O conhecido cineasta português António Pedro Vasconcelos estreou há poucas semanas a sua última proposta cinematográfica – Os Gatos Não Têm Vertigens – protagonizada pela atriz Maria do Céu Guerra. O filme tem uma qualidade média/boa e compete (numa questionável opção de lançamento) com “Os Maias” de João Botelho, nas salas de cinema portuguesas.
O realizador leiriense produz filmes há mais de quarenta anos, mas foi na década de oitenta que o seu Lugar do Morto (1984) o tornou uma figura bem viva do cinema português. Durante vários anos, o filme foi o mais visto do cinema português, tendo arrecadado vários prémios nacionais (melhor filme português, melhor ator masculino, melhor banda sonora e melhores diálogos).
A partir de então, António Pedro Vasconcelos passou a gerir com mais critério as suas realizações, que, também por isso, ficaram mais raras. Até ao fim do século XX, apenas realiza Aqui D’ El Rei (1992) e Jaime (1999). Em 2003, aproveita da melhor maneira toda a experiência de representação de Nicolau Breyner, Joaquim de Almeida, Alexandra Lencastre, Ana Padrão, Maria Rueff e Rogério Samora para realizar o seu Imortais, que refletia sobre o tema preferido do escritor Lobo Antunes: os traumas da guerra colonial portuguesa que assombram os nossos ex-combatentes.
Já depois de ter feito 65 anos, o cineasta benfiquista rendeu-se aos encantos de Soraia Chaves e entrega-lhe o protagonismo em Call Girl (1997) e A Bela e o Paparazzo (2000). No primeiro caso o público aplaudiu a ousada película, no segundo caso, o efeito Soraia Chaves desvaneceu-se um pouco.
Os filmes deste homem do cinema português, nascido há setenta e cinco anos, deixaram-me sempre a sensação, tão portuguesa, que poderiam ter ido mais além. Na maioria dos casos, trata-se de bons filmes, mas não há um grande filme que me enchesse as medidas, com uma única exceção: Jaime.
Neste trabalho, António Pedro Vasconcelos fugiu quase completamente ao seu círculo de atores preferidos e escolheu o pequeno Saul Fonseca para o papel principal. Por trás, Joaquim Leitão, Fernanda Serrano, Vítor Norte e os inevitáveis Rogério Samora e Nicolau Breyner forneciam o indispensáveis suporte de experiência que o jovem ator necessitava, para brilhar dum modo tão inesperado.
A história passa-se no Porto, onde Jaime, de treze anos, se faz à vida dos adultos procurando empregos que impeçam a mãe (Fernanda Serrano) de cair no poço sem fundo da prostituição. Na alma guardava os sonhos de crianças (aqueles Nikes faziam-no mesmo voar como o Jardel entre os centrais), enquanto o coração trazia o ardente desejo de voltar a unir os pais separados. A letra que Carlos Tê escreveu para a voz de Rui Veloso é a banda sonora do filme e metaforiza poeticamente toda a película
Eu queria unir as pedras desavindas
escoras do meu mundo movediço
aquelas duas pedras perfeitas e lindas
das quais eu nasci forte e inteiriço
Eu queria ter amarra nesse cais
para quando o mar ameaça a minha proa
e queria vencer todos os vendavais
que se erguem quando o diabo se assoa
Tu querias perceber os pássaros
Voar como o jardel sobre os centrais
Saber por que dão seda os casulos
Mas isso já eram sonhos a mais
Na época, a crítica destacou muito o filme a partir da temática da exploração do trabalho infantil em Portugal. Hoje, parece-me que o enfoque seria outro: a angustiante luta de muitas crianças e adolescentes para impedir a separação dos pais. O grito de raiva, impotência e tristeza que brotava da boca do Jaime, oiço-o eu a alguns alunos com que me cruzo todas as manhãs na escola. O Jaime, personagem do filme António Pedro Vasconcelos, encarava aquela dor como um desafio de cirurgião que tenta pacientemente reconstruir um corpo destruído.
A crítica nacional e até internacional aplaudiu a qualidade superlativa do filme. No entanto, a melhor recompensa que um trabalho dum realizador pode obter é permanecer na memória e no coração das pessoas e Jaime conseguiu-o.
Gabriel Vilas Boas
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