Até 1996 conhecia mal António Gedeão. Como a maioria dos portugueses, sabia que tinha escrito a “Pedra Filosofal”, esse extraordinário poema sobre o sonho feito vida, que Manuel Freire transformou em canção e deu a conhecer aos outros 99% que não se interessam por poesia.
Nesse ano final de ano de 1996, resolvi escolher a poesia de António Gedeão para a minha primeira avaliação de estágio profissional e lancei-me na extraordinária aventura de descobrir este poeta. E foi uma descoberta maravilhosa.
O magnífico professor de Físico-Química, Rómulo de Carvalho, foi poeta ainda mais valeroso. Entre 1956 e 1967, António Gedeão (pseudónimo literário do professor Rómulo de Carvalho) escreveu poemas de grande qualidade poética, literária e humanidade.
Logo em “Movimento Perpétuo” (1956) declara acerca do Homem
Nem palavras
Nem cinzéis
Nem acordes,
Nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão,
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.”
E acrescenta em “impressão Digital”
“Os meus olhos são uns olhos
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde os outros com outros olhos
não veem escolhos nenhuns”
para nos explicar que somos diferentes e por isso temos diferentes interpretações duma mesma realidade, sendo que a nossa interpretação não é melhor nem pior do que a do outro. Mais do que afirmar a “impressão digital” de cada personalidade, acho que António Gedeão quis provar que o respeito perante o outro é uma atitude sábia e justa.
Ainda neste primeiro livro de poemas, António Gedeão deixou a sua pedra poética mais preciosa e famosa: Pedra Filosofal. É um poema longamente belo, onde o professor de Física e de Química utiliza as duras palavras da ciência para provar quanto ela reluzem dentro do poema.
Quando Manuel Freire o transformou em música, toda a gente pode perceber o magnífico trabalho poético feito por António Gedeão e rapidamente a canção foi adotada como um hino de todos aqueles que almejavam o regresso da liberdade em Portugal.
Em 1958, António Gedeão publica “De Teatro do Mundo” que contém, entre outros, o poema Calçada de Carriche, onde António Gedeão chama a atenção para o corre-corre extenuante de muitas mulheres do povo que viviam a mil à hora, desdobrando-se em múltiplas tarefas, diariamente, sem nunca desfrutarem duma folga, dum momento de descanso. A chave do poema é o ritmo. Feito de versos curtos e repetições, se declamado apropriadamente, a impressão que causa no leitor é a sensação extenuante duma vida pesada, vivida por muitas mulheres portuguesas. Cinquenta anos de depois, este poema continua a fazer muito sentido.
A década de sessenta do século passado dará à luz mais dois livros de poemas do autor de "Pedra Filosofal". No primeiro – Máquina de Fogo – destacam-se dois poemas: Lágrima de Preta e Dia de Natal.
“Lágrima de Preta” é a mais bela demonstração científica da estupidez do racismo. Aprendemos este poema nos bancos da escola, mas a sua mensagem, infelizmente, ainda não foi captada por todos.
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
(…)
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
O poema "Dia Natal" é um exercício irónico sobre a hipocrisia de muitos pseudo bons sentimentos de pacotilha.
“Hoje é dia de ser bom
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
De falar e de ouvir com mavioso tom
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças”
No quatro livro publicado – Linhas de Força (1967) – António Gedeão brinda-nos com “Poema para Galileu”, de quem falei há dias. Trata-se de mais um poema longo, que relata a história de Galileu e a paciência do velho matemático e astrónomo com a intolerância humana quando vê ameaçado o seu irrisório poder.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão direta do quadrado dos tempos. "
Pouco depois de ter conhecido tudo isto e muito mais, António Gedeão deu por finda a sua longa viagem no planeta Terra. Foi a 19 de fevereiro de 1997. E eu fiquei extremamente grato a quem me obrigou a tropeçar em mais que uma pedra filosofal, o que mudou para sempre a minha consideração por este excecional poeta.
Gabriel Vilas Boas
Gabriel Vilas Boas
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