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segunda-feira, 30 de maio de 2016

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, de Jorge Amado

Dona Flor e Seus Dois Maridos é um dos melhores romances de Jorge Amado e de toda a literatura brasileira. Nele Jorge Amado relata as aventuras de Dona Flor e seus dois maridos, Vadinho e Teodoro. O romance está dividido em cinco partes. A primeira e a segunda partes tratam da morte de Vadinho em pleno Carnaval baiano e do seu velório, onde as amigas, mais ou menos chegadas, de dona Flor trataram de pôr a nu o passado e o presente salafrário, libertino, jogador, gozador, malandro, e amante da farra, de Vadinho. Ao lado desta fama negativa, nasceu a boa recordação das histórias de um homem companheiro e tremendamente safado, memorizada em pequenas histórias ilustrativas do seu carácter e do amor que o unia à esposa. Em todas essas histórias ressalta a alegria, a ternura, a malandragem, o vício pelo jogo e pelas mulheres bonitas.
           

Em paralelo surge uma plêiade de personagens secundárias, mas relevantes para a definição de certos aspetos da vida baiana: os hábitos e ambições duma pequena burguesia mais assemelhada com o povo. Nessas personagens características e pitorescas nota-se o contrate cómico e ridículo entre a aparência e a essência tão próprias dos brasileiros. Esse contrate está presente na luta entre a defesa da moral e dos bons costumes que convive com a «sem vergonhice» das traições de mulheres e homens, do império do desejo, do vício do jogo, do desejo de riqueza.
  

Nestas personagens, na sua maneira de ser e de agir ou falar, está representado o viver da Baía, mas sobretudo do brasileiro (porque não do Homem?) que o autor pretende mostrar alegre, brincalhão, exagerado, safado, algo irresponsável, por vezes libertino, um pouco hipócrita, mas sempre cheio de ternura, sempre amigo, sempre amigo, sempre apaixonado.

Desde logo, há que realçar como traço primordial do romance e da protagonista a escola de culinária “Sabor e Arte”, que serve para vincar a excelente cozinheira que dona Flor era e o prazer que os seus pratos únicos repercutiam no paladar de cada um que teve o prazer de os provar. Este motivo da escola de culinária sancionou as receitas tipicamente baianas de dona Flor, deixadas no início de cada parte do romance, funcionando tal estratagema como uma espécie de homenagem à excelente comida da Baia.

A terceira parte fala da viuvez de dona Flor. Como foi difícil esquecer Vadinho, principalmente a falta que fazia na cama, onde sempre foi rei. Como crescia o seu desejo ardente de fêmea que só o seu primeiro marido soube explorar; ao mesmo tempo que aumentava o número de pretendentes ao seu belo corpo de jovem viúva.
            
A luta de dona Flor foi imensa. Entre o fogo do desejo sexual cada vez mais intenso e a sua integridade moral. Uma luta destinada a ser vencida pela matéria, mas vestida como coisa humana e não como indecência.
A luta entre desejo e moral, entre corpo e matéria é uma dicotomia de sempre do ser humano que ganha maior ênfase no brasileiro. Jorge Amado pretende desmistificar esta luta que trespassa todo o romance, atribuindo ao desejo carnal da mulher e do homem (mesmo quando há a moral e o matrimónio) o distintivo de humano, tendência natural e nunca degenerescência psicológica. É o combate à hipocrisia social que Jorge Amado faz através de personagens como dona Gisa, mostrando o ridículo e o cómico das «xeretas» da Baía, como dona Dinorá ou dona Rosilda.
Nesta terceira parte é ainda traçada a grandiosidade e mediocridade da raça humana. Grandiosidade, bondade e humanidade em dona Norma, que entende as ânsias sexuais de dona Flor; mediocridade nos aproveitadores pretendentes de dona Flor de que o «Príncipe», o senhor Aluísio é legítimo e infeliz representante.

A quarta parte trata do segundo casamento de dona Flor. Flor casa com o farmacêutico Teodoro. Homem discreto, honrado, de razoáveis posses, dedicado, sensível, honesto, apaixonado e respeitador. Uma segurança, enquanto marido. Incapaz das canalhices do primeiro, muito menos dos seus vícios. Sem deixar de ter aspeto jovem e agradável. Ele permite a dona Flor a segurança económica, a respeitabilidade, a organização dos sentimentos e a garantia da satisfação sexual, estatuto social e dedicação.

A quinta parte é a mais saborosa e fantástica do romance. É aquela em que Vadinho regressa do além e, mostrando-se só para dona Flor, a convence a fazer novamente amor com ele. A princípio cheia de escrúpulos, ela acaba por ceder. Aprende a lição que o amor é um profundo sentimento de alma e de corpo. Sem deixar de amar Teodoro, ele percebe que precisa de Vadinho para responder à parte fogosa, sensual, material de que também é constituída. Percebe que não trai ninguém porque ambas são manifestações do seu Amor.
É neste ponto que entra todo o fantástico e misticismo da obra, pois é através de poderes sobrenaturais que Vadinho regressa, aparece e faz amor com dona Flor para todo o sempre. É esse mesmo poder que o faz inclinar a roleta ou as cartas viciadas para os palpites sugeridos pelos amigos. É esse misticismo e fantástico tão brasileiros que surge m nas evocações de rituais e crendices que os brasileiros foram beber na sua costela africana e americana, onde os ritos, superstições, macumbas e crendices se cruzam e integram com as personagens e com o fluir da história.
Obviamente, dona Flor fica com os dois maridos: um Vadinho malandro e jogador, mas amoroso, ternurento e, sobretudo, competente em negócios de cama; e Teodoro, calmo, organizado, delicado, sensível, apaixonado e respeitador.
          
Neste romance, Jorge Amado retrata o baiano, mas também o brasileiro: o seu desejo de amor, mais carnal que espiritual, mais desejo que moral; a sua ânsia de estatuto social; a sua vontade de fazer tudo perfeito; a sua fome de conhecimento; a sua intenção de crescer intelectualmente. Contudo, no final, a sua eterna concessão ao jogo, ao Carnaval, ao samba, ao riso, à «malandragem», à «safadeza» da pequena traição, ao desejo e à falha.
O brasileiro místico, mas humano, hipócrita, todavia compreensivo, ambicioso, no entanto nobre e sempre alegre. O riso é a sua alma e a sua força e também seu eterno fascínio.
Tudo isto conta Jorge Amado com palavras de cristal, onde a beleza sorridente e comovente nasce do calão, do neologismo, do registo familiar, mas também da variedade e da exatidão com que fixa emoções, caracteres, paisagens (excelente descrição do mar da Baia), mas sobretudo a extraordinária maneira de nas suas palavras e criações (como este romance) fazer ressoar a própria vida.
Gabriel Vilas Boas

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