Dona
Flor e Seus Dois Maridos é um dos melhores romances de Jorge Amado e de toda a literatura
brasileira. Nele Jorge Amado relata as aventuras de Dona Flor e seus
dois maridos, Vadinho e Teodoro. O romance está dividido em cinco partes. A
primeira e a segunda partes tratam da morte de Vadinho em pleno Carnaval baiano
e do seu velório, onde as amigas, mais ou menos chegadas, de dona Flor trataram
de pôr a nu o passado e o presente salafrário, libertino, jogador, gozador,
malandro, e amante da farra, de Vadinho. Ao lado desta fama negativa, nasceu a boa
recordação das histórias de um homem companheiro e tremendamente safado,
memorizada em pequenas histórias ilustrativas do seu carácter e do amor que o
unia à esposa. Em todas essas histórias ressalta a alegria, a ternura, a
malandragem, o vício pelo jogo e pelas mulheres bonitas.
Em paralelo surge uma plêiade de personagens secundárias, mas relevantes para a definição de certos aspetos da
vida baiana: os hábitos e ambições duma pequena burguesia mais assemelhada com
o povo. Nessas personagens características e pitorescas nota-se o contrate cómico e ridículo entre a aparência e a essência tão próprias dos
brasileiros. Esse contrate está presente na luta entre a defesa da moral e dos
bons costumes que convive com a «sem vergonhice» das traições de mulheres e
homens, do império do desejo, do vício do jogo, do desejo de riqueza.
Nestas personagens, na sua maneira de ser e de agir ou
falar, está representado o viver da Baía, mas sobretudo do brasileiro (porque
não do Homem?) que o autor pretende mostrar alegre, brincalhão, exagerado,
safado, algo irresponsável, por vezes libertino, um pouco hipócrita, mas sempre
cheio de ternura, sempre amigo, sempre amigo, sempre apaixonado.
Desde
logo, há que realçar como traço primordial do romance e da protagonista a
escola de culinária “Sabor e Arte”, que serve para vincar a excelente
cozinheira que dona Flor era e o prazer que os seus pratos únicos repercutiam
no paladar de cada um que teve o prazer de os provar. Este motivo da escola de
culinária sancionou as receitas tipicamente baianas de dona Flor, deixadas no
início de cada parte do romance, funcionando tal estratagema como uma espécie
de homenagem à excelente comida da Baia.
A terceira parte fala da viuvez de dona Flor. Como foi difícil esquecer Vadinho, principalmente a falta
que fazia na cama, onde sempre foi rei. Como crescia o seu desejo ardente de
fêmea que só o seu primeiro marido soube explorar; ao mesmo tempo que aumentava
o número de pretendentes ao seu belo corpo de jovem viúva.
A luta de dona Flor foi imensa. Entre o fogo do desejo
sexual cada vez mais intenso e a sua integridade moral. Uma luta destinada a
ser vencida pela matéria, mas vestida como coisa humana e não como indecência.
A luta entre desejo e moral, entre corpo e matéria é uma
dicotomia de sempre do ser humano que ganha maior ênfase no brasileiro. Jorge
Amado pretende desmistificar esta luta que trespassa todo o romance,
atribuindo ao desejo carnal da mulher e do homem (mesmo quando há a moral e o
matrimónio) o distintivo de humano, tendência natural e nunca degenerescência psicológica. É o combate à hipocrisia social que Jorge
Amado faz através de personagens como dona Gisa, mostrando o ridículo e o
cómico das «xeretas» da Baía, como dona Dinorá ou dona Rosilda.
Nesta terceira parte é ainda traçada a grandiosidade e
mediocridade da raça humana. Grandiosidade, bondade e humanidade em dona Norma, que entende as ânsias sexuais de dona Flor; mediocridade nos aproveitadores
pretendentes de dona Flor de que o «Príncipe», o senhor Aluísio é legítimo e
infeliz representante.
A quarta parte trata do segundo casamento de dona Flor. Flor
casa com o farmacêutico Teodoro. Homem discreto, honrado, de razoáveis posses,
dedicado, sensível, honesto, apaixonado e respeitador. Uma segurança, enquanto
marido. Incapaz das canalhices do primeiro, muito menos dos seus vícios. Sem
deixar de ter aspeto jovem e agradável. Ele permite a dona Flor a segurança
económica, a respeitabilidade, a organização dos sentimentos e a garantia da
satisfação sexual, estatuto social e dedicação.
A quinta parte é a mais saborosa e fantástica do romance. É aquela em que
Vadinho regressa do além e, mostrando-se só para dona Flor, a convence a fazer
novamente amor com ele. A princípio cheia de escrúpulos, ela acaba por ceder.
Aprende a lição que o amor é um profundo sentimento de alma e de corpo. Sem
deixar de amar Teodoro, ele percebe que precisa de Vadinho para responder à
parte fogosa, sensual, material de que também é constituída. Percebe que não
trai ninguém porque ambas são manifestações do seu Amor.
É neste ponto que entra todo o fantástico e misticismo da obra, pois é através de
poderes sobrenaturais que Vadinho regressa, aparece e faz amor com dona Flor
para todo o sempre. É esse mesmo poder que o faz inclinar a roleta ou as cartas
viciadas para os palpites sugeridos pelos amigos. É esse misticismo e fantástico
tão brasileiros que surge m nas evocações de rituais e crendices que os
brasileiros foram beber na sua costela africana e americana, onde os ritos,
superstições, macumbas e crendices se cruzam e integram com as personagens e
com o fluir da história.
Obviamente,
dona Flor fica com os dois maridos: um Vadinho malandro e jogador, mas amoroso,
ternurento e, sobretudo, competente em negócios de cama; e Teodoro, calmo,
organizado, delicado, sensível, apaixonado e respeitador.
Neste
romance, Jorge Amado retrata o baiano, mas também o brasileiro: o seu desejo de
amor, mais carnal que espiritual, mais desejo que moral; a sua ânsia de
estatuto social; a sua vontade de fazer tudo perfeito; a sua fome de
conhecimento; a sua intenção de crescer intelectualmente. Contudo, no final, a
sua eterna concessão ao jogo, ao Carnaval, ao samba, ao riso, à «malandragem»,
à «safadeza» da pequena traição, ao desejo e à falha.
O
brasileiro místico, mas humano, hipócrita, todavia compreensivo, ambicioso, no
entanto nobre e sempre alegre. O riso é a sua alma e a sua força e também seu
eterno fascínio.
Tudo
isto conta Jorge Amado com palavras de cristal, onde a beleza sorridente e
comovente nasce do calão, do neologismo, do registo familiar, mas também da variedade e
da exatidão com que fixa emoções, caracteres, paisagens (excelente descrição do
mar da Baia), mas sobretudo a extraordinária maneira de nas suas palavras e
criações (como este romance) fazer ressoar a própria vida.
Gabriel Vilas Boas
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