Anselo Braamcamp Freire de Santarém
O MNAA – Museu Nacional de Arte Antiga- é mais um dos museus imperdíveis do panorama cultural português. Criado em 1884, possui uma das mais importantes coleções de arte, fazendo parte do seu acervo obras de pintura, escultura e ourivesaria bem representativas do património artístico europeu, africano e oriental.
Este museu destaca-se igualmente pelas exposições que organiza e que suscitam o interesse de um vasto público, sendo por isso um dos mais visitados do país. Exemplo disso é a atual exposição patente no MNAA até 6 de setembro de 2015,”Josefa de Óbidos e a invenção do Barroco português” que promete animar este Verão ou, pelo menos, torná-lo mais terno. No Palácio do Alvor, poderão ser apreciadas mais de 130 obras daquela artista, obras de proveniência diferenciada, como por exemplo, o Museu do Prado, o Mosteiro do Escorial e até de inúmeras coleções privadas, portuguesas ou estrangeiras.
Anselo Braamcamp Freire de Santarém
Sobre a protagonista de hoje, queria apenas dizer que nasce em Sevilha, em 1630;filha do pintor português Baltazar Gomes Figueira e de Catarina Cabrera e Romero, instala-se em Portugal, mais propriamente em Óbidos, em 1634.
Datam de 1647 as suas primeiras pinturas e, em 1676,pinta as suas primeiras naturezas-mortas, que tanto me agradam e de que também vos falo agora. Josefa é uma das responsáveis pela “reintrodução do primado da cor diversificada” e de uma paleta mais colorida, como forma livre de apreender e registar na tela a diversidade da Natureza.
As suas temáticas de eleição eram, sem dúvida, as naturezas-mortas. No entanto, o Cordeiro de Deus, o Menino Jesus Salvador do Mundo ou o casamento místico de Santa Catarina (temas tão recomendados pelos reformadores católicos de então) foram igualmente assuntos recorrentes na sua obra.
Josefa de Óbidos, Natureza-Morta com frutos e flores(c.1670, MNAA)
Em 1684, pinta a sua obra final, um Menino Jesus. Morre em Óbidos, nesse mesmo ano. De Josefa e da sua obra, Miguel Torga, em 1949, afirmou:
“Enquanto um baboso se extasiava diante de um Menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa-de-ovos, raspei-me. Raça de portugueses que não dão um pintor que se aproveite.”
Claro que lhe perdoámos o excesso, estaria com certeza num mau dia. Acontece a todos. Uma mulher que atinge o prestígio de Josefa num tempo tão adverso, que se emancipa da esfera masculina tão própria do seu tempo e que, à sua morte, possuía já fortuna e bens consideráveis, graças à qualidade do seu trabalho que lhe granjeia fama internacional, não pintou nunca Meninos Jesus como quem pinta trouxas-de-ovos. As suas figuras não eram figuras terrenas. Propositadamente. Há que entendê-la.
Anselmo Braamcamp Freire de Santarém
Esta exposição pretende corrigir a ideia (errada!) que se instalou entre nós, de uma “pintora curiosa mas provinciana”, menor, ingénua, quase naif, trazendo para a ribalta a artista culta que foi, bem representativa da arte do seu tempo, reflexo de uma espiritualidade da época, num ondular de tendências pictóricas que passaram pela pintura sevilhana (influência do pai, por certo), pelas experiências de luz, de origem francesa…enfim. A sua obra foi sempre inundada de uma doçura terna, terrena ou divina, que resultou inevitavelmente da sua condição de provincial mulher, mas que foi motor para ultrapassar a monocromia que caraterizava a pintura portuguesa da fase anterior.
O fator geografia (a distância de Lisboa, onde tudo acontecia), a sua educação e devoção religiosas, bem refletidas na sua obra, não a impediram deste toque de modernidade. Zurbáran influencia o seu registo. Tal como ele, Josefa é uma pintora da figura individual, não com grandes preocupações compositivas. A grande pintura da sua época é a que conta a história de Cristo e dos Santos, que ela também retrata e partilha em telas e retábulos.
Mas a pintura de bodegones (termo espanhol para naturezas-mortas), está lá. A atraí-la sempre, talvez as solicitações de uma clientela civil que se sentia honrada pela presença de uma tela de Josefa, a prestigiar lautos jantares, na parede da sala que abrigava felizes comensais à volta da mesa repleta de agradáveis iguarias. O século XVII trouxe autonomia à natureza-morta. A pintura a óleo fez o resto, possibilitando o seu desenvolvimento pois trazia mais rigor ao nível das texturas, dos tons, das velaturas. Mas é apenas após o Romantismo que esta temática ganha reconhecimento (sobretudo com o Realismo e Naturalismo do séc. XIX).Os cubistas apreciam-nas também e Cézanne viu na natureza-morta o meio privilegiado para resolver questões de harmonia e representação espacial na pintura.
Frutas, flores, peças de caça, doçaria, barros e rendas alvas, tudo ela espelhava nos seus óleos, em composições equilibradas, num jogo de dramatismos barrocos, tão ao gosto de então, numa inusitada profusão policromática.
É o ritual da mesa, ancestral, religioso, sagrado que ela representa como ninguém. Sobre a mesa, a toalha alva, branca, em sinal de asseio, de pureza, de sagrado. O simbolismo religioso está presente: assim, se a toalha se estende sobre a mesa, temos o símbolo da “liberalidade de Deus”; por outro lado, se a toalha esconde os alimentos significa a bênção da divindade sobre aquelas iguarias. Josefa de Óbidos ou de Ayala gosta destas significâncias e destes jogos de “cobrir e revelar”, que usa nas suas naturezas-mortas (“Doces e Barros” e “Natureza-Morta: cesto com bolos e toalhas”.
Josefa gosta igualmente de valorar alguns alimentos. O figo é encarado com “doçura”, talvez por ser símbolo de abundância. Tal como a pintura quase poética de Josefa, também a literatura do seu tempo nos deixa retratos ímpares de frutos divinos. Deliciem-se com Sóror Maria do Céu e estabeleçam vocês a ponte entre a sua poesia e a pintura de Josefa. Escolhi para vós dois poemas, que nos falam de frutos que anunciam e quase encerram o Verão. Deliciosos ambos. E deliciosas ambas. Entretanto, oiçam música barroca. A música é ou não alimento da alma?
Pêssego Guerra
É o pêssego guerra sem engano,
Pois forma tem de coração humano.
Os persas nos escudos mais prezados,
Os davam por divisa aos mil soldados.
Seu caroço diz lidas,
Que nasce todo cheio de feridas.
O que sangue derrama é mais ilustre,
Que é soldado sem sangue, aço sem lustre.
Tu coração humano, que assim cresces,
E na forma ao pêssego pareces,
Sabe que ainda triunfante em outra glória,
Só vencendo-te a ti terás vitória.
Sóror Maria do Céu
Figos doçura
He o figo doçura
E na gentileza se se apura
A Mercúrio dos Deuses Enviado
Por seu doce eleger, foy dedicado
São brandos, e suaves,
E por tais perseguidos pelas aves
Em diverso sentido(…)
Sóror Maria do Céu
Rosa Maria Fonseca
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