No belo poema, que é a letra de “Construção”, a certo momento Chico Buarque canta
“E se acabou no chão feito pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu em contramão, atrapalhando o tráfego”
Acabo de ler que, no México, um homem teve um ataque cardíaco, em pleno metro, e morreu sem que ninguém tivesse dado por isso.
Não, não morreu em contramão nem tão pouco atrapalhou o trânsito, mas acabou como um pacote flácido, deixado ao abandono num banco de metro, em cuja essência humana só repararam quando já tinha deixado de ser.
Andamos a ficar tão lamentáveis que já nem uma lamentação valemos.
O mexicano viajou cadáver algumas horas até alguém ter desconfiado de tão profundo sono. Vieram então os paramédicos decretar a morte legal tal como agora nós manifestamos a nossa perplexidade e indignação.
O velho mexicano que morreu no metro de ataque cardíaco sem incomodar a pressa e a indiferença de ninguém é um signo e um sinal daquilo em que nos tornamos.
A irrelevância em que transformamos o outro é a medida da nossa insignificância.
A irrelevância em que transformamos o outro é a medida da nossa insignificância.
Os direitos humanos, nos países ditatoriais e nos regimes brutais, fazem-nos percorrer quilómetros de luta, indignação e manifestações, mas a desumanização diária com que tratamos a senhora do terceiro direito, a avó com quem não falamos há meses ou o velho que dá de comer às pombas, no jardim público, em que passamos todos os dias não nos preocupa dez segundos.
Com o tempo o mexicano deixará de ser uma metáfora para ser uma estatística, tal como nós deixaremos de ser um ser humano para nos transformamos num número.
GAVB
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