Ontem regressei ao TNSJ para ver o final
da trilogia de tragédias gregas que o encenador Tiago Rodrigues preparou para o
público portuense acerca da maldição que se abateu sobre a família de Agamémnon, a
partir do momento em que os gregos decidiram resgatar Helena aos troianos.
"Ifigénia", "Agamémnon" e "Electra" são três
peças que têm de ser vistas em conjunto. Na semana passada escrevi sobre as
duas primeiras, hoje remato com a minha análise/comentário sobre Electra, de Eurípides.
Primeiro começo por destacar os dois
grandes protagonistas – Electra e Orestes – os dois irmãos (filhos de Agamémnon
e Clitemnestra), magnificamente interpretados por Flávia Gusmão e Miguel
Borges. Flávia domina a primeira parte da cena e tem o seu ponto alto no momento
em que despeja todo o ódio, raiva e vingança sobre a cabeça de Egisto, que
Orestes acabara de cortar; Miguel Borges faz um atuação em crescendo,
terminando a peça em grande nível, exibindo o estado de quase loucura a que
Orestes chega, depois de assassinar a mãe, fazendo a vontade de Electra e
vingando o pai, mas carregando uma culpa de que sabe que jamais se livrará tal
como a sua mão não se conseguia desprender do punhal que assassinou Egisto e
Clitemnestra.
O essencial do texto de Eurípides é
assegurado pela representação dirigida por Tiago Rodrigues:
Electra, tratada como uma escrava na terra onde devia ser princesa, por ordem
direta da sua mãe, espera a chegada do irmão Orestes para se vingar dos
assassinos de Agamémnon: Egisto e Clitemnestra, ou seja a sua mãe e o amante
desta.
Quando os dois irmãos se reencontram,
Electra impõe ao irmão a vingança sobre os cobardes que mataram o pai.
Matar Egisto foi relativamente pacífico para Orestes, mas o mesmo não se passou
com Clitemnestra. Qual é o filho que consegue matar a sua mãe?
Um dos pontos essenciais da tragédia
estava ali. O drama interior de Orestes cresce a cada minuto e a culpa nunca
mais o abandonou. A luta entre aquilo que tinha que ser feito e aquilo que ele
queria fazer é imensa dentro de Orestes. Ele faz a vontade à irmã (que mesmo
assim ainda teve pegar na mão de Orestes e empurrá-la contra o peito da mãe), mas
a loucura apossa-se dele para sempre.
A angústia da decisão que não queremos
tomar, mas que as circunstâncias e os outros nos empurram para a tomarmos é tão
evidente em Orestes como o fora em Agamémnon durante a peça “Ifigénia”.
Curiosamente (ou talvez não) é o ator Miguel Borges que interpretou as duas
personagens e esteve em grande nível em qualquer uma delas.
Se Orestes era dúvida, culpa (pela morte
da mãe), angústia, medo, Electra era certeza, decisão, prazer e felicidade em
consumar a vingança suprema sobre a mãe e o seu amante. A maneira como insulta,
enxovalha, agride a cabeça decapitada de Egisto mostra quanto ódio e loucura viveram
nela concentrados, durante sete anos. Sobre a morte da mãe, nenhum remorso,
nenhuma pena, nenhuma hesitação. Nem quando Clitemnestra invoca a irmã Ifigénia
para justificar os seus atos. Tal como para Clitemnestra o sacrifício de
Ifigénia por parte de Agamémnon não tinha perdão e o marido devia morrer,
também para Electra a morte do pai, o exílio de Orestes (que esteve para ser
morto) e a sua escravidão também não mereciam contemplações. Sentia-se feliz com
a morte da mãe.
Uma palavra final para o coro. Mais jovem,
mais interventivo, é através dele que o encenador “fala” e traz a peça para junto de
nós. Começa por perguntar “Porque se calam?” e desafia o público a tomar partido, a
ter posição sobre o tema, a refletir sobre os grandes dramas individuais e
coletivos.
Mas no final, o velho propõe “e se
ficássemos em silêncio?”. É uma expressão de derrota, porque nesta tragédia
todos perderam, mas é também uma provocação: não seria bom questionarmos o mundo em que vivemos quotidianamente?
Talvez não mudemos o mundo, talvez nem mudemos grande coisa, mas de certeza que
nos mudaríamos de alguma maneira.
Gabriel Vilas Boas
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