Há poucas horas,
folheando um jornal fui abalroado por esta notícia: “Em 2014 havia 35 milhões de escravos no mundo; Índia, China e Rússia
lideram o ranking”.
Li com atenção o corpo
da notícia e levei mais uns quantos socos na minha alegria quotidiana. Tudo me
parecia tão monstruoso quanto irrealista e absurdo, considerando o grau de
desenvolvimento humano atingido em grande parte do planeta.
Só num ano (2014), o
número da ignomínia cresceu seis milhões de seres humanos. Não consigo digerir
tais factos, mas não é por isso que eles deixam de existir. Olho e volto a
olhar para a notícia. Simples, fria, por ela abaixo escorria todo a banalidade
do mal de que falava Hannah Arendt. E parece bem mais difícil lutar contra a
banalidade do mal do que contra a própria maldade. A indiferença perante a
injustiça absoluta ou a indignidade total é mortífera porque destrói o ânimo
das vítimas.
Pego outra vez no
jornal, procuro os donos do inferno e encontro potências económicas como a
Rússia, a China e a Índia. Não consigo ganhar asco aos seus cidadãos nem me revolta
a sua inação, pois conheço como há décadas são subjugados por tiranias e
ditaduras. Ainda que continue chocado, ainda que me pergunte vezes sem conta como
“Como é possível?!”, a História do século XX ensinou-me que Direitos Humanos
foi um conceito banido do dicionário dos governos chinês, indiano e russo.
Não, não acho que a
absurda ansiedade de poder e riqueza explique o que quer que seja, nesta
atitude animalesca de fazer um semelhante escravo. Também não penso que os
russos, os chineses ou os indianos sejam o pior que a humanidade tem para
mostrar. O problema é mesmo da cultura e mentalidade política dos sucessivos
governos destes países. Não sei se alguma vez mudarão o suficiente, mas pressinto
que será um trabalho enorme no conteúdo e no tempo.
No entanto, o que mais
me abale é pensar que todos os dias fazemos negócios com eles, que andamos a
suspirar pelas encomendas dos russos, pelos negócios com os chineses, pelas
calças de ganga produzidas na Índia. Sim, somos nós, os portugueses, os
franceses, os ingleses, os dinamarqueses, os belgas, os italianos, os alemães
que nos declaramos ao lado da liberdade e da democracia, que apertamos a mão que
agrilhoa seres humanos e os escraviza vinte e quatro horas por dia.
Acho que sempre
soubemos que eles faziam isso. Antes faziam-no com os próprios compatriotas,
hoje fazem-no com emigrantes. A maldade é a mesma ou até pior, mas nós começámos
por fingir que não víamos. E fingimos tão convictamente que hoje nenhuma
notícia, por mais cruel que seja, nos perturba. Por vezes, tenho a sensação que
a civilização ocidental é uma fraude, um simulacro de humanidade.
Gabriel Vilas Boas
É horrível.
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