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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

OS POBREZINHOS

 


Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.


Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".

António Lobo Antunes

domingo, 29 de novembro de 2020

SOU UM MENINO CUJO ENVELOPE SE GASTOU

A Velhice

Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. 

Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica, desde o inimitável Fernando da Conceição da Cruz, o Pardalito do Bairro da Liberdade ao glorioso Domiciano Barrocal Gomes Cavém passando por José Pinto de Carvalho Águas, o Grande Capitão e Mário Esteves Coluna, o Monstro, que afirmou numa entrevista ser o Victor Macture dos estádios. 

A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais. 


Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade.
Ou internam-me no Meu Lar, Recebe Idosos Inválidos & Convalescentes a fim de passar as tardes à janela em casaco de pijama, num poltrona de orelhas com os bolsos cheios de palitos, capicuas e migalhas de bolacha Maria, visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de amêndoas. 
Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heroicos, cravavam nos gelos polares. Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com enorme telefonia à cabeceira a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou 
    - Que lindo rádio que a senhora tem!
    E ela num suspiro de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e coquete
   - Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô que viesse fazer uma festa à cama. ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos almanaques da Bertrand do sótão organizados pela Sra. Dona Maria Fernandes Costa e de escrever e de escrever nas soluções, quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa. 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
António Lobo Antunes

quarta-feira, 23 de maio de 2018

OS CUS DE JUDAS


O romance de António Lobo Antunes foca o tema da guerra colonial portuguesa e os traumas que ela deixou nos combatentes portugueses.
         Ao longo de todo o romance ressalta o sentimento de revolta perante uma guerra sem sentido, em defesa dum patriotismo balofo e dum regime que a maioria odiava de tão despótico que era.
         A voz do narrador é a voz do autor pois percebe-se que o protagonista é um soldado que foi mobilizado para Angola, exercendo também a função de médico, tal como o autor do romance.
         A narrativa demonstra também o absurdo da guerra colonial, pois percebe-se que os soldados não lutavam por uma causa, não entendiam porque estavam naquele fim do mundo (Os cus de Judas), não partilhavam a ideia de pátria serôdia do Dr. Salazar e seus apaniguados, não sentiam aquele território como seu, não sentiam nos africanos os seus inimigos … em suma, não percebiam por que tinham de matar e morrer por um ideal que não era o seu.
       
  Por outro lado, Os Cus de Judas retratam a dolorosa experiência da guerra colonial a partir da visão de um soldado português que alguns anos depois da guerra ter terminado, retoma as suas memórias sobre a guerra, relembrando factos, histórias, impressões, locais, pessoas e sobretudo sentimentos, aparentemente desconexos (como lhe vinham à memória). Essa recordação é notoriamente dolorosa e parece sempre tão real e tão próxima que ilustra de uma maneira fiel, os traumas que a guerra em África em cerca de um milhão de portugueses que combateram nas ex-colónias portuguesas.

O livro propõe uma reflexão sobre um tempo e uma guerra de guerrilha que marcou uma geração de portugueses, de uma forma indelével. E como o autor muito bem faz notar, a raiva que transparece no livro é também pelo não reconhecimento desses traumas por parte daquele Portugal que ficou a gozar a paz. António Lobo Antunes acentua muito essa ingratidão, esse olhar de lado, como se os combatentes em África fossem doentes mentais, a quem se tivesse de dar um desconto por algumas atitudes mais agressivas. 


O livro é a voz de muitos ex. combatentes que não entendem esse tratamento ingrato, de desprezo , por vezes humilhante a são votados pelos seus compatriotas quando estiveram a dar a vida por eles, numa guerra que nunca quiseram, e que os transtornou de modo irreversível.
         Por outro lado, o romance marca de forma categórica a revolta e muitas vezes o ódio do autor a Salazar e ao regime do Estado Novo, por lhes terem destruído muito mais que a juventude, a confiança de viver.
Gabriel Araújo

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

CARTAS DE GUERRA


“Amo-te tudo, meu amor!”

Cartas de Guerra de Ivo Ferreira é realmente um filme fabuloso e extraordinário, que nos fará gostar muito mais de António Lobo Antunes, mesmo sem o ter lido muito, mesmo que nem sempre gostemos da sua repetitiva temática.
É antes de mais um filme sobre a guerra colonial portuguesa vista a partir do íntimo de um jovem médico-soldado (António), que se desnuda através de belíssimas e apaixonadas cartas poéticas que escreve à jovem esposa.

O filme é importante porque enfoca a final da guerra colonial portuguesa em Angola da perspetiva certa e é apaixonante, porque as cartas que Lobo Antunes escreveu à mulher e que servem de narrativa à película de Ivo Ferreira mostram um Amor tão puro, tão sincero e arrebatador que sensibiliza e comove qualquer espectador.
Nada no filme é feito ao acaso. Cada situação, cada pormenor (e como eles são cuidados!) são emblemáticos e referem-se a aspetos importantes que muitos soldados sentiram durante os longos meses que passaram nas matas africanas.
Sobre a guerra colonial, o filme reforça o pensamento de Lobo Antunes: tratava-se de um conflito absurdo (os soldados portugueses davam-se bem com os negros e ganhavam facilmente afeição a velhos e crianças); o quanto custava aos nossos soldados o afastamento das famílias, sob todas as perspetivas, embora o lado afetivo e sexual seja o mais vincado; a noção que o tempo passava exasperadamente devagar, dado por uma narrativa lenta; a certeza que a guerra transforma todos sem exceção (“Uma coisa tenho como certa: saírem daqui uma pessoa completamente diferente daquela que cheguei!”); as dúvidas sobre a manutenção do amor das esposas, já que o tempo de tropa era longo.

Sobre a perspetiva técnica, Ivo Ferreira recria na perfeição a atmosfera do início dos anos setenta: o preto e branco lembra o tempo em que não havia televisão a cores; os relatos de futebol do Benfica, o discurso de Marcelo Caetano, as músicas que lembravam a saudade de casa, os jogos de cartas nas casernas para matar os tempos mortos, as ciladas na mata, a fabulosa beleza de África, filmada do céu, invadindo a nossa alma.

E por cima disso tudo, o poderoso amor que brotava da prosa poética das cartas do protagonista para a sua amada.
Só por isso vale a pena ir ver o filme, mas o resto também é soberbo.

Gabriel Vilas Boas