Há cerca de uma semana,
desloquei-me, pela primeira vez, ao Teatro do Bolhão, no Porto, para assistir a
uma peça de teatro. Tratava-se de "Almas Mortas", peça encenada por António
Júlio, a partir de um texto do ucraniano Nikolai Gógol. Não tinha grandes
expectativas acerca da peça, pois não conhecia nada de Gógol, nem dos atores,
mas esta parecia a melhor proposta da parca oferta teatral da cidade portuense,
num domingo à tarde, no final de primavera.
A primeira surpresa foi
a sala repleta. Afinal há público para ir ao teatro. A peça justificou-o,
apesar de não ser fácil de interpretar. Gostei imenso da performance dos
atores, maioritariamente jovens, e da coreografia.
Meio escondido na Rua Formosa, o Palácio do Bolhão surge totalmente restaurado e disponível para a
ACE – Escola de Artes e para a representação teatral.
Almas Mortas é uma peça
inquietante tal como o texto que lhe dá origem. Apresenta-nos o percurso de uma
figura misteriosa, Tchítchikov, que chegado a uma cidade qualquer da Rússia é
recebido como um dos seus e, mais do que isso, admirado e elogiado pelas suas
qualidades.
Tchítchikov visita uma
série de proprietários e revela-lhes a intenção da sua viagem: comprar almas
mortas. Todos estranham o objeto do negócio, mas todos acabam por ceder e,
mesmo desconfiando da legalidade da transação, acabam por vender-lhe as suas
almas mortas.
Ora, as almas são os
servos que trabalham nas terras dos proprietários em troca de uma gleba. As
almas são os trabalhadores que, com o seu esforço, alimentam estas
propriedades. As almas são pessoas e são mercadoria.
No texto de Gógol, as
almas são um pretexto para contar uma história. A peça dá voz e corpo a estas
almas, que vão por para além da Rússia do Czar e do início do século XIX.
Em muitos momentos, o
espetador não deixa de perguntar: “Afinal, para onde vai Tchítchikov?
Continuará o seu périplo por outras cidades, comprando listas e listas de
almas, deixando tudo igual atrás de si?"
Queremos que nada mude?
Que o Tchítchikov dos nossos tempos e dos nossos dias percorra infinitamente
cidades corruptas, alicerçadas na servidão moderna?
As almas de que Gógol
quis falar não são almas mortas, são almas adormecidas pela servidão que muitas
vezes se confunde com escravidão. Elas são “mortas” porque nunca tiveram voz.
As almas de Gógol, as almas do Czar russo, os mujiques, eram os homens e
mulheres que trabalhavam e alimentavam toda a estrutura social. Servos de
outros homens. Eles são silenciados durante toda a peça… Afinal, temos de
concluir que as almas, as pessoas vivas ou mortas, parecem ser apenas
mercadoria transacionada.
Está na hora de acordar
os mortos!
Gabriel Vilas Boas
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