Há onze anos a
sociedade portuguesa sofreu um autêntico abalo sísmico com a prisão de Carlos
Cruz, Jorge Ritto, Ferreira Dinis, Hugo Marçal, Carlos Silvino, entre outros,
acusados pelo Ministério Público do crime de pedofilia sobre crianças
e adolescentes à guarda da Casa Pia de Lisboa.
Ao fim de sete anos, após uma longuíssima batalha jurídica, os principais arguidos foram condenados,
o que acabou por sancionar, no essencial, as prisões preventivas iniciais e o
julgamento popular, feitos pelos media, que cravou em Carlos Cruz e restantes
arguidos o carimbo de pedófilos.
Agora que a poeira
definitivamente assentou, é possível perceber que este foi um processo doloroso, mas
essencial para o sistema judiciário português e também para a democracia, pois
um dos pilares fundamentais do nosso sistema é a independência da justiça.
Portugal enfrentou um
dos fantasmas mais duros da era democrata: um dos seus ídolos televisivos – Carlos Cruz - era acusado
de pedofilia e havia provas mais ou menos concludentes que o deixavam em maus
lençóis. É difícil aceitar que uma pessoa com quem simpatizamos cometeu um
crime tão odioso, mas havia um bem superior a defender: a verdade e a dignidade
daqueles jovens que sofreram abusos e maus tratos, que os marcaram para toda a
vida.
Olho para o processo
e retenho o essencial: aqueles menores e outros foram abusados reiteradamente
durante anos; alguns dos crimes imputados aos arguidos foram efetivamente
cometidos por eles; as condenações pareceram-me justas e equilibradas; alguma
da dignidade das vítimas foi resgatada; no final, houve um generalizado sentimento
de justiça.
Neste sentido, deste
processo resulta uma vitória da Justiça em Portugal. Poderosos foram apontados,
julgados e condenados. O país foi coeso na afirmação dos seus valores
fundamentais, mesmo que isso tivesse custado uma grande desilusão coletiva.
Foi muito importante
ter-se ido até ao fim com o processo e proceder a condenações que não pareceram
forçadas. Um médico, um embaixador, um advogado, um apresentador televisivo famoso
foram condenados, mostrando que a justiça também se aplicava a quem era rico e
influente, mesmo quando do outro lado estavam jovens com baixo estatuto social.
Claro também houve
erros e excessos. Os mais relevantes e chocantes pareceram-me o julgamento
popular e o excessivo tempo que o processo demorou em tribunal. Aceito que o
tempo da justiça nunca possa ser o tempo dos media, mas este processo mostrou
que a justiça tem de se tornar mais célere para não lançar lama sobre o
carácter e a honorabilidade dos cidadãos. Desta vez quem usou todas as
escapatórias da lei para adiar o processo saiu a perder, porque viu os
tribunais confirmarem o que televisões e jornais nos impuseram, no entanto, nem
sempre será assim.
Não é bom que o
Correio da Manhã e a TVI tenham de fazer o papel de justiceiros, rompedores dum
status quo que protege quase sempre
os poderosos. Os excessos de uns são tão condenáveis como as omissões de
outros. É preciso aprender, efetivamente, com o que se fez mal neste processo,
para que a sociedade possa ter confiança e se orgulhe nas decisões dos
tribunais.
Gabriel Vilas Boas