, mesmo que não concordemos com ela, até porque está assegurado o direito ao protesto, mas não à violência nem à dignidade seletiva.

Num país democrático até as leis são revertíveis, basta elegermos alguém que esteja disposto a isso. A violência é má. Não tem "mas", porque tem alternativa. A dignidade do ser humano é um bem absoluto. Não há dignidade negra nem branca ou amarela. Muito menos dignidade famosa ou anónima, rica ou pobre.

A maior tristeza que este Tempo me causa é a tendência para tomarmos atitudes cívicas ou públicas tendo como principal objetivo sermos notados, participarmos numa espécie de eleição de gente cool, preocupada, digna e decente. 

Não há mal nenhum em que a nossa posição seja pública, o que é perverso e egoísta é fazê-lo porque fica bem, porque queremos tirar dividendos disso. Seria bom que fosse público, quando fosse difícil de assumir para nós, e privado, quando a bendita da nossa imagem pudesse retirar disso qualquer benefício.

Esta preocupação com a imagem está a matar uma geração e um tempo tão capaz e tão inteligente, que dá pena ver tanta boa vontade e altruísmo cair aos pés da eterna vaidade.

Como diria Al Pacino no imortal "Advogado do Diabo", 

A Vaidade é o meu defeito predileto. 

terça-feira, 25 de junho de 2019

VIOLADA NA ONU

Phyllis Chesler foi violada na ONU. Proeminente feminista, buscou apoio no seu movimento e contou à líder, Gloria Steinem. Empurraram-na para o silêncio. O violador era um diplomata da Serra Leoa e mulher branca não acusa homem negro: o labéu do racismo mancharia o feminismo. Só as mulheres negras beberam a bica com ela. 

O feminismo caiu na armadilha de outro racismo. É anti-semita e camufla o sofrimento das mulheres islâmicas.Recomendaram a Phyllis a mordaça.
O feminismo ocidental só luta se o adversário for branco, de preferência de direita. Cala-se se o caso mete minorias étnicas.
«É cobarde», diz Phyllis, sua heroica militante. 

Manuel S. Fonseca 

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O IMPORTANTE NÃO É SER BOM, MAS PARECER BOM!


O culto da imagem está refinadíssimo. Os melhores de cada área estão assessorados por gente do marketing que estuda ao pormenor como rentabilizar cada atuação pública. Isto tanto se aplica a um cantor ou ator como a um jogador de futebol ou a um empresário. A imagem não é tudo, mas é quase tudo. O que mais vende são as emoções e entre estas as ações de solidariedade e altruísmo. Num tempo de imediatismo, os fãs já nem exigem provas ou factos, antes se contentam com intenções, tal é a fé que têm na benignidade das intenções dos seus ídolos.
Popstrar que se prese não pode passar um Natal sem anunciar uma ação de bondade que o diferencie dos demais. Está inscrito no manual de estilo de qualquer cadeira de marketing, imagem & comunicação.

Hoje passou pelas headlines dos serviços noticiosos a inocente intenção de Cristiano Ronaldo financiar um hospital pediátrico em Santiago do Chile em… 2020. (https://www.jn.pt/mundo/interior/cristiano-ronaldo-constroi-hospital-pediatrico-em-santiago-do-chile-8995518.html)

É bem possível que Ronaldo não seja o melhor exemplo desta hipocrisia que grassa no mundo das superestrelas, mas não deixa de ser sintomático que a notícia saia em época natalícia nem que a bondade de Ronaldo se dirija a crianças e estas se situem num continente onde o craque português quer expandir a sua marca. É altamente provável que Ronaldo concretize a sua intenção, pois o madeirense gosta de cumprir as suas promessas, mas também não deixa de ser claro que a intenção altruísta de Ronaldo tem como por objetivo melhorar ainda mais a sua imagem no continente americano, onde ainda é possível expandir a sua marca comercial.

O Natal é uma ótima época para observarmos o ser humano em diversas dimensões. Há o amor, a gratidão, a bondade, o altruísmo, o arrependimento, mas também a hipocrisia e o aproveitamento comercial das emoções dos outros. Em cada ano que passa, fico cada vez mais com a sensação que mais importante que ser bom é ser autêntico e por isso mais vale a omissão que o fingimento e o aproveitamento.
GAVB

domingo, 25 de dezembro de 2016

O NATAL E A SOLIDARIEDADE



António Gedeão, num dos seus poemas mais irónicos e mordazes, referiu-se ao Natal como “O dia de ser bom /(…) dia de pensar nos outros – coitadinhos – os que padecem / de lhes darmos coragem para continuar a aceitar a sua miséria”.

Lembrei-me muitas vezes deste poema nos últimos dias, em que quase todas as reportagens jornalísticas nos brindavam com sessões de solidariedade, como se houvesse um concurso para premiar a instituição mais solidária, a família mais solidária, a figura pública mais solidária. 
A ceia solidária X, os não sei quantos sem-abrigo que foram jantar à Associação Y (e lá aparece o presidente benemérito, ufano da sua caridadezinha de calendário). Como se sentirão aquelas pessoas que foram objeto dessa solidariedade, ao verem-se transformadas numa espécie de atração de natal, pousando para a foto do outro como coitadinho?

Claro que o Natal apela aos sentimentos mais nobres em quase todos nós, mas por que é que eles desaparecem logo de seguida? Por que é que estas pessoas têm necessidade de se autopromover? Por que é que estas ações não se multiplicam pelo resto do ano, ou melhor, por que é que elas são ainda tão necessários?

A solidariedade é um ato de contrição social! Não mais do que isso. É o reconhecimento de que, de algum modo, falhámos e procuramos, agora, remediar a situação. Não fomos nós, foi o outro? Isso pouco interessa; como grupo, falhámos!

A solidariedade não é um selfie de Natal para colocar nas redes sociais. Há imenso solidariedade por fazer ao nível dos afetos e outra tanta por fazer e calar. 
Temo que um dia destes, algum repórter mais insensível cometa a loucura de perguntar a um sem-abrigo algo do género: “Então, gostou da ação solidária da …..? Que nota lhe dá?”. Já faltou menos.

No Natal há solidariedade; é natural que haja mais predisposição a isso, mas não é natural que que ela se transforme num desfile de vaidades.

Gabriel Vilas Boas

sábado, 11 de junho de 2016

AS PESSOAS SENSÍVEIS


11 de junho de 1999 – Sophia de Mello Breyner ganha o PRÉMIO CAMÕES,  o maior galardão da literatura portuguesa.
Dez anos após Miguel Torga receber o primeiro galardão, Sophia via reconhecida toda um vida literária de exceção, onde a figura da mãe criou uma contista de livros juvenis “exemplares” e a mulher transbordava sensibilidade e coragem, na denúncia de um país reprimido.
A poesia de Sophia é ímpar. Ao lado da temática do amor, há a audaz crítica social, onde a ironia era uma arma própria de gente sábia. Recupero hoje um dos poemas que mais aprecio.

 PESSOAS SENSÍVEIS
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a podre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Por não tinham outra
O dinheiro cheira a podre e cheira
 A roupa 
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra



«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo,
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas
Ó cheio de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
                                                                                               Sophia de Mello Breyner, in Livro Sexto, 1962


Todo o poema é uma crítica mordaz e sonora à hipocrisia daquelas pessoas que fingem uma santidade e retidão inquestionáveis e vivem despudoradamente à custa dos outros.
A ironia marca o tom do poema desde a primeira estrofe, que assumirá contornos mais duros nos versos seguintes, quando a poetiza cataloga como podridão moral a atitude daqueles que vivem à custa do suor (trabalho) dos outros.

A tripla apóstrofe anafórica da penúltima estrofe é um grito de revolta e indignação da poetiza perante todos aqueles que conscientemente (“por eles sabem o que fazem”) se ufanam de grandes virtudes quando aplicam os piores sofrimentos a gente indefesa e humilde.
Sophia termina como começou: irónica, porque não acho que deseje o perdão de Deus para estas “pessoas sensíveis”. Afinal elas sabem bem o que fazem e nós também sabemos.
Há mais de cinquenta anos que o sabemos como Sophia sabia e por isso, incomodada, o denunciou. Valeu de muito pouco, porque continuamos estupidamente sensíveis a pessoas hipocritamente sensíveis.

GAVB

sábado, 17 de outubro de 2015

A POBREZA DEIXOU DE SER UM PROBLEMA - TORNOU-SE UM ÍCONE DE CALENDÁRIO


Em meados do mês de outubro, as escolas procuram sensibilizar os alunos para dois problemas verdadeiramente importantes para a sociedade e para a sua formação: a alimentação e a pobreza. Os temas até se podem relacionar, mas, ano após ano, a maneira como as escolas portugueses os têm vindo abordar têm sido de uma frouxidão e desistência alarmantes. A desmotivação da classe docente não explica tudo! Creio que em cada dia que passa cada um de nós desfoca um bocadinho o nosso coração do essencial.
Hoje é o dia internacional da erradicação da pobreza. É só mais um dia p’ró calendário das comemorações!!! Sim, não é provocação do autor, pois é assim que muitas vezes é apresentado aos alunos, como se a pobreza fosse alguma coisa que suscitasse comemorações ou a sua erradicação estivesse ali ao virar da esquina.

Sempre detestei a palavra “erradicação”. A maioria das crianças, adolescentes ou jovens nem sabe o que significa. Além disso, é tão utópica quanto estúpida, pois não vamos erradicar pobreza nenhuma nas próximas dezenas de anos.
Desde que o homem passou a assinalar este dia de luta contra a pobreza para calar a sua hipócrita consciência, a pobreza tem aumentado assustadoramente por todo o mundo. Já não é só um fenómeno da África pobre e inculta ou da Ásia que não sabe usar métodos contracetivos. É um problema também dos países superdesenvolvidos. Na América de Obama há milhões de pobres, na Europa da zona Euro há milhões de pobres, no país das Maravilhas de Passos Coelhos há milhões de pobres. Isto não é discurso barato, é estatística pura.


Recentemente, a propaganda daqueles que nem um minuto de silêncio pelas vítimas da fome respeitam, dizem que o problema radica na pobreza de espírito de muitos indigentes. Tão conveniente, mas tão mentiroso e tão hipócrita.
É verdade que grande parte dos pobres tem pouca ou nenhuma instrução, mas o problema não é esse, no essencial. O problema está na “porcaria” de seres humanos em que nos tornámos, incapazes de distribuir os excedentes agrícolas a quem realmente precisa, incapazes de matar a fome à imensa legião que habita perto de nós. Obviamente não trazem um letreiro na testa, mas um pouquinho de interesse da nossa parte descobria muito por onde ajudar.
Não preciso de dias de luta contra a pobreza no calendário, preciso de parceiros que lutem todos os dias para que a pobreza diminua. Que amanhã haja menos um esfomeado que hoje e que isso se faça sem nenhuma publicidade, que ofende a dignidade de quem recebe.
Ontem, uns miúdos da minha escola faziam um minuto de silêncio em memória das vítimas da fome e pobreza em todo o mundo. Tinham o semblante fechado e erguiam cartazes simples e elucidativos. Estavam na escadaria da entrada principal da escola. Quase ninguém lhes ligou. Entretanto, perante a estupefacção das duas colegas que tinham organizado aquele simples momento de homenagem, uma professora apressada para fumar o seu cigarro, na rua, queria furar pelo meio deles interrompendo-lhes a sentida e singela homenagem que faziam. Foi preciso dizer à senhora que esperasse vinte segundos ou então que contornasse o grupo lateralmente e saísse de fininho por detrás deles. Ela preferiu não esperar. Aquelas duas dezenas de alunos devem ter anotado o exemplo. Há momentos em que quem serve a escola é muito pobre de espírito.

Gabriel Vilas Boas 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

ANTÓNIO GEDEÃO


Até 1996 conhecia mal António Gedeão. Como a maioria dos portugueses, sabia que tinha escrito a “Pedra Filosofal”, esse extraordinário poema sobre o sonho feito vida, que Manuel Freire transformou em canção e deu a conhecer aos outros 99% que não se interessam por poesia.
Nesse ano final de ano de 1996, resolvi escolher a poesia de António Gedeão para a minha primeira avaliação de estágio profissional e lancei-me na extraordinária aventura de descobrir este poeta. E foi uma descoberta maravilhosa.
O magnífico professor de Físico-Química, Rómulo de Carvalho, foi poeta ainda mais valeroso. Entre 1956 e 1967, António Gedeão (pseudónimo literário do professor Rómulo de Carvalho) escreveu poemas de grande qualidade poética, literária e humanidade.


Logo em “Movimento Perpétuo” (1956) declara acerca do Homem

“É inútil definir este animal aflito
Nem palavras
Nem cinzéis
Nem acordes,
Nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão,
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.”

E acrescenta em “impressão Digital”

Os meus olhos são uns olhos
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde os outros com outros olhos
 não veem escolhos nenhuns”

para nos explicar que somos diferentes e por isso temos diferentes interpretações duma mesma realidade, sendo que a nossa interpretação não é melhor nem pior do que a do outro. Mais do que afirmar a “impressão digital” de cada personalidade, acho que António Gedeão quis provar que o respeito perante o outro é uma atitude sábia e justa.

Ainda neste primeiro livro de poemas, António Gedeão deixou a sua pedra poética mais preciosa e famosa: Pedra Filosofal. É um poema longamente belo, onde o professor de Física e de Química utiliza as duras palavras da ciência para provar quanto ela reluzem dentro do poema.
Quando Manuel Freire o transformou em música, toda a gente pode perceber o magnífico trabalho poético feito por António Gedeão e rapidamente a canção foi adotada como um hino de todos aqueles que almejavam o regresso da liberdade em Portugal.



Em 1958, António Gedeão publica “De Teatro do Mundo” que contém, entre outros, o poema Calçada de Carriche, onde António Gedeão chama a atenção para o corre-corre extenuante de muitas mulheres do povo que viviam a mil à hora, desdobrando-se em múltiplas tarefas, diariamente, sem nunca desfrutarem duma folga, dum momento de descanso. A chave do poema é o ritmo. Feito de versos curtos e repetições, se declamado apropriadamente, a impressão que causa no leitor é a sensação extenuante duma vida pesada, vivida por muitas mulheres portuguesas. Cinquenta anos de depois, este poema continua a fazer muito sentido.
A década de sessenta do século passado dará à luz mais dois livros de poemas do autor de "Pedra Filosofal". No primeiro – Máquina de Fogo – destacam-se dois poemas: Lágrima de Preta e Dia de Natal.
“Lágrima de Preta” é a mais bela demonstração científica da estupidez do racismo. Aprendemos este poema nos bancos da escola, mas a sua mensagem, infelizmente, ainda não foi captada por todos.

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
(…)
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.



O poema "Dia Natal" é um exercício irónico sobre a hipocrisia de muitos pseudo bons sentimentos de pacotilha.

“Hoje é dia de ser bom
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
De falar e de ouvir com mavioso tom
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças”

No quatro livro publicado – Linhas de Força (1967) – António Gedeão brinda-nos com “Poema para Galileu”, de quem falei há dias. Trata-se de mais um poema longo, que relata a história de Galileu e a paciência do velho matemático e astrónomo com a intolerância humana quando vê ameaçado o seu irrisório poder. 


"(…)
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade. 

Por isso estoicamente, mansamente, 

resististe a todas as torturas, 

a todas as angústias, a todos os contratempos, 

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas, 

foram caindo, 

caindo, 

caindo sempre, 

e sempre, 

ininterruptamente, 

na razão direta do quadrado dos tempos. "



Pouco depois de ter conhecido tudo isto e muito mais, António Gedeão deu por finda a sua longa viagem no planeta Terra. Foi a 19 de fevereiro de 1997. E eu fiquei extremamente grato a quem me obrigou a tropeçar em mais que uma pedra filosofal, o que mudou para sempre a minha consideração por este excecional poeta.

Gabriel Vilas Boas

terça-feira, 8 de julho de 2014

O MISANTROPO, de MOLIÈRE



   Molière é dos dramaturgos mais famosos de todos os tempos. O escritor francês viveu no século XVII e conviveu com toda a frivolidade cortesã da corte de Luís XIV, sendo, por isso, um atento observador dos defeitos morais da sociedade francesa do seu tempo. Captou-lhe os tiques, as fraquezas morais, as modas da classe dirigente, a entourage que vivia à sua custa.As suas peças são maioritariamente comédias satíricas que visam de modo direto os costumes sociais, por vezes, muito censuráveis.

   Hoje falo-vos do MISANTROPO. Esta peça foi escrita no curioso ano de 1666 e parodia um homem assumidamente anti-social que recusa todas as regras e convenções da sociedade em que vive e não considera ninguém suficientemente digno de se lhe comparar. 
   Esse homem é Alceste, o misantropo, que odeia o falso honnête-homme e todas as hipocrisias que rodeiam a corte. Molière, como a maioria dos escritores da época, frequentava a corte e por isso sabia bem do que falava.
   O que prende leitor e espetador é a ironia que perpassa a vida do misantropo. Alceste, o homem que se autoexclui da sociedade porque se revolta contra a hipocrisia da maioria das relações sociais acaba por se apaixonar por uma viúva jovem vaidosa e deslumbrada, que tem o comportamento exatamente oposto ao dele. Não há nada em comum entre eles.


   O embate de Alceste com sua amada Célimène é contado em cinco atos, com uma homogeneidade perfeita em versos de rimas ricas. 
   Alceste é obrigado a frequentar a corte que tão abominava, por amor de Célimène e isso torna-o um ser melancólico e enfastiado com a hipocrisia reinante na corte de Luís XIV. 
   Alceste vive duplamente angustiado: com a personalidade da mulher que ama e com ele, por não se sentir corrompido por um modelo social que detesta, mas que o envolve. 

  Além do drama de Alceste e da irónica lição de moral que Molière prega ao seu excesso e rígido moralismo, a comédia O MISANTROPO concentra-se em fotografar a alta burguesia, a nobreza e a realeza do século XVII, através de um retrato claramente exagerado. Aliás, a única maneira de criticar algo ou alguém na altura seria exagerar determinadas características para não ofender directamente os visados.

    Philinte, amigo de Alceste, tenta constantemente chamá-lo à conveniente razão e tenta fazer com que o amigo veja que é necessário, muitas vezes, ceder ao cinismo e à hipocrisia para alcançar a paz e o sucesso social. É necessário usar máscaras para nos integrarmos. 

    No entanto, Alceste não atende às razões do amigo. Ele continua a pugnar por um mundo ideal. Jamais aceita que a vida em sociedade exige uma série de relações convencionais e superficiais. É impossível tornar amizades de dois dias em amizades de dois anos; é inviável pensar que todos têm as melhores intenções a nosso respeito, especialmente quando aceitamos como humanos certos defeitos morais como a inveja, o orgulho, a vaidade ou a arrogância. Para viver em sociedade, torna-se, então, imperioso fingir, ou seja, ser hipócrita.
 


   A comédia satírica de Molière aborda ainda outros motivos através das diversas personagens que compõem o enredo. Temos um cortesão com pretensões a literato, evocando o cómico e o ridículo (Oronte), uma "coquette" (Célimène), uma rapariga estranhamente sincera considerando o meio em que se insere (Éliante), uma falsa puritana (Arsinoé) e mais algumas personagens sem grande relevância mas que provocam umas quantas gargalhadas. 
   Como resolve Molière o drama de Alceste? Inovando! A inovação de Molière em O Misantropo é a introdução de uma carta que vai desmascarar Célimène e que vai pôr em evidência um dos ensinamentos daquele século: as confidências são perigosas e para estarmos bem com todos é necessário ser dotado duma grande “qualidade” social: a hipocrisia.

Gabriel Vilas Boas