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domingo, 5 de junho de 2016

ESTIVADORES



“Há situações de conflito que me incomodam mesmo que tenha de aguentá-las no momento. Mas depois fico triste.” Alexandra Leitão - Secretária de Estado Adjunta da Educação

Enquanto faço zapping pelos vários canais do cabo reparo no final de um programa de análise/comentário dos vários acontecimentos da semana em Portugal. Um moderador, cujo nome desconheço, lança o último tema de análise: o fim da greve dos estivadores. No painel de comentadores estão três figuras da sociedade civil portuguesa que se vão pronunciar sobre o caso. Todos são pessoas esclarecidas e não partidárias. Dois homens e uma mulher falam do caso. Os homens nitidamente contra a posição dos estivadores, a mulher a favor. Oiço os argumentos de todos e levo o primeiro abalo: nenhum dos homens sabia o que estava em causa na greve, quais as reclamações dos estivadores, a razão fundamental de mais uma greve. Apenas sabiam que era mais uma greve e isso era intolerável.

Entretanto o moderador diz que o programa está a esgotar o tempo e pede a um comentador uma última intervenção. Virgílio Castelo, o ator, declara alegremente que espera que rapidamente os robôs ganhem capacidade para substituir os estivadores porque está farto deles e das suas greves; a mulher, em tom irónico, tenta encontrar a razão da sociedade portuguesa detestar tanto os estivadores e coloca duas hipóteses: a unidade que demonstraram em recusar trabalhar para uma empresa de trabalho temporário que recebia um mínimo de 800 euros líquidos por trabalhador mas apenas pagava 600 euros a cada trabalhador (ou seja, ficava com 25% do suor dos trabalhadores sem nenhuma razão objetiva para tal; note-se que a empresa fora criada por gente muito bem relacionada com as cúpulas do porto de Lisboa e do poder político) e a solidariedade entre estivadores, pois o sindicato dos estivadores repunha aos trabalhadores precários e/ou a trabalhar para a empresa de trabalho temporário o diferencial para o trabalhador efetivo.
Os dois homens sorriram sarcasticamente e um teve a lata de dizer: “Isso é suborno. O sindicato suborna-o para eles fazerem greve!”

Fiquei estarrecido. Nunca tinha ouvido ninguém chamar suborno a um ato de solidariedade. Quando alguém me pagar a viagem para ir a uma manifestação, isso será suborno. Se alguém decidir pagar o meu dia de greve para que, em consciência eu possa fazer greve ou não, estou a ser subornado. Em última instância, as quotas que pagamos ao sindicato em que nos decidimos filiar é dinheiro para usar em subornos a trabalhadores a fazerem greve.
Como é possível irmos para um programa mandar uns bitaites sobre este ou aquele assunto sem nos prepararmos minimamente para ele? Que acharia Virgílio Castelo se um jogador de futebol declarasse do alto da sua sapiência não entender por que razão se havia de pagar a um encenador se os atores eram suficientemente espertos para interpretar um texto dramático ou se a senhora que trabalha nas Finanças mostrasse a sua indignação pelo empresário teatral não substituir o técnico de som ou de luz por um programa de computador. 


Que acharia Virgílio Castelo se os atores e encenadores apenas pudessem firmar contratos com empresas de trabalho temporário que ficassem à cabeça com 25% do orçamento para pagar aos membros de uma companhia de teatro?
Volto às palavras da Secretária de Estado Adjunta da Educação, Alexandra Leitão: “Há situações de conflito que me incomodam mesmo que tenha de aguentá-las no momento. Mas depois fico triste.”
Há argumentos e opiniões que me revoltam demais para merecem a minha mais enérgica oposição, mas deixam-me profundamente triste e magoam-me. Lá no fundo derrotam-me, porque acabam com o pouco idealismo que ainda restava em mim.

gavb

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