“Nós demos aos brasileiros a terra, o povo e a língua, e nós é que temos sotaque!”
Raul Solnado
Raul Solnado é uma das figuras maiores do teatro português do século XX. Comediante de eleição, ele teve o condão de pôr um Portugal tristonho, sem horizontes nem cultura, a rir durante os últimos anos da ditadura fascista.
Nasceu num bairro de Lisboa, onde passou uma infância modesta, mas feliz. "Empurrado" para o teatro pela mão de José Viana (falecido em 2003), Solnado estreou-se nos palcos em 1952. Raul Solnado é eterno. Homem dos sete ofícios, fez teatro, cinema e televisão. Ele próprio foi um mundo e um enorme palco. Sempre quis ser actor, sempre gostou das pessoas.
Raul Solnado pegou no testemunho de Vasco Santana, António e Ribeirinho (os reis da comédia lusitana nos anos 30 e 40) e entregou o trono a Herman José nas últimas décadas do século XX.
Aproveitando o advento da televisão em Portugal, criou uma maneira muito peculiar de fazer rir o seu povo. Ainda que nos primeiros aos da sua carreira, na década de 50, tenha continuado a tradição do teatro de revista (“Canta Lisboa”; “Viva o Luxo”, “Ela não gostava do Patrão”), Solnado afirma-se como o criador ou recriador de pequenas rábulas: A Guerra de 1908, O Cabeleireiro de Senhoras, Chamada para Washington, A Bombeira da Moda ou Ida ao Médico.
Raul Solnado mostrava um humor inteligente, onde a crítica existia mas não mordia e o riso estava assegurado, pois vinha do ridículo de pequenas situações do quotidiano. Dos vários trabalhos que vi de Raul Solnado, sempre me chamou atenção a maneira magistral como sabia gerir o tempo da comédia. O público desmanchava-se a rir, perdia o controlo, rendia-se por completo ao estilo do comediante enquanto ele mantinha aquele registo sereno e provocatório, como se nada fosse com ele.
Raul Solnado soube viver dentro do regime do lápis azul porque o seu humor não era político, mas social. Durante a década de sessenta distraiu uma nação inteira que se afundava numa depressão coletiva e cada vez se afastava mais da evolução cultural em curso na Europa.
Solnado afirmava-se na televisão e era chamado a co-produzir programas que viriam a fazer parte da História da RTP, como o mítico ZIP-ZIP, com Carlos Cruz e Fialho Gouveia.
Paralelamente, dava uma passo em frente no mundo do teatro, ao tornar-se empresário, fundando o Teatro Villaret, em 1964, do qual será diretor até 1970.
O período após o 25 de abril será de pouca atividade, mas de grande qualidade: apresenta o concurso televisivo “A visita da Cornélia” e entra no filme “A Balada da Praia dos Cães”.
O tempo do grande comediante de televisão tinha passado. O rei era agora outro, mas Solnado não tinha ciúmes nem estava triste. Com sessenta anos regressa ao teatro para dar brilho a algumas peças: O Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo, numa encenação de Varela Silva, a opereta O Morcego, de Johann Strauss e As Fúrias, de Agustina Bessa-Luís.
A vida caminhava para o fim, mas Solnado tinha ainda alguns projetos por concretizar: escrever a sua autobiografia – A vida não se perdeu – e fundar a CASA DO ARTISTA, juntamente com Armando Cortês e Octávio Clérigo. Uma das suas últimas aparições em público ocorreu precisamente na Casa do Artista, onde Herman José apresentava um programa televisivo. Solnado desceu do seu quarto, em chinelos e roupão, e em direto, perante as câmaras, disse com uma ternura que comoveu o país inteiro: “vim aqui para me despedir, da vida e de todos vocês que foram a minha família!”.
Felizmente, o mundo da cultura portuguesa soube em tempo prestar-lhe a melhor homenagem que os títulos e as condecorações podem oferecer, com o Prémio Carreira Luíz Vaz de Camões.
A 7 de agosto de 2009, “A fábrica de rir” parou de laborar. A morte não o assustava, porque ele amava viver. Talvez por isso tenha deixado aquele pedido que só gente de alma grande faz: “Façam o favor de ser felizes”.
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