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domingo, 30 de abril de 2017

PAÍSES DE LIXO E PAÍSES DE LUXO


O mundo cresceu e desenvolveu-se ao som da dicotomia ricos/pobres. Povos, reis, presidentes quase sempre elegeram a riqueza material como objetivo primordial da sua ação. A revolução industrial (que uns fizeram, outros fingiram fazer e muitos nunca souberam o que isso é) cavou um fosso enorme entre os povos. Um século depois, os senhores do mundo perceberam que a sua riqueza se construiu fazendo muito lixo.

Primeiro foi apenas um lixo feio, à italiana, depois tornou-se um lixo tóxico e mortal. Tão nocivo que urgia exportá-lo, mas não eliminá-lo, porque todo o conceito de riqueza se baseava nele. Havia então que encontrar uns parvos que o recebessem, que o tentassem reciclar, eliminar ou… morrer com ele.
Os parvos são os países pobres, que são tão pobres de recursos como de bom senso, que aceitam o lixo dos países ricos a troco de uns ignóbeis milhões de euros. Arriscam a saúde dos seus cidadãos, do seu ar, dos seus rios, porque o dinheiro do lixo lhes parece bom.


Há dias, a minha filha mais nova perguntava-me: “Pai, por que andamos a reciclar o lixo dos outros países se isso é perigoso?” A única resposta honesta que me ocorreu foi: “porque somos pobres e inconscientes!”
No entanto, não era necessário sermos também pobres de espírito. Ao aceitarmos ser a lixeira do luxo, estamos, objetivamente, a contribuir para um planeta mais sujo e mais perigoso. Eles sabem que podem continuar a produzir lixo a seu belo prazer que haverá sempre um país de lixo para o receber.
Se os países do luxo fossem obrigados a ficar com o seu lixo, a recicla-lo, a arriscar a saúde dos seus cidadãos, certamente pensariam duas vezes antes de prosseguir uma política de expansão económica baseada na poluição.

Um país pobre pode ser pobre por diversas razões, mas só pode ser “de lixo” por uma: falta de respeito por si!
GAVB

sábado, 29 de abril de 2017

SILO, UM GUIA ESPIRITUAL E UM HOMEM DE AÇÃO (II)

(Continuação) 


Prosseguindo esta breve apresentação de SILO, abordo três vetores que considero muito importantes para quem procura conhecer um pouco mais sobre este homem extraordinário:os trabalhos publicados, nomeadamente na área da Psicologia, a sua Ação no Mundo e, finalmente, Os Lugares que em todo Mundo nos conectam a Silo.



Psicologia
Aqui, as suas obras de referencia são: “Apontamentos de Psicologia”, compêndio de conferências dadas por Silo em 1975 em Corfu, 1976 e 1978, em Las Palmas de Gran Canaria, e em maio de 2006, em La Reja, Buenos Aires. Em "Psicologia I" o autor estuda o psiquismo em geral como função da vida, na sua relação com o meio e na sua expressão humana. Em "Psicologia II" estuda as três vias da experiência humana: sensação, imagem e recordação, e ilustra a produção e transformação de impulsos ao mesmo tempo que os ordena numa apresentação morfológica de signos, símbolos e alegorias. 

Em "Psicologia III" estuda o sistema de operativa, capaz de intervir na produção e transformação dos impulsos. Estabelece diferenças entre a consciência e o "eu" contrastando os estados de reversibilidade com os estados alterados de consciência. Em "Psicologia IV" estuda o desdobramento dos impulsos; as diferenças entre a consciência, a atenção e o "eu"; estuda também a espacialidade e temporalidade dos fenómenos de consciência, para finalmente definir e estudar as estruturas de consciência e fazer uma incursão nos níveis profundos das mesmas.
Encontramos também, em “Psicologia da Imagem”, a função mobilizadora de cargas das representações mentais, ou imagens; Em “Experiencias Guiadas”, uma aplicação prática da teoria da imagem exposta na obra anterior e, por último, o livro Autolibertação, um manual teórico-prático levam a uma prática concreta de esta Psicologia (recolha de Luis Amman).
“Pode-se definir a Psicologia Humanista Universalista como o estudo da experiência da consciência humana no mundo, entendida como intencionalidade orientada para a superação do sofrimento, mediante processos integradores produzidos pelo domínio da imagem e pela ação coerente numa direção com sentido transcendente.” (Zorrilla, J.)




Ação no Mundo
O Movimento Humanista lançado por Silo é a expressão do Propósito de Humanizar a Terra “Dir-te-ei qual é o sentido da tua vida aqui: humanizar a Terra! O que é humanizar a Terra? É superar a dor e o sofrimento, é aprender sem limite, é amar a realidade que constróis.” Diz Silo em “A Paisagem Humana”.
E como se tem expressado este Movimento ao longo de quase 50 anos? Em múltiplas iniciativas nos campos cultural, académico, político, social, nos níveis local, regional e mundial. É a imagem da Nação Humana Universal (uma imagem do futuro trazida para o presente) que se vai concretizando e mundializando, apesar das censuras e repressões. 

Em todos os continentes milhares de pessoas foram aderindo a estas propostas, umas mais comprometidas e permanentes, outras ajudando pontualmente. A metodologia utilizada é a não-violência ativa, que impulsiona uma profunda transformação das condições sociais que geram sofrimento e violência sobre os seres humanos, promovendo ações concretas com o fim de criar consciência do problema da violência nas suas diferentes formas de manifestação, como a violência física, racial, econômica, religiosa, psicológica e moral.

Silo no Parque de Estudo e Reflexão Toledo, 2009. Em fundo, Natacha Mota
Lugares
Antes de falecer Silo deixou-nos mais um presente, uma oferta preciosa para os tempos duros que vivemos, mas sobretudo para o futuro. Lançou a construção de Parques de Estudo e Reflexão em todo o mundo. Lugares de inspiração, meditação, reflexão, intercâmbio e experiências de bem-estar, com elementos arquitetónicos comuns e muito simples que permitem a maior conexão das pessoas consigo mesmas e as outras pessoas. Entre os principais elementos dos Parques, temos a sala de meditação, uma semiesfera branca sem nenhum tipo de adornos, a fonte da vida, um monólito de aço inoxidável com a data de inauguração de cada parque, e que simboliza a unidade interna e a unidade entre o terreno e o Sagrado, e uma oficina para trabalhos com o fogo e os materiais que este transforma. Tudo está pensado para produzir uma atmosfera amável e tranquila de transformação interna.

O Movimento Humanista, no Porto
Poderia escrever centenas de páginas sobre Silo e o seu legado. Mas todas as milhares de páginas que se escreveriam podem ser substituídas pela experiência que ele nos propõe. Ele próprio nunca falava de si mesmo, não era um tema que lhe interessasse. Apenas lhe interessava transmitir a experiência de que a morte é uma ilusão e que a crença na morte é a raiz de toda a violência.  

De resto, ele não desapareceu. Sempre que fecho os olhos e evoco o meu Guia Interno, lá aparece ele. A sorrir, como sempre.
Natacha Mota

sexta-feira, 28 de abril de 2017

THE GIFT – JÁ HÁ “ALTAR” PARA VENERAR




Os The Gift têm um brilho nos olhos quando falam do seu “Altar” – o novo álbum do grupo de Alcobaça, que exibe com orgulho o trabalho com feito Brian Eno. E não é para menos, o músico e compositor inglês já produziu os U2, Coldplay, Paul Simon ou Grace Jones.
“Altar” é já considerado por muitos o melhor álbum do grupo e estou em crer que fará enorme sucesso no mercado… internacional. Nota-se o dedo de Eno nas principais músicas como Big Fish, Love Without Violins, Malifest.

O concerto de quarta-feira passada, em Vila Real, esgotou a sala e misturou o novo trabalho do grupo com êxitos de álbuns anteriores. Impossível fugir aquele “Clássico” que sintetiza as contradições em que navega o amor, assim como ao RGB ou à apaixonada “Primavera” que todos sabiam de cor. Faltou tocar The Race Is Long (música que aprecio particularmente), mas não hão de faltar oportunidades, de a voltar a ouvir em concerto.

Apesar de não haver uma óbvia ligação do grupo de Sónia Tavares, Nuno e João Gonçalves a Vila Real, Nuno conseguiu interagir com o público recordando os tempos em que tentou entrar para a UTAD, mas os numerus clausus não o permitiram. Assim como assim, estamos em plena semana académica, no capital de Trás-os-Montes.


O concerto fluiu com uma naturalidade impressionante e o público foi se libertando das cadeiras, perdendo a vergonha, e começou a dançar ao som dos novos êxitos da banda. Apesar de toda a magia africana de “Malifest” (uma agradável surpresa para mim) e da sonoridade de "Big Fish" (claramente umas das grandes apostas do grupo para esta digressão de apresentação de “Altar”), eles preferiram despedir-se com “Fácil de Entender”. 

Quem os ouve e vê percebe facilmente como se mantêm de pé ao fim de duas décadas: há uma profunda amizade entre eles e um enorme desejo de aprender e evoluir. De álbum para álbum vão ficando mais refinados e conquistando novos públicos. Não é por acaso que em Maio “Altar” estará em Berlim e Londres e que já entrou no top 100 das músicas mais tocadas pelas rádios universitárias dos EUA e Inglaterra.

Gabriel Vilas Boas

quinta-feira, 27 de abril de 2017

SILO, O REVOLUCIONÁRIO COMPLETO (I)


Conheci alguém que era típico de uma novela de ficção científica porque muito avançado no tempo. Um homem do futuro que teve, não sei se por escolha própria ou destacamento divino, de viver neste tempo e neste espaço: nasceu em 1938 e faleceu em 2010, em Mendoza, Argentina.
Chamava-se Mario Rodriguez Cobos, mas todos lhe chamavam Silo ou, mais intimamente, Negro. Era um atleta de nível olímpico, um aluno a quem os professores recorriam quando não entendiam algumas matérias, como Husserl, e a sua bondade era tão profunda que dedicou toda a sua vida a tentar transmitir como se pode superar o sofrimento da mente humana. Lançou o Movimento Humanista, a expressão prática da corrente de pensamento que intitulou de Humanismo Universalista. Este Movimento chegou a todos os cantos da Terra com o esforço dos seus membros, todos voluntários.


A sua espiritualidade era tudo menos dogmática, e sim transmitida pelo seu exemplo de ação. Em vez de nos apresentar uma lista de mandamentos impondo uma moral longínqua, partilhava com todos a sua experiência de contacto com o Sagrado, a sua certeza de que a morte é uma ilusão.
A sua máxima coerência entre o que pensava, sentia e fazia era tal e a sua proposta de transformação era tão profunda, que incomodou tremendamente os poderosos de várias áreas. As elites religiosas, políticas (tanto à direita como à esquerda) e militares perseguiram-no, atentando contra a sua vida algumas vezes, prendendo-o frequentemente, e como não o conseguiam eliminar (tinha o “péssimo” dom de se adiantar aos acontecimentos), começaram uma intensa campanha de difamação. Essa sim, bastante eficiente e nefasta, porque denegria qualquer intenção humanizadora dos membros do Movimento Humanista.
A contribuição de Silo para a humanidade foi enorme, mas tem sido muito silenciada. É tão extensa que se torna difícil sintetizá-la num artigo. Mas aqui fica o intento.

Espiritualidade
Todo o ser humano tem em si mesmo possibilidade de gerar o seu espírito, uma energia de superior qualidade, mais coesa, que perdura para além da morte. Para tal, o ser humano precisa de multiplicar os seus atos unitivos e superar os atos contraditórios. Os atos unitivos são aqueles que ajudam a superar a dor e o sofrimento nos outros seres humanos. Não há castigo, não há culpa, não há ameaças do além, não há inferno. Há apenas um caminho de ascese para todo aquele que se vá tornando consciente de si mesmo e ajude os outros a fazer o mesmo. Também não importa se se acredita ou não em Deus, pois as crenças são ilusões, tal como os devaneios. O que importa é a experiência de contacto com o Sagrado na profundidade na nossa consciência. 


Por isso para Silo o fracasso é o melhor que nos pode acontecer. Aqueles que sentem o fracasso das ilusões, das crenças, da tentativa de compensar os seus medos com elementos externos a si mesmos, poderão entrar num processo de procura humilde e sincera que levará ao contacto com a verdadeira sabedoria, força e bondade.
Para nos guiar neste caminho de ascese, que é definitivamente escolha e trabalho de cada ser humano consigo mesmo e em constante partilha de experiências em comunidade (é em experiências com os outros que a energia ou Força se torna mais potente), Silo lançou imensas propostas através de livros e atividades concretas. O Livro “A mensagem de Silo” é a referência.

Natacha Mota.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

CAETANO VELOSO NO PORTO

Fotografia de Anabela Magalhães

O QUE É QUE O BAIANO TEM?

Mesmo aos 74 anos de idade, Caetano Veloso continua a cantar e encantar o público português, lotando as salas por onde passa. Aconteceu novamente ontem, no Porto, no Coliseu, e por isso, a esta hora, Caetano Veloso sobe novamente à mais nobre sala de espetáculos da cidade portuense.

Caetano Veloso só fez a segunda parte, porque antes a surpreendente Teresa Cristina encheu a sala com a sua voz potente, cristalina, delicada e afinada. 




Entre as várias canções que escolheu para o seu show, ficou-me no ouvido aquele “O Mundo É Um Moinho”, com o seu sábio o tocante refrão
Ouça bem, Amor,
Presta atenção: O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir suas ilusões a pó”.


Depois veio o senhor da noite. Calmo e penetrante como o mar da Baia, de perna cruzada, pegou seu violão e foi desfiando algumas pérolas de uma carreira cheia de êxitos. Aquela voz de menino do Rio hipnotiza qualquer um. Caetano é esse menino que ainda provoca arrepio, pois nos faz sonhar com aquilo que sai da sua viola e da sua voz.
Caetano tem voz e coração de “Leãozinho” que todos gostam de ouvir cantar, como se de um amigo se tratasse. Ele é muitos sendo um, tanto traz o samba do Rio como a ternura da Baia. Ele é o cantor internacional e viajado e ao mesmo tempo o maior embaixador do tropicalismo brasileiro. No fundo, ele é “o vento que lança a areia do Saara, / sobre os automóveis de Roma/ a sereia que dança / A destemida lara”

Claro que nos cegas, Caetano. Com o teu Reconvexo (que a tua irmã canta melhor…) ou com aquele SOZINHO, sussurrado por todo o Coliseu numa comunhão de alma lindíssima. Quantas vezes no silêncio da noite, não penso em você ou nos vocês que me trazes à memória?

Com Caetano “Tudo está certo – dois e dois são cinco. /Cinco!” Deve ser por isso que Teresa Cristina disse que “Caetano é Foda”. Mesmo com 74 anos, depois de assistir a um espetáculo do homem, uma pessoa tem de concordar. 
GAVB


terça-feira, 25 de abril de 2017

LIBERDADE: O PODER DE DIZER E FAZER


Poder dizer o que se pensa é, provavelmente, a mais básica das liberdades. 
Em Portugal, quem tem menos de cinquenta anos não tem a noção do que significa a sua falta e por isso é difícil explicar aos mais jovens quão importante é podermo-nos expressar como queremos.
Apesar de ser a pedra basilar de qualquer sistema democrático, a liberdade de expressão é só o começo, uma espécie de condição sine qua non, mas sozinha não faz a primavera da liberdade. Também desfrutamos, em Portugal, da liberdade de decidir o nosso futuro político, ainda que essa seja uma liberdade condicional, mas a culpa não é do juiz nem das condições, mas antes do que não fizemos com a liberdade que usufruímos.

Usamos mal o poder de fazer, que a liberdade nos faculta. Fazemos pouco e fazemos mal e isso põe em risco a qualidade do ar livre que respiramos.
Obviamente é mais fácil dizer do que fazer, mas também não é nenhum bicho-de-sete-cabeças construir uma sociedade que tenha orgulho naquilo que construiu.
Comemoramos a conquista (ou reconquista) da liberdade política com canções com trinta anos, com discurso sempre iguais, com promessas que lembram desculpas, ano após ano, mas raramente somo capazes de elencar o que fizemos de relevante, nos últimos dez anos, com essa poderosa alavanca da felicidade que se chama liberdade.

Sim, nós, aqueles que têm 30, 40 e 50 anos, que espécie de liberdade construímos? Estamos satisfeitos com ela? Fomos nós que usufruímos de condições sociais, económicos e políticas ímpares nos últimos cem anos e não outra geração qualquer. Por que é que esta liberdade nos parece murcha? 
A liberdade que temos sabe-nos a pouco porque a concretizámos com preguiça. 
O poder de fazer é sublime! 
Construir uma sociedade mais culta, economicamente mais independente, mentalmente mais forte é demasiado sedutor para ficar quieto à espera que o tempo passe.
GAVB

segunda-feira, 24 de abril de 2017

AS GAIOLAS ESTÃO CHEIAS DE CERTEZAS



A frase de Dostoiévsky lembrou-me o medo que a liberdade causa. Aquela coisa de já não termos mais desculpa para o falhanço ou para a imperfeição.
«O que te impede?» Quantos já ouviram esta frase fria de um amigo, como resposta ao seu costumeiro rol de queixas e queixinhas? Na verdade, nada!
Ser livre implica decidir e decidir é arrostar com as consequências. Impossível saber o resultado antecipadamente, impossível contar só com vitórias, impossível garantir que não perderemos nada de essencial.
É por isso também que as gaiolas são confortáveis. O templo do previsível e... do tédio. Nelas habitam as certezas, mas as certezas dos outros; nelas há conforto, mas o conforto dos escravos.
Não é possível ninguém conhecer o mundo nem a si próprio dentro de uma gaiola, por mais dourada que ela seja. A maioria das gaiolas onde habita gente tem a chave por dentro ou a porta semiaberta, mas poucas vezes nela entra luz. Por que será?


Sophia de Mello Breyner, no conto A Saga refere que Sören “impunha a si e aos outros uma disciplina de responsabilidade e de escolha dentro da qual cada um ficava terrivelmente livre”.
Escolha e responsabilidade! Não sorte nem azar, muito menos destino ou circunstância. E nada de confundir “responsabilidade” com conveniência ou medo, porque isso é só mais uma maneira de alijar responsabilidades.
E se a cobardia algum dia nos atirou para a escravidão, não condicionemos a liberdade dos outros. Deixemo-los escolher, decidir, partir… sem certezas, porque, afinal, as certezas moram nas gaiolas e lá todo o canto é triste.
GAVB

domingo, 23 de abril de 2017

GANGUES DISFARÇADOS DE CLAQUES DE FUTEBOL


Como já tinha escrito há uma semana, não percebo a insistência na legalização do No Name Boys. Aquilo não é uma claque de futebol, mas um gangue perigoso que precisa de ser tratado como tal. As outras claques, como mais ou menos molho, são iguais. Não é por serem legais que a coisa melhora. A Juventude Leonina é legal e isso impediu de se juntar, perto do Estádio da Luz, numa sexta-feira à noite, quando não havia nenhum encontro de futebol, para uma luta entre dois gangues? Claro que não.

Os gangues que se travestem de claques maniataram por completo as direções dos grandes clubes portugueses, que as teme, pois elas conquistaram os adeptos mais crédulos com o seu pretenso amor ao clube.
Não nos deixemos iludir: para as “claques” de futebol, em primeiro lugar estão eles e a sua maneira fora-da-lei de existir, só depois o clube, e muito mais abaixo o desporto. Eles apenas sabem viver no ódio, no insulto, na agressão, na rixa. O clube já apenas serve para pretexto e alibi. 

A maioria deles estaria a contas com a justiça se não fossem claques do Porto, Sporting ou Benfica. Os presidentes dos clubes são cúmplices? Claro que sim, mas os adeptos também, porque estão sempre a desculpar os seus, lembrando que os outros ainda são piores. Pior é só uma categoria de mau e ser mau já é suficientemente grave para ser aceitável.
Enquanto adeptos de futebol ou outro qualquer desporto, temos de decidir de que lado estamos: ou gostamos do jogo antes do clube, e por isso temos de admitir que um dia ganhamos, outro empatamos e noutro perdemos, que um dia somos ajudados pelo árbitro e noutro somos prejudicados, ou então alinhamos com esses simpáticos rapazes que partem montras, desejam a morte a rivais e até são capazes de concretizar algumas delas.

Parece-me óbvio que as claques de futebol só podem ter um destino: ilegalização e já.
P.S. Nas últimas 24 horas, os presidentes de Benfica, Sporting e Porto, em modos diferentes, resolveram fazer de bombeiro-pirómano. Calados tinham escrito um poema.   

GAVB

sábado, 22 de abril de 2017

A ARTE DESISTIU DA CRÍTICA?



Sabem por que Gil Vicente sobreviveu à poeira dos anos? Porque analisou critica e magistralmente a sua época. Sabem por que Picasso é famoso?  Porque Guernica não é apenas um excelente objeto estético, mas um documento histórico único, um grito de revolta potente que atravessou fronteiras e gerações.
A esperança de liberdade, nos tempos da ditadura salazarista, esteve muito mais nos poemas de Manuel Alegre, nas canções de Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso do que nos grãos de areia que o PCP tentou pôr na engrenagem do regime.
A arte ganha uma dimensão transcendental quando se “mete” com o poder, quando o questiona e o critica. A arte derrubou muros e regimes; a arte formou consciências, a arte desmascarou e corrigiu injustiças.

E o que faz hoje a arte?

Não está para se maçar! Come pipocas no cinema, provoca apenas através da banalização do sexo, grita umas palavras de ordem contra os corruptos e ditadores e vai de férias para as praias da Califórnia ou do sul de França.

Estou em crer que muita da inércia popular, muita da cedência ao populismo descarado e xenófobo a que assistimos, radica na desistência da arte em assumir uma crítica estruturada e coerente ao status quo.

Faltam aos povos poetas do concreto, músicos comprometidos, filósofos pragmáticos. E falta também alguém que una a cadeia, porque carneirada há em abundância. 
Talvez seja difícil, num tempo tão subjetivo, tão partido e individualista apelar a uma arte comprometida, solidária e coerente, mas é bom perceber que muitas das conquistas coletivas de que deliciosamente desfrutamos estão realmente em perigo.
GAVB


sexta-feira, 21 de abril de 2017

ESTÁS COM CARA DE...

De segunda-feira.
De caso.
De palerma.
De felicidade.
De fim de semana
De quem não faz nada.
De quem não faz a mínima ideia do que tem para fazer.
De Plástico.
De……



Muitas vezes a nossa cara é o inconveniente espelho de um estado de alma, mais ou menos momentâneo mais ou menos comprometedor. Através dela nos desvendamos sem querer, comunicamos sem palavras, revelamos emoções e sentimentos. 
É um esforço inglório tentar controlar a imagem que projetamos, porque até o esforço da dissimulação acaba por se notar.
Num tempo em que a imagem é tão relevante, cada vez aprecio mais a autenticidade dos rostos que deixam ver pessoas com alma e coração. Caras que riem, que choram, que ameaçam, que seduzem, que inquietam, que transbordam mistério…









Há uma beleza nessa coragem que me encanta! 
É verdade que ainda demoro pouco tempo a contemplá-la, que  ainda a valorizo pouco e que, muitas vezes, a reprimo – “Que cara é essa?” – Pois não é evidente? 
Deixá-la manifestar-se sem constrangimentos. Observar o que comunica, saber incorporar esse desabafo que não sabe como expressar-se doutro modo… e sobretudo não exigir que mude de cara, pois não estamos para aborrecimentos, nem que nos conte imediatamente o que só quer dizer daquele modo silencioso.


Reparar é uma forma subtil de cuidar e de amar. Demorar-se no olhar, nas expressões, nessa imensidão de comunicação não-verbal que um rosto nos oferece é um forte sinal que deixamos ao outro do quanto ele é importante para nós.


Também por isto acho melhor não oferecermos resistência, a quem, pacientemente, nos perscruta a alma através do rosto ou dos olhos. Pode ser que seja apenas um bisbilhoteiro sem alma, mas o mais certo é ser alguém que gosta de nós com tanta profundidade que nem precisa de palavras para no-lo dizer.
GAVB


quinta-feira, 20 de abril de 2017

A VACINA DA IRRESPONSABILIDADE


O triste caso da jovem de 17 anos que esta semana faleceu com sarampo lançou a discussão sobre a importância da vacinação e da responsabilidade que os pais têm no cumprimento do plano nacional de vacinação, a que todas as crianças se devem submeter.
Obviamente que agora todos tentam aligeirar a sua culpa, mas o único dado objetivo a apurar é que aquela jovem morreu de sarampo porque não estava vacinada. Providenciar que os filhos são vacinados, que se alimentam corretamente, que vão à escola, que cumprem as regras básicas de educação são responsabilidades dos pais. São eles que têm esse dever e o poder de o fazer cumprir.

Andar com muitos “mas” à volta da questão é iludir o fundamental – é preciso ter um mínimo de responsabilidade para ser-se pai ou mãe. Quem não é minimamente responsável deve abster-se de aumentar a espécie humana. 
O grande problema é que há um número considerável de pessoas que se tem injustificadamente em alta conta e acha que sabe mais do que o médico, mais do que o professor, mais do que o polícia. Por isso, decretou que as suas controversas opiniões são leis e por conseguinte recusa-se a dar ouvidos a quem só apela ao bom senso.
Há uma grande diferença entre afirmar uma personalidade sui generis e ser absolutamente irresponsável. Infelizmente há muita gentes que confunde os dois conceitos. 
As regras que a maioria da sociedade aceita e cumpre não são uma coisinha insignificante nem nasceram porque sim. Elas são aceites porque todos ganham em cumpri-las e procuram melhorar a vida em comum.

É claro que professores, médicos, juízes, polícias, funcionários administrativos cometem erros, mas isso são exceções e nenhuma delas nos autoriza a destruir todo o edifício social, arduamente construído para proporcionar bem-estar a toda a população.


Esta semana ficamos a saber que há pais que não vacinam os filhos por convicção, mas todos já sabíamos que essa irreverência social de alguns adultos sui generis tinha deixados pegadas noutras áreas, sobretudo da educação.

A vacina da responsabilidade ainda não está disponível no mercado, mas se estivesse, havia muitos candidatos a um plano de vacinação urgente.
GAVB

quarta-feira, 19 de abril de 2017

OVERBOOKING - TODOS NÓS ESTAMOS À CONDIÇÃO


Quem viaja frequentemente de avião já deve ter ouvido falar do Overbooking, um termo que pode ser traduzido por “excesso de reserva” e que consiste na venda de bilhetes de avião em número superior aos lugares disponíveis.
Por incrível que pareça a prática é legal e ninguém está livre de ser vítima de overbooking. As companhias aéreas, procurando maximizar o lucro além do inimaginável, inventaram esta estratégia de vender duas vezes o mesmo lugar. 

Como conseguiram autorização para tal? Argumentando que havia muitas viagens com lugares pagos mas não preenchidos, porque o passageiro simplesmente não aparecia. Para evitar esse constrangimento (recusar novos passageiros quando na verdade os podia aceitar), autorizou-se o overbooking. O pior é quando aparecem todos para a viagem e há que escolher quem fica de fora. As companhias começam por procurar voluntários para viajar noutro voo, oferendo-lhes dinheiro, mas isto não pode ser suficiente. Nesse caso, assumem o odioso da estratégia arriscada e pagam a multa/indeminização que a lei obriga à pessoa que vão colocar fora do avião.
O problema é quando um overbooking atinge uma família e a pessoa excluída é um menor. O pai ou a mãe vai ter de ficar de fora também, mas não é certo que a companhia cubra os seus prejuízos: hotel, atraso, novo bilhete (certamente mais caro), e uma sucessão de prejuízos pessoais impagáveis.

O overbooking é uma metáfora cada vez mais realista dos tempos modernos: mais do que nunca, estamos à condição.

A nossa posição no local de trabalho ou até num relacionamento depende cada vez mais de condições que nem suspeitamos. Sempre pode aparecer alguém que faça o mesmo trabalho por menos dinheiro, que seja mais rápido ou eficaz, que ofereça mais e melhores argumentos. A possibilidade de cairmos para a lista de overbooking é assustadoramente real.
É verdade que compramos o bilhete a tempo e horas, é verdade que fizemos o check-in, é verdade que a viagem, o emprego ou a relação é fundamental para nós, mas é possível que alguém tenha vendido dois bilhetes para o mesmo lugar e secretamente esteja a promover um leilão para saber com qual ficar.

A única resposta possível é deixar de viajar em companhias low-fidelity. O respeito dos outros começa em nós.
GAVB

terça-feira, 18 de abril de 2017

A BONDADE OSTENSIVA NÃO SERÁ UMA ESPÉCIE DE MALDADE?




Nietzsche escreveu que “Há uma exuberância na bondade que parece maldade.” E à primeira vista pode parecer uma maldade chamarmos maldoso a quem tanto se empenha em ser bondoso.
Convém lembrar que a bondade nunca é de mais, mas o ADN é feito de discrição e bom senso. A bondade não serve para mostrar quão bons somos, mas apenas para praticar o bem, junto daqueles que dele precisam.
Preocupação semelhante teve o evangelista São Mateus, no capítulo 6.º, quando aconselha aqueles que dão esmola “Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”.

A bondade é um valor, um conceito de vida que se exercita ou não. Exibi-lo é negá-lo.
É verdade que a vaidade é dos principais defeitos do ser humano, mas não conseguir domá-lo é pôr-nos a jeito de algo ainda pior: a maldade.  Ostentar a nossa bondade para com alguém pode ter como efeito diminuí-lo, rebaixá-lo, amesquinhá-lo. Claro que isso pode ser feito com alguma inconsciência, fruto da nossa incomensurável vaidade, mas dificilmente prossegue sem nos darmos conta do mal que fazemos. É no momento em que tomamos consciência do delito cometido e nele prosseguimos que praticamos a maldade.
Maldade em forma de fingida bondade é uma perversão horrenda, da qual devemos fugir, até porque a generosidade ostensiva perde valor e nós com ela.

GAVB

segunda-feira, 17 de abril de 2017

INFORMAR NÃO É CHEGAR PRIMEIRO, INFORMAR É SER VERDADEIRO


É certo que vivemos o tempo da pós-verdade, em que apenas estamos disponíveis para aceitar aquela parte da realidade que nos interessa; é verdade que os jornais, as rádios e as televisões precisam que o leitor os “compre" todas as manhãs, tarde e noites, mas os factos são ainda mais duros que as leis. 
A informação devia primordialmente apresentar os factos e deixar ao leitor o papel principal de comentador. Não é assim que acontece.

Quem informa vive na ânsia de chegar primeiro, criar polémica ou fazer a notícia bater com os desejos da maioria. Informar não é isso! Informar é ser verdadeiro. Às vezes, isso é cruel, outras vezes insonso, outras ainda, doce e fabuloso.


Quem escreve em jornais ou faz televisão tem que perceber que não é o protagonista. Tem que ser bom naquilo que faz, mas ser bom é ser anónimo, competente, independente.
Um dos grandes valores do jornalismo era a confiança que gerava na opinião pública. Hoje isso não acontece, de tal forma que é necessário confirmar determinada notícia através de várias fontes, além de muitos leitores preferirem destacar o subjetivo comentário aos factos do que o próprio facto.




Lamento muito o rumo que o jornalismo segue no mundo. Culpar o poder, culpar as fontes, queixar-se das difíceis condições de trabalho, da raiva dos leitores ou da fraca venda de papel ou audiência é fugir à questão fundamental: um jornalismo relata factos, quando foge disto é outra coisa qualquer, mas não jornalista.



Ao contrário do que possa parecer, o leitor tem um papel fundamental, na formação do jornalista. Quando mudamos de canal, deixamos de comprar o jornal ou denunciamos, nas redes sociais ou entre amigos, o abuso que determinado jornalista faz do seu sagrado papel de informar a verdade, o jornalismo marca pontos e a sociedade também. 
Quando não ampliamos apenas a parte da notícia que nos agrada, mas toda a notícia, por ventura até a parte que menos nos agrada, contribuímos para a necessário purga que é preciso fazer neste clima em que os jornais e os jornalistas parecem claques de futebol, digladiando-se em busca do Óscar da pior realização de sempre.

Gabriel Vilas Boas