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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

UM EPISÓDIO DA GUERRA COLONIAL NARRADO POR SALGUEIRO MAIA


A acção decorre na Guiné no ano da graça de 1973, num Maio em fim de época de chuvas. A subunidade a que pertenço tem oficialmente a sua comissão terminada, está no que se chama “mata-bicho”. 
O dia 5 de Maio nasceu calmo; no entanto, cedo se notou uma azáfama anormal de meios aéreos. Pelas 07.00 ouviu-se forte tiroteio, pelo que, tendo-me dirigido ao rádio, ouvi grossa confusão de pedidos, de apoio aéreo, de apoio de artilharia, de evacuação, etc. Para cúmulo, tudo aquilo partia de um destacamento a cargo de um pelotão da minha companhia e sem eu ter conhecimento de qualquer acção das NT1 nessa zona. Face à confusão no rádio e ao desconhecimento do que se passava na zona, segui para o meu destacamento com o efectivo disponível, que era de cerca de 10 homens. No destacamento de C..., transformado em PC 2 avançado, amontoavam-se, sentados no chão, cerca de 150 homens que se encontravam de reserva; o ambiente era de nervosismo. Pouco depois de ter chegado, novo contacto do PAIGC com outro bigrupo das NT. Dos primeiros contactos resultaram 6 mortos para as NT, incluindo 3 milícias, vários feridos graves e o destroçar do bigrupo, que deixou no terreno os mortos com o respectivo material e equipamento, de que se salienta: 3 equipamentos completos, 1 metralhadora HK21 completa, 2 espingardas G 3, 1 emissor-receptor e outro material diverso. Os sobreviventes foram aparecendo no destacamento de C... cobertos pelos helicópteros e aviões que os foram sobrevoando até chegarem à estrada. 

Do segundo contacto, resultaram 1 morto e 3 feridos graves e a captura pelo PAIGC de um equipamento completo, 1 espingarda G 3 e um morteiro de 60. Ao contrário do primeiro contacto, os homens permaneceram no terreno, pois não sabiam como sair de lá, nem tão-pouco sabiam como garantir as evacuações dos mortos e feridos; pediam pela rádio para lhes acudirem. Face à situação, o comandante do batalhão manda avançar a companhia em reserva para acudir aos camaradas, mas, pura e simplesmente, a companhia recusa-se a avançar. Fico tão enojado com esta cena que, tendo como único pessoal sob o meu comando os 10 homens que tinham vindo comigo mais outra secção do destacamento de C..., disse-lhes que eu ia buscar os homens que estavam na mata, se houvesse mais alguém que não fosse cobarde podia ir comigo. 


As 2 secções minhas e mais 5 homens subiram comigo para 3 Unimogs 404 e, de imediato, fomos acompanhados por 2 autometralhadoras Panhard do esquadrão que actuava na zona e que, também voluntariamente, foram recuperar o pessoal que se encontrava perdido na mata. 

Para quem não conheceu a mata da Guiné, é difícil explicar como se consegue ir a corta-mato com viaturas tendo de encontrar passagem por entre as árvores, os arbustos, o capim alto, as ramagens com picos e, ao mesmo tempo, seguir uma direcção certa, rumo a cerca de 60 homens deitados no chão. Para fazer 7 km demorámos cerca de hora e meia, apesar de tentarmos ir o mais depressa possível. 
Depois de rotos pela vegetação e cansados de correr ao lado das viaturas, chegámos ao local de combate; ainda pairava no ar o cheiro adocicado das explosões; os homens tinham um ar alucinado, de náufrago que vê chegar a salvação, mas, em lugar de mostrarem a sua alegria, estão ainda na fase de não saber se é verdade ou não. 
1 Abreviatura de «Nossas Tropas». 
2 Abreviatura de «Posto de Comando». 
 Mando montar segurança à volta da zona; pergunto pelos feridos ao primeiro homem que encontro – tem um ar de miúdo grande a quem enfiaram uma farda muito maior que ele, parece de cera – olha-me como sem me ver e aponta-me com o braço. 
Sigo na direcção apontada, depressa vejo um bando de mosquitos e moscas, já sei que à minha frente tenho sangue fresco. Debaixo de uma árvore estão estendidos 5 homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; no chão estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado, a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. 

Dirijo-me para ele, está com cor de cera, está praticamente nu, olha-me como que em prece, ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel enfermeiro e um cabo maqueiro. Mando-os avançar assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave, o ferimento provém-lhe da perna, tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue; tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que lhe não fizeram um garrote. Alguém me respondeu que o enfermeiro está ferido. 

Começo a sentir raiva. Continuo a tirar as compressas, que foram postas a monte, sem sequer terem sido apertadas. O homem tem um estilhaço na zona da articulação do joelho. Vê-se a tíbia; toda a carne se encontra como que seca, envolvendo um buraco do tamanho duma laranja. Enquanto o enfermeiro lhe presta os primeiros socorros, quase 2 horas depois do ferimento, dou-lhe uma palmada no ombro e digo-lhe: «Já estás safo. Vamos evacuar-te», mas acreditando pouco no que estou a dizer. Os restantes feridos não são muito graves, para além de um que tem um buraco no peito e deve ter hemorragias internas. O dia começa a cair. Na zona não é possível fazer descer helicópteros. Resta a solução de, na caixa dos Unimogs, levar os feridos a saltarem, como fardos, em cada salto da viatura. Quando estamos para arrancar, ouvem-se várias explosões. Todo o mundo vai para o chão. 

Fico sem perceber, não ouço tiros de armas ligeiras. Na fracção de segundo em que, deitado no chão, tento perceber o que está a acontecer, começamos a ouvir como que o barulho de aviões a jacto. São os “jactos do povo”, foguetões de 122 mm que o PAIGC atira para a povoação, sede do batalhão. Como a guerra não é connosco, mando retirar. O ferido da perna é acondicionado com as roupas do morto e todos os panos disponíveis na caixa do Unimog. 

O cabo enfermeiro segue sentado a seu lado com um frasco de soro nas mãos. O morto é colocado ao lado, embrulhado num pano de tenda; tem o peito aberto, parece um porco no talho. Pouco depois de iniciar o regresso, o ferido na perna morre. Nunca falou ou gritou. Guardo dele uns olhos assustados a brilhar, numa pele branca e seca, a ficar vazia de vida porque, em 60 homens, ninguém sabia o mais elementar em primeiros socorros – fazer um garrote. 
Chego ao destacamento de C... Estão à minha espera uma coluna com ambulância para evacuar os feridos por terra, o médico do batalhão receita injecções e dá conselhos aos enfermeiros. 
Sigo no Unimog, que agora só tem cadáveres. 
Agradeço ao pessoal que saiu comigo a sua dedicação e digo-lhes que, mais que os agradecimentos, a nossa consciência nos recompensará. 

Mando preparar a minha secção para regressar ao meu destacamento. Enquanto se forma a coluna para Bissau e o meu pessoal se prepara, dou comigo a contemplar os mortos de olhos e boca aberta com aspecto de quem não compreende nada do que aconteceu. Mecanicamente, tiro os atacadores das 3 botas dos mortos, ato-lhes os queixos, as mãos em cruz, os pés juntos, com a água do cantil molho-lhes os olhos e fecho-lhos. 
Olho para a minha obra e também não entendo. Entretanto, os seus camaradas contemplam de longe mas não se acercam. Ainda agora, sempre que um Senhor General da Brigada do Reumático diz que «a guerra estava ganha», me vem à memória a morte estúpida daqueles homens e a vitória que eles ajudaram a reparar.
Fernando Salgueiro Maia

quarta-feira, 23 de maio de 2018

OS CUS DE JUDAS


O romance de António Lobo Antunes foca o tema da guerra colonial portuguesa e os traumas que ela deixou nos combatentes portugueses.
         Ao longo de todo o romance ressalta o sentimento de revolta perante uma guerra sem sentido, em defesa dum patriotismo balofo e dum regime que a maioria odiava de tão despótico que era.
         A voz do narrador é a voz do autor pois percebe-se que o protagonista é um soldado que foi mobilizado para Angola, exercendo também a função de médico, tal como o autor do romance.
         A narrativa demonstra também o absurdo da guerra colonial, pois percebe-se que os soldados não lutavam por uma causa, não entendiam porque estavam naquele fim do mundo (Os cus de Judas), não partilhavam a ideia de pátria serôdia do Dr. Salazar e seus apaniguados, não sentiam aquele território como seu, não sentiam nos africanos os seus inimigos … em suma, não percebiam por que tinham de matar e morrer por um ideal que não era o seu.
       
  Por outro lado, Os Cus de Judas retratam a dolorosa experiência da guerra colonial a partir da visão de um soldado português que alguns anos depois da guerra ter terminado, retoma as suas memórias sobre a guerra, relembrando factos, histórias, impressões, locais, pessoas e sobretudo sentimentos, aparentemente desconexos (como lhe vinham à memória). Essa recordação é notoriamente dolorosa e parece sempre tão real e tão próxima que ilustra de uma maneira fiel, os traumas que a guerra em África em cerca de um milhão de portugueses que combateram nas ex-colónias portuguesas.

O livro propõe uma reflexão sobre um tempo e uma guerra de guerrilha que marcou uma geração de portugueses, de uma forma indelével. E como o autor muito bem faz notar, a raiva que transparece no livro é também pelo não reconhecimento desses traumas por parte daquele Portugal que ficou a gozar a paz. António Lobo Antunes acentua muito essa ingratidão, esse olhar de lado, como se os combatentes em África fossem doentes mentais, a quem se tivesse de dar um desconto por algumas atitudes mais agressivas. 


O livro é a voz de muitos ex. combatentes que não entendem esse tratamento ingrato, de desprezo , por vezes humilhante a são votados pelos seus compatriotas quando estiveram a dar a vida por eles, numa guerra que nunca quiseram, e que os transtornou de modo irreversível.
         Por outro lado, o romance marca de forma categórica a revolta e muitas vezes o ódio do autor a Salazar e ao regime do Estado Novo, por lhes terem destruído muito mais que a juventude, a confiança de viver.
Gabriel Araújo

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

CARTAS DE GUERRA


“Amo-te tudo, meu amor!”

Cartas de Guerra de Ivo Ferreira é realmente um filme fabuloso e extraordinário, que nos fará gostar muito mais de António Lobo Antunes, mesmo sem o ter lido muito, mesmo que nem sempre gostemos da sua repetitiva temática.
É antes de mais um filme sobre a guerra colonial portuguesa vista a partir do íntimo de um jovem médico-soldado (António), que se desnuda através de belíssimas e apaixonadas cartas poéticas que escreve à jovem esposa.

O filme é importante porque enfoca a final da guerra colonial portuguesa em Angola da perspetiva certa e é apaixonante, porque as cartas que Lobo Antunes escreveu à mulher e que servem de narrativa à película de Ivo Ferreira mostram um Amor tão puro, tão sincero e arrebatador que sensibiliza e comove qualquer espectador.
Nada no filme é feito ao acaso. Cada situação, cada pormenor (e como eles são cuidados!) são emblemáticos e referem-se a aspetos importantes que muitos soldados sentiram durante os longos meses que passaram nas matas africanas.
Sobre a guerra colonial, o filme reforça o pensamento de Lobo Antunes: tratava-se de um conflito absurdo (os soldados portugueses davam-se bem com os negros e ganhavam facilmente afeição a velhos e crianças); o quanto custava aos nossos soldados o afastamento das famílias, sob todas as perspetivas, embora o lado afetivo e sexual seja o mais vincado; a noção que o tempo passava exasperadamente devagar, dado por uma narrativa lenta; a certeza que a guerra transforma todos sem exceção (“Uma coisa tenho como certa: saírem daqui uma pessoa completamente diferente daquela que cheguei!”); as dúvidas sobre a manutenção do amor das esposas, já que o tempo de tropa era longo.

Sobre a perspetiva técnica, Ivo Ferreira recria na perfeição a atmosfera do início dos anos setenta: o preto e branco lembra o tempo em que não havia televisão a cores; os relatos de futebol do Benfica, o discurso de Marcelo Caetano, as músicas que lembravam a saudade de casa, os jogos de cartas nas casernas para matar os tempos mortos, as ciladas na mata, a fabulosa beleza de África, filmada do céu, invadindo a nossa alma.

E por cima disso tudo, o poderoso amor que brotava da prosa poética das cartas do protagonista para a sua amada.
Só por isso vale a pena ir ver o filme, mas o resto também é soberbo.

Gabriel Vilas Boas