O Teatro Português deve muito ao talento dos seus atores, à qualidade literária dos dramaturgos, à competência dos técnicos, à sagacidade dos encenadores e também ao trabalho perseverante das companhias de teatro. Lutando com falta de meios materiais, com falta de financiamento, com ausência dum público esclarecido, elas são a vela que nunca se apagou e mantém viva a chama do Teatro em Portugal.
Hoje falo-vos duma das mais antigas e reputadas Companhias de Teatro profissionais portuguesas: a Cornucópia.
Esta companhia lisboeta, com sede na zona do Bairro Alto, nasce do sonho de dois jovens apaixonados da arte de Molière, Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra, que no final de 1973 decidem fundar uma companhia de teatro. No início nem sede própria tinham e mantiveram-se com a ajuda dum pequeno subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian.
As primeiras peças foram os clássicos de Molière e Marivaux, até porque a censura fascista não os deixava pôr o pé em ramo verde. No entanto, poucos meses após o seu nascimento dá-se o 25 de abril de 1974 e a Cornucópia pôde dedicar-se à dramaturgia contemporânea e à construção de um teatro de reflexão com uma função ativa na realidade cultural portuguesa.
A companhia criou desde o cedo o hábito de criar ciclos temáticos como propostas de reflexão. Um dos ciclos temáticos iniciais foi sobre o cómico e a comédia e incluiu um espectáculo Karl Valentin, um espectáculo Plauto e peças como O Labirinto de Creta de António José da Silva (o Judeu) e Não se Paga, Não se Paga de Dario Fo.
1980 marca a saída de Jorge Silva Melo da Cornucópia e a entrada da cenógrafa Cristina Reis que se mantém na companhia até hoje.
A partir de 1983 com o espectáculo “Oratória” (montagem de textos de Gil Vicente, Goethe e Brecht) a companhia centrou o seu reportório num tema a que chamou “O Mal Estar do Nosso Tempo”.
A reflexão sobre diferentes temas acabou por estender-se ao próprio teatro como representação da vida. Assim a companhia dedicou a esse tema um ciclo em que incluiu “O Público” de Garcia Lorca, “Céu de Papel” (montagem de textos de Pirandello e Beckett), "Salada" (uma colagem de números tradicionais de palhaços) e "Um Poeta Afinado" de Manoel de Figueiredo.
O Teatro da Cornucópia tem levado à cena alguns dos grandes clássicos de todos os tempos (Gil Vicente, Shakespeare, Wycherley, Tchekov, Strindberg, Beaumarchais, Lenz, Hölderlin, Kleist) e tem abordado textos de muitos géneros. Esta companhia pretende intervir culturalmente na sociedade portuguesa e não abdicar do teatro como terreno privilegiado da criação artística e grande instrumento de pensamento das sociedades.
A programação mais recente tem dado primazia a dramaturgos com uma escrita mais “radical”, como Beckett, Orton, Botho Strauss, P. Handke, Edward Bond, Genet, Gertrude Stein, Lars Nóren, Brecht, Pasolini, Fassbinder.
Ao mesmo tempo a Companhia procurou inovar, elaborando vários espectáculos a partir de textos não teatrais: de Raul Brandão, “Primavera Negra”; de Francisco de Holanda, “Diálogos sobre a Pintura na Cidade de Roma” e o poema “A Margem da Alegria” de Ruy Belo.
Além disso, procurou sempre atrair encenadores estrangeiros, convidando pessoas como Stephan Stroux, Christine Laurent, Brigitte Jaques, Carlos Aladro ou Ana Zamora, ao mesmo tempo que possibilitou a afirmação de jovens encenadores portugueses como Miguel Guilherme, José Meireles, António Pires, José Wallenstein, Ricardo Aibéo.
Se hoje a Cornucópia tem uma situação económica estável com apoios financeiros públicos e privados e dispõe duma “casa própria”, onde é permitida à companhia a permanente experimentação de espaços cénicos, isso deve-se ao profícuo labor e qualidade demonstrados durante quatro décadas em que muito do melhor teatro feito em Portugal foi produzido pela Cornucópia.
Gabriel Vilas Boas
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