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domingo, 29 de novembro de 2020

SOU UM MENINO CUJO ENVELOPE SE GASTOU

A Velhice

Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. 

Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica, desde o inimitável Fernando da Conceição da Cruz, o Pardalito do Bairro da Liberdade ao glorioso Domiciano Barrocal Gomes Cavém passando por José Pinto de Carvalho Águas, o Grande Capitão e Mário Esteves Coluna, o Monstro, que afirmou numa entrevista ser o Victor Macture dos estádios. 

A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais. 


Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade.
Ou internam-me no Meu Lar, Recebe Idosos Inválidos & Convalescentes a fim de passar as tardes à janela em casaco de pijama, num poltrona de orelhas com os bolsos cheios de palitos, capicuas e migalhas de bolacha Maria, visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de amêndoas. 
Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heroicos, cravavam nos gelos polares. Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com enorme telefonia à cabeceira a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou 
    - Que lindo rádio que a senhora tem!
    E ela num suspiro de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e coquete
   - Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô que viesse fazer uma festa à cama. ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos almanaques da Bertrand do sótão organizados pela Sra. Dona Maria Fernandes Costa e de escrever e de escrever nas soluções, quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa. 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
António Lobo Antunes

2 comentários:

  1. Sou uma fã, deste destacável escritor. Dr. Lobo Antunes, todos os seus escritos me despertam admiração, recordações que me tornam muito feliz, também o realismo existente em tudo que nos transmite, que aprecio bastante. Mas este, que acabei de ler... tenho vontade de dizer, que será um dos melhores.( Mas não...virá outro ainda melhor) tenho a certeza !!! Parabéns.

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