Luís Miguel Cintra, o criador total do teatro português, está a despedir-se. Lentamente, para ser menos doloroso para todos, mas a estrada do fim começou a ser trilhada.
Há três meses, no meio do outono passado, no final da
representação de Hamlet, de Shakespeare (tradução de Sophia de Mello Breyner)
anunciou a sua saída de cena por motivos de saúde. O alzheimer vai-lhe
corroendo lentamente a memória e ele, melhor do que ninguém, sabe que
representar não pode ser um ato frio, mecânico, soprado a partir de qualquer
auricular.
Ator, encenador, dramaturgo, Luís Miguel Cintra (LMC) é um
homem do Teatro e a ele devotou toda a sua vida. Foram quarenta anos
maravilhosos a representar centenas de peças, a encenar outras tantas, a
reescrever trechos de peças dramáticas imortais, pois, ao criar teatro, LMC
escolheu sempre “interpretar” o texto mais do que "transportá-lo" para o palco.
Um palco onde tudo era trabalhado de uma forma exigente:
guarda-roupa (em colaboração estreita com Cristina Reis), iluminação, música,
voz, trabalho de ator.
Como para ele o teatro sempre foi um todo, a carreira de
encenador começou quase ao mesmo tempo que a de ator. E quanto útil foi ao
encenador saber o que era ser ator! A sua predileção sempre foi a atuação e por
isso afirma com frequência que gosta de representar tudo aquilo que encena.
Começou por representar a peça “O Avejão” de Raul Brandão,
mas foi a fazer de Papa em “Ela” de Genet e a representar “Afabulação” de
Pasolini que mais satisfação alcançou enquanto artista criador de personagens,
pois os seus papeis permitiram-lhe tocar questões como a liberdade interior, o
poder, a autoridade ou a ética.
Como encenador, iniciou-se com o imortal “Anfitrião” de
Plauto e depois seguiram-se dezenas de peças onde criou e ensinou ao mesmo
tempo, ajudando a formar sucessivas gerações de jovens atores.
Esse amor ao teatro é ainda mais evidente se tivermos em
conta que há quarenta e dois anos (1973) fundou com Jorge Silva Melo a Cornucópia – uma das mais antigas e
reconhecidas companhias de teatro portuguesas. A Cornucópia anunciava os ventos de Abril e 1974 e, como muitas
outras companhias independentes de teatro, juntava atores, dramaturgos e dramaturgos
que gostavam de viver em grupo, adoravam representar e não lhes agradava a
ideia de criar em função do lucro.
Luís Miguel Cintra pode orgulhar-se de um companhia que antes
de mais era uma casa de afetos, onde todos se sentiam confortáveis a
representar, pois em palco via-se, antes de mais, pessoas.
Não vale a penas ser nostálgico. Quando se decide parar,
ainda que em slow motion, muitos
sonhos ficam por realizar. Fazer Dom João
de Molière é um deles, o outro era representar uma peça de Wedekind. No
entanto, alguns projetos ainda são possíveis. Daqui a duas semanas, sobe ao
palco do São Carlos uma ópera encenada por si – O Diálogo das Carmelitas, da dupla Poulenc e Bernanos.
O homem que foi para letras para ser artista prepara o fim.
Devagar. Despedindo-se à vez de cada um dos seus “heterónimos” com classe e
sabedoria. Há semanas disse que “através do Teatro, teve o prazer de estar na
vida com os outros”. O prazer foi e ainda é nosso, Luís Miguel Cintra.
Gabriel Vilas Boas
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