“Como é se pode estar em cima de um palco,
sabendo que lá fora, no mundo, há pessoas a morrer?” – diz Masha, uma das
personagens de NEVA, peça de teatro que está, até amanhã, em cena no Teatro
Carlos Alberto, no Porto, encenada pelo conhecido ator/encenador João Reis, a
partir do texto homónimo do chileno Guillermo Calderón.
Neva tem apenas três personagens, três
atores (Olga,Masha, Aleko), um trio fechado no teatro de São Petersburgo a
ensaiar “O Cerejal” de Tchekhov, enquanto na rua os oficiais do Czar disparam
contra o povo. Estávamos no dia 5 de janeiro de 1905 e aquele viria a ser
conhecido como o "domingo sangrento" que esteve na génese da revolução de 1917.
NEVA questiona a utilidade do teatro e a
sua capacidade de agregar pessoas e fazer pensar. Uma personagem chega mesmo a
ser drástica: “Estamos em 1905 e eu acho que o teatro acabou!” Não acabou, mas tem de reconhecer os seus
limites (ainda que se esforce por superá-los) em contraponto com a realidade da
violência política.
Nesse domingo sangrento, perto do rio
Neva, em São Petersburgo, as tropas do Czar abriram fogo sobre um multidão de
operários que marchavam em direção ao palácio imperial enquanto um ator e duas
atrizes se fecham num teatro para ensaiar uma peça. Uma
delas é Olga Knipper, atriz do Teatro de Arte Dramática de Moscovo e viúva do
dramaturgo russo Tchékhov (recentemente falecido). As duas restantes
personagens ajudam-na a recuperar o talento que ela julga ter perdido,
recriando absurdamente a morte de Tchékhov ou discutindo técnicas de
representação ao mesmo tempo que se esforçam por dissimular o facto dos
restantes atores ainda não terem chegado… nem chegariam!
Além de discutirem a utilidade/limitação
do teatro perante uma realidade política e social de violência absoluta, o
heterogéneo trio de personagens (Masha é uma anarquista assumida, Aleko
revela-se um contemplativo e Olga, uma atriz obsessiva), a peça do
multipremiado dramaturgo chileno foca outros subtemas interessantes como os
ideais revolucionários e a política (onde se nota a deceção do dramaturgo com o
seu Chile pós-Allende), as aspirações humanas, a própria metodologia do teatro,
cujo paradigma mudou na época em que a ação se passa (1905), passando de puro
entretenimento burguês para interveniente na realidade social em que se insere.
João Reis pôs em cena uma peça longa (duas horas e dez
minutos), onde três atores brilham com grande intensidade. Se logo à partido
tinha escolhido Lígia Roque e Cristóvão Campos para os papeis de Olga Knipper e
Aleko, a seleção de Sara Barros Leitão para o papel de Masha, através de uma
audição, foi das mais acertadas e felizes da sua curta carreira de encenador. A portuense Sara Leitão, apesar dos seus jovens
vinte e cinco anos, é um valor seguro da representação nacional, tendo sido
nomeado para vários prémios de representação em teatro, cinema e televisão, nos
últimos três anos. Nesta peça, Sara esteve absolutamente fabulosa, conseguindo
uma atuação de excelência, que prendeu a minha atenção durante mais de
duas horas. Está na forja uma grande atriz, assim lhe confiem peças de gabarito
para que possa confirmar o seu valor.
P.S. Ontem, em Paris, o terror voltou a
ganhar à civilização. Num teatro da capital francesa, foram mortos cerca de uma
centena de pessoas. Perante a perplexidade, a consternação, a dor que invadem os
franceses, em particular, e o mundo em geral, apetece devolver a pergunta a
Masha, com 110 anos de atraso: "Como se pode matar quem quer estar apenas a ver
o que se passa em cima de um palco?"
Neva imenso nos corações humanos há imensos anos!
Gabriel Vilas Boas
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