GIUSEPPE ARCIMBOLDO (1526-1593)
Verão, Giuseppe Arcimboldo, óleo s/tela,1573,Museu do Louvre
Verão (detalhe) Giuseppe Arcimboldo óleo s/tela, 1573
Escrevo-vos da minha salinha de sempre, a de que mais gosto porque dona
de um imenso janelão rasgado para uma parte do meu jardim atapetado de verde e
povoado de duas laranjeiras e alguns limoeiros derreados hoje pelas bátegas de
chuva insistentes. Ora em sussurros suaves, ora ameaçadora pela violência
intensa do seu cair, esta chuva que parecia ter vindo apenas de visita, gostou
tanto que resolveu ficar. Nestes últimos dias, adormece comigo a lembrar-me
embalos longínquos da minha doce avó e acorda-me suavemente quase a dizer que
as férias já lá vão e que são horas de me aprontar para o trabalho que nunca
espera.
Este Verão que se vai foi, para mim, o primeiro de todos os meus verões. Não aprecio particularmente o
calor e quase adivinhando a estação
atípica que agora termina, resolvi “ficar de férias” por cá, e não “ir de
férias” por aí, como sempre fiz. E, tal como eu desejava, o Verão foi suave,
com Zéfiro por companhia, fazendo-me respirar de alívio pois o ditado “nove
meses de inverno, três de inferno”, que se aplica tão bem ao Douro (e a terras
do Tâmega, tantas vezes) a que Amarante abre portas, não se confirmou. E o
descanso, esse, foi garantido em sestas deliciosas debaixo das minhas frondosas
árvores a destilar sombra e perfumes, a deixar espreitar o céu azul indiscreto
ou sob um sol pintado de nuvens, cúmplice do meu desejo de silêncio, de paz e
de suavidade.
E é aqui que surge Arcimboldo, porque numa dessas tardes de sossego,
folheando alguns livros que há anos viviam esquecidos em algumas das estantes
da minha razoável biblioteca, este pintor maneirista emerge e se ergue para
mim, dando-se a conhecer.
Os historiadores de Arte apelidam-no de Maneirista porque também ele
rejeita o racional, em favor da ambiguidade, do virtuosismo e da elegância e até
de simbologias obscuras. Estes maneiristas eram os artistas da moda nas cortes
mais sofisticadas da Europa e Arcimboldo foi, como ninguém, um dos preferidos
de então.
“Estas pinturas assentavam como uma luva no “Sete Pecados (I)Mortais”,
pensei eu, então; mas o azul do céu, a brisa fresca, o verde da quinta, o azul
da piscina e a preguiça de agosto venceram Arcimboldo, que só agora chega pelas
minhas mãos até vós.
O século XVI viu renascer o gosto por novas ciências como a botânica, a
zoologia e a horticultura, onde a natureza e a busca pelo seu entendimento
ocupam cada vez mais mentes sobredotadas. O estudo da fauna e da flora de forma
intensiva foi também resultado das grandes viagens de descoberta do Novo Mundo,
da África e da Ásia, em que os Portugueses foram os pioneiros. Animais e
plantas foram estudados e dissecados para melhor conhecimento dos diferentes
espécies que chegavam à Europa e intrigavam.
Jacopo Ligozzi, por exemplo, pintou séries de animais para a corte dos
Habsburg, de Maximiliano II, em Viena. Mais tarde, trabalhou em Florença onde
conheceu o grande naturalista Ulisse Aldrovandi, cujos volumes de História
Natural foram ilustradas igualmente com desenhos de Arcimboldo.
As obras que vos trago hoje refletem o sério estudo científico da
Natureza tão comum no século XVI e a originalidade da arte de Arcimboldo reside
nestes rostos humanos que representam as diferentes estações do ano e onde, em
vez de olhos, bocas ou narizes podemos encontrar cerejas voluptuosas , pêssegos
rosados e uvas em cachos deslumbrantes.
Verdadeiros puzzles, não acham?
As interpretações da sua obra, sempre opostas e irreconciliáveis, em
jogos de amor e ódio, e o próprio Arcimboldo, depressa ficaram no esquecimento
após a sua morte, apenas redescoberto em 1930 quando o Museu de Arte Moderna de
Nova Iorque, pelas mãos do seu diretor, Alfred Barr, incluiu Arcimboldo na
Exposição Fantastic Art, Dada, Surrealism,
por ser considerado fonte de inspiração para o movimento surrealista.
Nascido em Milão em 1526, filho do pintor Biagio, trabalhou desde cedo nas
cidades próximas do Como e Monza, mas é como pintor e retratista da corte de
Maximiliano II, em Viena, e depois em Praga, que se destaca e afirma.
Arcimboldo criou para Maximiliano II a série de pinturas alegóricas As Quatro
Estações, em bustos perfilados de imensa criatividade. Inverno, lembra os
grotescos de Leonardo da Vinci, como bem se observa aqui.
Inverno, Giuseppe Arcimboldo,1573
Mas eis que chega o Outono pelas mágicas mãos de Arcimboldo. E o próximo
domingo, vinte e um de setembro, assinalará a chegada oficial de uma estação
nova que, ao que parece, já se vem instalando entre nós em pezinhos de lã…em
passos sorrateiros de quem vem sem ser por mal.
Outono, Giuseppe Arcimboldo,1573
Se olharmos com
atenção, verificamos que Arcimboldo não esqueceu nada. Neste busto
inconfundível, as uvas prevalecem com as
suas parras amadurecidas em farta cabeleira, à espera da carícia do vindimador
que as há-de transformar em doce e inebriante néctar. Os cogumelos ouvem com atenção os passos da cozinheira
hábil que os vai saltear em manta de presunto enquanto que a abóbora, imensa,
espera ansiosa nadar em panela farta de sopa outonal. Castanhas, maçãs,
pêras e marmelos surgem em apontamento
aqui e ali. As florinhas campestres emolduram a cena delicada e nós, tal como
Maximiliano II, olhamos em doce deslumbramento mais uma obra-prima do nosso
encantamento. Engraçado o jogo claro-escuro e as nuances de tons dourados que
inundam a tela.
Gosto do Outono.
Dos seus frutos, da temperatura suave, da chuva, das tardes à volta de um chá,
dos livros que leio enroscada numa manta quentinha em frente à lareira que por
vezes apetece. Não gosto do Verão. É a estação dos excessos. Mas para quem
aprecia todas as estações, fiquem com As
Quatro Estações numa Cabeça. É que, apesar de dizermos constantemente que
já não há estações como antigamente, olhem que há. Nós é que temos memória
curta.
As
Quatro Estações numa Cabeça, Giuseppe Arcimboldo,1590
Terminei o meu
texto e hoje, em jeito de confidência e de partilha de gostos pessoais, sem vos
maçar muito com questões técnicas ou análises profundas das pinturas que trouxe
hoje até vós. A chuva continua a cair lá fora. É hora de um chá. São servidos?
Rosa
Maria Alves da Fonseca