Não se
pode morar nos olhos de um gato:
uma parábola da resiliência do ser humano e da sua adaptação às condições mais
adversas
O último romance de Ana Margarida de
Carvalho é um drama intenso. A estória passa-se no Brasil. Século XIX, período
final da escravatura comerciável: um grupo de pessoas bastante heterogéneo que
seguia num tumbeiro clandestino desagua numa praia após terem sido vítimas de
um naufrágio - uma senhora aristocrata mais a sua filha triste, um/a criado/a,
uma santa de madeira, um capataz, um escravo, um padre, um estudante, um menino
pretinho e mais um ou outro ser que se vão juntando numa praia. É em torno
desta realidade que a ação se começa a engendrar.
Tendo
como pano de fundo a treva, a negação, a exploração do lado mais sombrio do
homem, estas personagens trazem consigo o peso do mundo e das suas desgraças,
outras o peso do tráfico de escravos organizado no Brasil, para onde foram
viver. Sob um céu impiedoso, num pedaço de areia que desaparece na maré alta,
enclausurados por penhascos a pique sobre o mar, apenas com uma plataforma para
se refugiarem, uma caverna e uma poça de água doce, os náufragos, tão
diferentes entre si, com histórias privadas tão distintas, são confrontados uns
com os outros, consigo próprios e com a natureza inclemente que lhes fornece o
mínimo para sobreviverem e o máximo para perecerem.
Cada
personagem, arrastada pelo seu destino funesto, presa nas suas memórias e
condicionada por uma situação desesperada, numa autêntica prisão de rocha,
areia e mar, vai-se transformando numa dinâmica de extrema brutalidade, que nunca
anda longe da loucura. O leitor depara-se deste modo com um universo fechado,
concentracionário, sem leis, em que se agitam as pulsões mais desenfreadas,
onde todos se vigiam e se debatem.
Não
se pode morar nos olhos de um gato é assim um romance sobre os homens e as
suas relações, sejam elas denunciadoras de crimes, amor, ódio, vingança…. as
personagens que nele desfilam debatem-se com uma grande questão: a alteridade,
a capacidade de olhar o outro por dentro e de ser capaz de se colocar na pele
dele, sobretudo na daquele que está em posição desfavorável. Desta forma é
deslindada e destrinçada a facilidade com que se julga o outro com base no
preconceito, seja ele baseado na aparência, na cor de pele, estatuto social ou
intelectual, como se as pessoas fossem só o que é visível exteriormente e o
interior não necessitasse de ser cultivado e cuidado…
Para sobreviverem, estes seres terão de
se transformar metaforicamente num monstro funcional, dotado de muitos braços
(força) e muitas cabeças (inteligência) e só alcançarão este estado quando se
munirem da capacidade de se colocarem na pele do outro e de o aceitar na sua
diferença. O leitor encontrará assim, nesta tragédia, a verdade destas
personagens, que não é mais do que a verdade inerente a cada um de nós.
Este
é, portanto, um romance que nos acusa de andarmos distraídos, pois embora
saibamos que o sórdido habita ao nosso lado, que os gritos de revolta são
geralmente estrangulados porque queremos/deixamos, o certo é que o nosso
comodismo e egocentrismo continuam a falar mais alto. Será talvez por essa
razão que Não se pode morar nos olhos de
um gato…
Rafaela Leite
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