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terça-feira, 6 de outubro de 2015

TURANDOT, de Gozzi, no TNSJ


Não podia começar da melhor maneira a época de Teatro no Teatro Nacional de São João, no Porto: Turandot, de Carlos Gozzi.
João Cardoso conduz um elenco de mais de vinte atores e cumpre um sonho com mais de trinta anos: levar à cena a maravilhosa peça escrita por Gozzi em 1762 e que mais tarde Puccini aproveitaria para criar uma das suas mais belas e dramáticas óperas.
Centremo-nos então no extraordinário, dramático e altamente interpelativo texto de Gozzi.
Turandot é uma princesa chinesa, ultra-feminista, que afirma que só a ideia de ser esposa a mata. Conseguiu levar o pai a jurar-lhe que pode pedir aos seus pretendentes para resolver três enigmas: caso o pretendente acerte, terá de casar com ele; caso contrário, será decapitado.
As execuções dos muitos candidatos que falharam envolveram o império em guerras com os vizinhos e alienaram os próprios súbditos do imperador que passaram a detestar a crueldade de Turandot.
O argumento de Gozzi é claro: um homem fraco permitiu que a insubordinação feminina causasse a desordem social. A ameaça à ordem natural das coisas por parte de Turandot faz-se a um outro nível: ela é incomensuravelmente bela e inteligente. Nem palavras nem imagens a conseguem descrever: “Nenhum pintor foi capaz de representar toda a sua beleza. Contudo não há no mundo eloquência que possa descrever a sua ambição, a sua vanglória, a sua crueldade, perversão e iniquidade.”
Turandot é o emblema de um poder e plenitude extremos, que transcendem a nossa compreensão e nos ameaçam precisamente por não poderem ser descritos, quantificados ou ordenados dentro do nosso sistema simbólico.
Para neutralizar esta ameaça, Turandot deve ser integrada numa “estrutura social adequada”. E Turandot só consegue livrar-se dessa integração através de uma hábil manipulação da linguagem. A princesa subverte o poder da significação da linguagem, esperando escapar à dominação social. Contudo, Calaf, o jovem príncipe incógnito que a vencerá em toda a linha, restabelece a ordem entre palavra e sentido. Ele obriga Turandot a assumir um discurso coerente, obriga Turandot a ser humilde, obriga a princesa inflexível a interrogar-se sobre o seu ódio visceral aos homens quaisquer que eles sejam, obriga Turandot a vencer o seu orgulho, admitindo a força do amor sobre o preconceito.
É Calaf que transforma Turandot numa personagem ambígua e não declaradamente má. Claro que isto torna Turandot numa personagem com muito maior interesse dramático para o autor, encenador e espectador. O drama crescente que a protagonista vive acaba por transformá-la numa figura positiva, que no final impedirá a morte de Calaf, com as suas próprias mãos, porque o ama.
Tal só é possível porque a solidão em que vivia acaba por revelar-se insatisfatória. Turandot experimentara novos e inquietantes sentimentos logo à primeira vez que vê o príncipe e estes atormentam-na ao longo de toda a peça. Infelizmente, a atriz Joana Carvalho não conseguiu dar ao espectador toda a amplitude desta alma atormentada e aparentemente inflexível.
Ao longo da peça, o espectador vai percebendo que afinal Turandot não era verdadeiramente poderosa e também não se bastava a si própria. Ela sente desejo, o qual só poderá ser satisfeito quando aceitar o seu lugar na ordem social e consentir no casamento.
A história não se resume, assim, ao simples amansar de uma fera. É acima de tudo uma idealização de um conceito de ordem social, onde a ameaça da mulher é desativada pela inteligência e sobretudo pelo amor masculinos.
Gozzi e restantes homens devem ter-se sentido reconfortados quando na cena final, a princesa avançou, arrependida, e lhes pediu perdão. Mas não foram eles que ganharam, mas antes a força incomensurável do Amor.
P. S. Queria deixar, como nota final, uma palavra de grande apreço para o belíssimo trabalho de cenografia de Constança Carvalho Homem – verdadeiramente notável de beleza, simplicidade e eficácia.
 Gabriel Vilas Boas

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