“Por que é que, como parece insinuar Plínio, O Velho, a aprendizagem do desenho (e da
pintura em geral) começa com o traçado do rosto? Porque, como veremos, o rosto
tem em si todas as formas do mundo.” José Gil
Retrato de
Um Jovem e de Uma Jovem, Autor desconhecido,Flandres, c.1540, Óleo sobre
madeira,10 2x 15,3 cm
Coleção
Fundação Calouste Gulbenkian
Nada se sabe sobre a autoria
desta pintura que hoje vos trago. A identidade das personagens representadas é
igualmente desconhecida.
Mas que bem se identifica Cupido!
Retrato de
Um Jovem e de Uma Jovem, Autor desconhecido,Flandres, c.1540 (pormenor)
De olhos vendados, como convém ao
“amor cego” que tudo ignora e que nada pretende ou quer enxergar;
elegantemente, numa pose inocente e pura, desfere o derradeiro golpe do amor
sobre os belos jovens representados como tema central do conjunto.
A perspetiva atmosférica, tão
realista e tão ao gosto flamengo do Quattrocento envolve o casal, num hino
misterioso à natureza. Não há enquadramento arquitetónico, como soía ao tempo.
Esse, é feito pela própria natureza, em nevoeiro, em árvores frondosas de
sombras, caminhos esperançosos, riachos serpenteantes.
Retrato de
Um Jovem e de Uma Jovem, Autor desconhecido,Flandres, c. 1540 (pormenor)
Desde sempre, o retrato teve
função comemorativa. Aqui, não há exceção. Comemora-se o amor, um noivado,
talvez. O Jovem aperta com os seus dedos esguios um amor que se quer perfeito;
ela, de preto e branco vestida, oferece o seu coração, num gesto suave de
entrega e de alegria, num hino à própria vida.
Retrato de
Um Jovem e de Uma Jovem, Autor desconhecido,Flandres, c.1540 (pormenor)
A luminosidade e a cor que
envolvem este óleo sobre madeira abraçam estas figuras de rostos um tanto
arcaizantes, mas centrais. Que personalidades se adivinham a partir destes
rostos? Ela, de cabelos afagados pelo lenço ou coifa em transparência suave,
mostra-se calma e submissa, num gesto amoroso de entrega. Ele, de grandes olhos
negros, parece aguardar, calmo mas determinado, pelo Amor que tanto almeja. As
cores escolhidas para as vestes, o branco e o negro, combinam entre si na
perfeição e conferem elegância à cena, em sinal de comunhão de ideias, afetos e
pensamentos.
Aquele momento fixou-se para a
eternidade. A troca do amor-perfeito pelo coração, simbologia única evocativa
do sentimento mais nobre que sempre se quer para sempre.
Será que estes nossos jovens de
hoje e de sempre o conseguiram? Não cansou nunca o cego Amor de os guiar?
Não Canse o Cego Amor de me Guiar
Pois meus olhos não cansam de
chorar
Tristezas não cansadas de
cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que
abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude
abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
Donde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de
escutar-me
Enquanto a fraca voz me não
deixar.
E se em montes, se em prados, se
em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras,
águas;
Ouçam a longa história de meus
males,
E curem sua dor em minha dor;
Que grandes mágoas podem curar
mágoas.
Luís de Camões,
Sonetos
Rosa Maria Alves da Fonseca
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