Acabo de assistir à representação da peça “Bovary”, texto e encenação de Tiago Rodrigues, a partir da imortal obra de Gustave Flaubert “Madame Boavary”. Como muito bem prognosticou a minha amiga Susana Dias, a peça surpreendeu-me, apesar de eu já ir à espera do melhor, tendo em conta o encenador, já que os jovens atores não os conhecia.
A peça excedeu amplamente as minhas altas expetativas e isso muito se deve ao magnífico trabalho do encenador Tiago Rodrigues e dos cinco atores que encheram a minha tarde de duas horas de uma magnífica representação teatral, que quase lotou o Teatro Nacional São João.
A maneira como Tiago aborda toda a polémica que esteve durante décadas associada à obra de Flaubert é magistral: ele parte do Processo “Madame Bovary” para discutir a obra do escritor francês, a sua legitimidade, a sua oportunidade, as pertinentes questões que levantou e ainda continua a levantar.
Grande parte da peça baseia-se numa troca de argumentos entre o advogado de acusação imperial e o advogado de defesa de Gustave Flaubert, em tribunal, no julgamento a que o escritor foi submetido em 1857. Um tenta provar que a obra e seu autor tiveram a clara intenção de ofender a moral e a religião, o outro luta por mostrar que Flaubert apenas mostrou a realidade, sendo que esta nem sempre é bela nem sempre é negra.
É que atuação dos dois atores encarregues de representar os dois causídicos: Gonçalo Waddington (advogado de defesa de Flaubert) e Pedro Gil (advogado de acusação) é soberba.
O encenador soube com mestria cruzar o julgamento de Flaubert com a leitura do próprio romance, como se aquilo que estivesse a ser julgado fosse muito para além do próprio autor de “Madame Bovary”, mas o conceito de moral, um tentativa de fixar o que é certo e errado por decreto. Por momentos, a própria arte literária sente-se acossada naquele julgamento.
Se o adultério de Emma Bovary suscitou discussão acalorada durante décadas, na arte, não foi certamente porque se tratou de um crime sem desculpa, sem justificação. Mais de século e meio depois, percebemos que o que não é dito ainda é perigoso, Bovary ainda é estranha e sedutora, a arte ainda intimida quem quer controlar o pensamento dos outros e definir um moral única.
A peça de Tiago Rodrigues parte dos discursos originais dos advogados que abriram o famoso julgamento de Flaubert e explica, com mestria, como quem estava a ser julgado não era o autor, mas a personagem: Bovary, a provinciana adultera, má esposa e má mãe, que desrespeitava os ditames da igreja de modo tão descarado.
A densidade psicológica de cada personagem vai sendo tratada com grandeza pelos atores, o público fica rendido à representação e à ideia criativa do encenador; o espectador sorri e ri, mas não deixa de pensar, de tomar partido, de interiorizar aquilo que Flaubert queria que interiorizásse.
Carlos Maciel esteve magnífico, no papel de Charles Bovary, o marido engando e manso, que nem quando descobre todas as traições de Emma consegue deixar de a amar. Mas seria injusto não destacar também o desempenho de Carla Maciel (Emma Bovary) e Isabel Abreu (Gustave Flaubert/ Léon).
No fundo esta “Bovary” de Tiago Rodrigues confirma a transcendência da obra realista de Flaubert, confirma o excelente encenador que Tiago é e revela ótimos atores. O segredo é simples: a liberdade dos atores em palco, a utilização rica da língua, um ritmo de representação intenso, uma obra teatral de qualidade.
Como muito bem explicou Charles Bovary no final da peça, todos, um dia, morrem, mas Bovary parece cortejar a imortalidade.
Como muito bem explicou Charles Bovary no final da peça, todos, um dia, morrem, mas Bovary parece cortejar a imortalidade.
Gabriel Vilas Boas
Sem comentários:
Enviar um comentário