A tradição do bolo-rei já não é o que era.
É certo que a massa continua a certa feita das mesmas coisas: farinha, ovos e
açúcar. A versão original continua a levar frutas cristalizadas, passas e
frutos secos, mas algumas “coisas” se perderam com a modernidade: o buraco ao
meio do bolo deixou de ser feito com o cotovelo do pasteleiro e, por imposição
da União Europeia e excessivo zelo da ASAE, deixou de haver fava mas também de
haver brinde. Por isso já não me calha a fava, como era tradição nos Natais da
minha infância. Acabaram com o brinde antes de ter experimentado o doce sabor
da fortuna.
A expressão “calhou-me a fava” significa que ficamos com a pior parte de alguma coisa e vai buscar as suas
origens a esta tradição de Natal: cortar uma fatia do bolo-rei e encontrar nela
uma fava. Quem tivesse “essa sorte” teria de comprar o bolo-rei do Natal seguinte.
Por outro lado, quem recebesse o brinde ficava com o objeto (normalmente de
metal), que muitas vezes tinha a forma de uma animal e era considerado pessoa
com sorte.
As entidades reguladoras consideraram que
esta tradição podia colocar em risco a saúde e a integridade dos dentes dos
consumidores e proibiu que se inserisse brindes no bolo-rei. Ora, o povo
decidiu que se não havia brinde, também não haveria fava, porque não gostou
nada que o mandassem à fava daquela maneira.
Quando a medida foi tomada, em Portugal,
causou grande polémica e muitas vozes se levantaram contra tal proibição, de
tal maneira que a ASAE se viu obrigado a emitir um esclarecimento: “É permitida a comercialização de géneros
alimentícios com misturas indiretas de brindes, desde que estes se distingam
claramente do alimento pela sua cor, tamanho, consistência e apresentação, ou
seja, concebido de forma que não cause riscos no ato de manuseamento ou ingestão, à
saúde ou segurança do consumidor, nomeadamente asfixia, envenenamento, perfuração
ou obstrução do aparelho digestivo.”
E
assim se dá cabo de uma tradição que pode ter dois mil anos. Reza a lenda que o
bolo representa os presentes que os três reis magos deram ao menino Jesus
quando nasceu: a côdea era o ouro, os aromas o incenso e as frutas a mirra. A
introdução da fava terá nascido quando Gaspar, Baltazar e Belchior viram a
estrela que anunciava o nascimento de Jesus Cristo e disputaram entre si qual
dos três seria o primeiro a dar o presente. Um padeiro fez então um bolo onde
escondeu uma fava, e o Rei Mago que ficasse com a fatia que tinha a fava seria
o primeiro a entregar a sua oferenda ao Menino. Ou – nos tempos mais moderno –
o próximo a oferecer um bolo-rei.
As
favas já foram usadas também como votos e, durante o tempo dos romanos, as
crianças usavam as favas, durante as brincadeiras, para escolher o rei da
festa. A mesma prática terá sido usada pelos adultos, durante os banquetes das
Saturnais.
Este festival romano em honra do deus Saturno acontecia em Dezembro
e foi depois absorvido pelas comemorações de Natal até ao dia 6 de Janeiro.
Ora, no dia de Reis, também manda a tradição que se coma… bolo-rei e em Espanha
é nesta altura que se trocam presentes entre familiares e amigos.
Quanto à receita do bolo-rei, é francesa e
remonta ao tempo do rei Luís XIV, sendo depois exportada para diversos países.
Em Portugal, o doce começou por ser vendido pela Confeitaria Nacional, em
Lisboa, em 1870. Dada a sua ligação ao rei Luís XIV e a França, o bolo-rei
chegou a ser proibido com a Revolução Francesa e quase desapareceu com a
República por causa da palavra «rei». Ainda lhe tentaram de mudar de nome e chamar-lhe
«bolo Arriaga», mas a tradição manteve-se.
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