Nos últimos meses voar
para os Açores tornou-se ainda mais barato e cada vez mais portugueses
procuram conhecer as magníficas ilhas atlânticas que têm um encanto e beleza
natural fora do comum. São Miguel atrai mais do que qualquer outra e já pude
comprová-lo numa curta estadia há quatro anos. No entanto, todas as outras
ilhas têm também o seu fascínio. Hoje proponho-vos um olhar atento sobre a
capital da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo cujo centro foi classificado, em
1983, como Património da Humanidade pela Unesco.
A vida de Angra do
Heroísmo sempre foi abalada por fortes emoções e convulsões. Quem não recorda o
dia de Ano Novo do longínquo ano de
1980. A terra tremeu, em consequência dum sismo de grau oito na escala de Mercalli,
e em poucos minutos a cidade ficava em destroços.
Todavia, o enorme amor
dos angrenses à sua terra fez com que rapidamente a cidade fosse reconstruída
segundo o modelo original – uma façanha digna dos maiores encómios.
Angra é uma pequena cidade
da Ilha Terceira e ganha relevância geoestratégica no meio do Atlântico, qual
porto de abrigo natural que ampara as embarcações. Até à era dos navios a
vapor, todas os galeões provenientes da América com destino à Europa,
carregados das preciosidades dos impérios Maia e Inca, aproavam à baía de Angra do Heroísmo. Os navegantes reabasteciam-se de provisões, mudavam de velas,
reparavam os rombos dos navios e curavam as maleitas no hospital. O porto
oferecia ainda um ótimo abrigo natural para os ataques dos piratas.
Quando nos encontramos
nas ruas de Angra e temos presente o plano arquitetónico da cidade,
reconhecemos rapidamente a nitidez da sua estrutura.
Ainda fiéis à tradição
camponesa medieval, os primeiros colonizadores construíram os arruamentos e as
casas com a forma de um ípsilon. Em torno da Praça do Mercado, no centro da
cidade, desenvolve-se uma rede viária de estrutura radial.
Sete décadas após as
primeiras construções, os angrenses mudaram de paradigma arquitetónico. Passaram
a seguir o modelo florentino. Tomando por base do traçado urbano, a planta é em
forma de tabuleiro de xadrez. Isto constituiu uma opção muito moderna para a
época.
Nas imediações do porto
surgiram bairros de recorte nítido, com depósitos para cereais, água potável e
bacalhau, grandes padarias e oficinas de carpinteiros, adegueiros e fabricantes
de caixotes. Desenvolveram-se indústrias de reparações de navios e empresas
para a produção de géneros alimentícios. Angra tornou-se percursora do moderno catering.
A importância de Angra
foi bem demonstrada pelos espanhóis que, nos séculos XVI e XVII, durante a sua
dominação em Portugal, edificaram a gigantesca fortaleza que dá pelo nome de
Castelo de São João, a fim de proteger todos os lados da enseada. Tal muralha da China, os caminhos de ronda prolongam-se, até aos dias de hoje, por
mais três quilómetros em torno do Monte do Brasil. No bastião, chegaram a
estar, temporariamente, mil soldados. Centenas de canhões faziam a receção ao
inimigo vindo do oceano.
O Castelo de São
Sebastião ocupava o monte fronteiro, de modo que Angra podia atacar uma armada
inimiga de ambos os lados, colocando-a sobre fogo cruzado.
No espaço protegido
entre as duas fortalezas espraia-se um homogéneo conjunto renascentista. Nas
fachadas das igrejas e nas imponentes casas burguesas pode ler-se o apogeu de
Angra. Galerias de janelas gradeadas alinham-se umas ao lado das outras, decoradas
com ferro forjado ou madeira trabalhada num padrão de silhuetas. Tiras de
escura pedra vulcânica cingem as janelas e as portas, as esquinas e os lambris.
Telhas tubulares cor de terra, dispostas em forma de favo, servem de cobertura
às casas – uma cidade de imagem despojada mas expressiva.
O ex-libris de Angra do
Heroísmo é a Sé Catedral, com o característico padrão quadriculado em
azul-e-branco nas duas torres que o terramoto e um incêndio danificaram gravemente.
O majestoso convento
dos jesuítas não deixa subsistir qualquer dúvida quanto à influência política
da ordem. Após a expulsão de Portugal dos seus poderosos membros, o sumptuoso edifício
amarelo e branco foi ocupado pelo poder temporal: nele passaram a residir os
capitães-generais.
Na igreja do antigo
convento de São Gonçalo, da ordem das Clarissas, a decoração em azulejo azul e branco
e a talha dourada aludem ao antigo apogeu da cidade. Só as partes “remendadas”
em gesso que se deixou ficar a branco, no meio do ouro, recordam os “tempos
inquietos”.