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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

NÃO SE PODE MORAR NOS OLHOS DE UM GATO, por Rafaela Leite


Não se pode morar nos olhos de um gato: uma parábola da resiliência do ser humano e da sua adaptação às condições mais adversas

         



O último romance de Ana Margarida de Carvalho é um drama intenso. A estória passa-se no Brasil. Século XIX, período final da escravatura comerciável: um grupo de pessoas bastante heterogéneo que seguia num tumbeiro clandestino desagua numa praia após terem sido vítimas de um naufrágio - uma senhora aristocrata mais a sua filha triste, um/a criado/a, uma santa de madeira, um capataz, um escravo, um padre, um estudante, um menino pretinho e mais um ou outro ser que se vão juntando numa praia. É em torno desta realidade que a ação se começa a engendrar.
         
Tendo como pano de fundo a treva, a negação, a exploração do lado mais sombrio do homem, estas personagens trazem consigo o peso do mundo e das suas desgraças, outras o peso do tráfico de escravos organizado no Brasil, para onde foram viver. Sob um céu impiedoso, num pedaço de areia que desaparece na maré alta, enclausurados por penhascos a pique sobre o mar, apenas com uma plataforma para se refugiarem, uma caverna e uma poça de água doce, os náufragos, tão diferentes entre si, com histórias privadas tão distintas, são confrontados uns com os outros, consigo próprios e com a natureza inclemente que lhes fornece o mínimo para sobreviverem e o máximo para perecerem.

Cada personagem, arrastada pelo seu destino funesto, presa nas suas memórias e condicionada por uma situação desesperada, numa autêntica prisão de rocha, areia e mar, vai-se transformando numa dinâmica de extrema brutalidade, que nunca anda longe da loucura. O leitor depara-se deste modo com um universo fechado, concentracionário, sem leis, em que se agitam as pulsões mais desenfreadas, onde todos se vigiam e se debatem.
        
Não se pode morar nos olhos de um gato é assim um romance sobre os homens e as suas relações, sejam elas denunciadoras de crimes, amor, ódio, vingança…. as personagens que nele desfilam debatem-se com uma grande questão: a alteridade, a capacidade de olhar o outro por dentro e de ser capaz de se colocar na pele dele, sobretudo na daquele que está em posição desfavorável. Desta forma é deslindada e destrinçada a facilidade com que se julga o outro com base no preconceito, seja ele baseado na aparência, na cor de pele, estatuto social ou intelectual, como se as pessoas fossem só o que é visível exteriormente e o interior não necessitasse de ser cultivado e cuidado…
        
Para sobreviverem, estes seres terão de se transformar metaforicamente num monstro funcional, dotado de muitos braços (força) e muitas cabeças (inteligência) e só alcançarão este estado quando se munirem da capacidade de se colocarem na pele do outro e de o aceitar na sua diferença. O leitor encontrará assim, nesta tragédia, a verdade destas personagens, que não é mais do que a verdade inerente a cada um de nós.
         Este é, portanto, um romance que nos acusa de andarmos distraídos, pois embora saibamos que o sórdido habita ao nosso lado, que os gritos de revolta são geralmente estrangulados porque queremos/deixamos, o certo é que o nosso comodismo e egocentrismo continuam a falar mais alto. Será talvez por essa razão que Não se pode morar nos olhos de um gato

 Rafaela Leite

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