Não podia começar da
melhor maneira a época de Teatro no Teatro Nacional de São João, no Porto: Turandot,
de Carlos Gozzi.
João Cardoso conduz um
elenco de mais de vinte atores e cumpre um sonho com mais de trinta anos: levar
à cena a maravilhosa peça escrita por Gozzi em 1762 e que mais tarde Puccini
aproveitaria para criar uma das suas mais belas e dramáticas óperas.
Centremo-nos então no
extraordinário, dramático e altamente interpelativo texto de Gozzi.
Turandot é uma princesa
chinesa, ultra-feminista, que afirma que só a ideia de ser esposa a mata.
Conseguiu levar o pai a jurar-lhe que pode pedir aos seus pretendentes para
resolver três enigmas: caso o pretendente acerte, terá de casar com ele; caso
contrário, será decapitado.
As execuções dos muitos
candidatos que falharam envolveram o império em guerras com os vizinhos e
alienaram os próprios súbditos do imperador que passaram a detestar a crueldade
de Turandot.
O argumento de Gozzi é
claro: um homem fraco permitiu que a insubordinação feminina causasse a
desordem social. A ameaça à ordem natural das coisas por parte de Turandot faz-se
a um outro nível: ela é incomensuravelmente bela e inteligente. Nem palavras
nem imagens a conseguem descrever: “Nenhum pintor foi capaz de representar toda
a sua beleza. Contudo não há no mundo eloquência que possa descrever a sua
ambição, a sua vanglória, a sua crueldade, perversão e iniquidade.”
Turandot é o emblema de
um poder e plenitude extremos, que transcendem a nossa compreensão e nos ameaçam
precisamente por não poderem ser descritos, quantificados ou ordenados dentro
do nosso sistema simbólico.
Para neutralizar esta
ameaça, Turandot deve ser integrada numa “estrutura social adequada”. E
Turandot só consegue livrar-se dessa integração através de uma hábil
manipulação da linguagem. A princesa subverte o poder da significação da
linguagem, esperando escapar à dominação social. Contudo, Calaf, o jovem
príncipe incógnito que a vencerá em toda a linha, restabelece a ordem entre
palavra e sentido. Ele obriga Turandot a assumir um discurso coerente, obriga
Turandot a ser humilde, obriga a princesa inflexível a interrogar-se sobre o
seu ódio visceral aos homens quaisquer que eles sejam, obriga Turandot a vencer
o seu orgulho, admitindo a força do amor sobre o preconceito.
É Calaf que transforma
Turandot numa personagem ambígua e não declaradamente má. Claro que isto torna
Turandot numa personagem com muito maior interesse dramático para o autor, encenador e espectador. O drama crescente que a protagonista vive acaba por
transformá-la numa figura positiva, que no final impedirá a morte de Calaf, com
as suas próprias mãos, porque o ama.
Tal só é possível
porque a solidão em que vivia acaba por revelar-se insatisfatória. Turandot
experimentara novos e inquietantes sentimentos logo à primeira vez que vê o
príncipe e estes atormentam-na ao longo de toda a peça. Infelizmente, a atriz
Joana Carvalho não conseguiu dar ao espectador toda a amplitude desta alma
atormentada e aparentemente inflexível.
Ao longo da peça, o
espectador vai percebendo que afinal Turandot não era verdadeiramente poderosa
e também não se bastava a si própria. Ela sente
desejo, o qual só poderá ser satisfeito quando aceitar o seu lugar na ordem
social e consentir no casamento.
A história não se
resume, assim, ao simples amansar de uma fera. É acima de tudo uma idealização
de um conceito de ordem social, onde a ameaça da mulher é desativada pela
inteligência e sobretudo pelo amor masculinos.
Gozzi e restantes
homens devem ter-se sentido reconfortados quando na cena final, a princesa avançou, arrependida, e lhes pediu perdão. Mas não foram eles que
ganharam, mas antes a força incomensurável do Amor.
P. S. Queria deixar,
como nota final, uma palavra de grande apreço para o belíssimo trabalho de
cenografia de Constança Carvalho Homem – verdadeiramente notável de beleza,
simplicidade e eficácia.
Gabriel
Vilas Boas
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