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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

ANTÓNIO GEDEÃO


Até 1996 conhecia mal António Gedeão. Como a maioria dos portugueses, sabia que tinha escrito a “Pedra Filosofal”, esse extraordinário poema sobre o sonho feito vida, que Manuel Freire transformou em canção e deu a conhecer aos outros 99% que não se interessam por poesia.
Nesse ano final de ano de 1996, resolvi escolher a poesia de António Gedeão para a minha primeira avaliação de estágio profissional e lancei-me na extraordinária aventura de descobrir este poeta. E foi uma descoberta maravilhosa.
O magnífico professor de Físico-Química, Rómulo de Carvalho, foi poeta ainda mais valeroso. Entre 1956 e 1967, António Gedeão (pseudónimo literário do professor Rómulo de Carvalho) escreveu poemas de grande qualidade poética, literária e humanidade.


Logo em “Movimento Perpétuo” (1956) declara acerca do Homem

“É inútil definir este animal aflito
Nem palavras
Nem cinzéis
Nem acordes,
Nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão,
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.”

E acrescenta em “impressão Digital”

Os meus olhos são uns olhos
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde os outros com outros olhos
 não veem escolhos nenhuns”

para nos explicar que somos diferentes e por isso temos diferentes interpretações duma mesma realidade, sendo que a nossa interpretação não é melhor nem pior do que a do outro. Mais do que afirmar a “impressão digital” de cada personalidade, acho que António Gedeão quis provar que o respeito perante o outro é uma atitude sábia e justa.

Ainda neste primeiro livro de poemas, António Gedeão deixou a sua pedra poética mais preciosa e famosa: Pedra Filosofal. É um poema longamente belo, onde o professor de Física e de Química utiliza as duras palavras da ciência para provar quanto ela reluzem dentro do poema.
Quando Manuel Freire o transformou em música, toda a gente pode perceber o magnífico trabalho poético feito por António Gedeão e rapidamente a canção foi adotada como um hino de todos aqueles que almejavam o regresso da liberdade em Portugal.



Em 1958, António Gedeão publica “De Teatro do Mundo” que contém, entre outros, o poema Calçada de Carriche, onde António Gedeão chama a atenção para o corre-corre extenuante de muitas mulheres do povo que viviam a mil à hora, desdobrando-se em múltiplas tarefas, diariamente, sem nunca desfrutarem duma folga, dum momento de descanso. A chave do poema é o ritmo. Feito de versos curtos e repetições, se declamado apropriadamente, a impressão que causa no leitor é a sensação extenuante duma vida pesada, vivida por muitas mulheres portuguesas. Cinquenta anos de depois, este poema continua a fazer muito sentido.
A década de sessenta do século passado dará à luz mais dois livros de poemas do autor de "Pedra Filosofal". No primeiro – Máquina de Fogo – destacam-se dois poemas: Lágrima de Preta e Dia de Natal.
“Lágrima de Preta” é a mais bela demonstração científica da estupidez do racismo. Aprendemos este poema nos bancos da escola, mas a sua mensagem, infelizmente, ainda não foi captada por todos.

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
(…)
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.



O poema "Dia Natal" é um exercício irónico sobre a hipocrisia de muitos pseudo bons sentimentos de pacotilha.

“Hoje é dia de ser bom
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças
De falar e de ouvir com mavioso tom
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças”

No quatro livro publicado – Linhas de Força (1967) – António Gedeão brinda-nos com “Poema para Galileu”, de quem falei há dias. Trata-se de mais um poema longo, que relata a história de Galileu e a paciência do velho matemático e astrónomo com a intolerância humana quando vê ameaçado o seu irrisório poder. 


"(…)
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade. 

Por isso estoicamente, mansamente, 

resististe a todas as torturas, 

a todas as angústias, a todos os contratempos, 

enquanto eles, do alto incessível das suas alturas, 

foram caindo, 

caindo, 

caindo sempre, 

e sempre, 

ininterruptamente, 

na razão direta do quadrado dos tempos. "



Pouco depois de ter conhecido tudo isto e muito mais, António Gedeão deu por finda a sua longa viagem no planeta Terra. Foi a 19 de fevereiro de 1997. E eu fiquei extremamente grato a quem me obrigou a tropeçar em mais que uma pedra filosofal, o que mudou para sempre a minha consideração por este excecional poeta.

Gabriel Vilas Boas

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