Galleria degli Uffizi,
Firenze, fotografia de António Bessa
“Caravaggio
despoja as suas personagens de toda a nobreza exterior, pelo seu sentido
rigoroso da realidade, não recuando perante qualquer fealdade, libertando-as de
todo o convencionalismo, para que o espectador as veja tal como realmente são.”
História da Arte Universal
A tarde já ia longa,
quando a passos largos segui em direção à Sala Caravaggio, nos Uffizi, ao
encontro de três grandes obras-primas de Michelangelo Merisi(1571-1610), pintor
sempre desconcertante pela obra e pela vida inquieta, a raiar a violência e a
marginalidade. Era muita a ansiedade do encontro, que foi vibrante e apenas a
dois, pois, por esta altura, já havia perdido Daniela, a guia, e quase todo o
grupo.
A sala debruça-se
perante mim e as obras não me desapontam; era este o ambiente que esperava; enquanto
as olhava, imaginei lutas e conflitos interiores com que Caravaggio se debateu
no momento da produção e criação daquelas obras.
O escudo com Medusa é impressionante e avassalador.
Pensa-se que aquele rosto é o seu, o rosto de um Caravaggio ainda jovem mas já
assombrado pelas agruras da vida. Não demorei muito ali o meu olhar, o mito
bailava no meu pensamento, não me queria petrificada por aqueles olhos tão
duros e tão reais.
Caravaggio, A
Cabeça de Medusa,c. de 1597,óleo sobre tela,Galleria degli
Uffizi,Florença
Baco,
irónico, quase anedótico, convidativo, quem sabe, para uma taça de Chianti,
figura também como personagem principal daquela sala apetecida. Reclinado à boa
maneira romana, delicia-se entre frutas e parras, entregue aos prazeres do
mundo e à boémia, tanto ao gosto do próprio pintor.
Caravaggio, Baco, c. 1595, óleo sobre
tela,Galleria degli Uffizi,Florença
E, por fim, O Sacrifício de Isaac. Mais uma vez, a preferência pelos temas
violentos, como violenta foi a sua própria vida. Esta obra, pintada a pedido do
Cardeal Barberini, futuro papa Urbano VIII, exibe as grandes linhas
orientadoras do trabalho de Caravaggio, a luz, a sombra, o jogo de
claro-escuro, sempre em dualidade, luz e trevas, vida e morte, bem e mal…
As suas vivências, a sua personalidade, as
suas pequenas e grandes tragédias pessoais deixaram marcas profundas e eternas
na sua obra admiravelmente inovadora. Criador do tenebrismo, que ele consegue
nas telas imensas com uma forte projeção de luz dirigida intencionalmente de
modo a destacar cenas e figuras da obscuridade tenebrosa que as rodeia, ele é
um realista apenas na aparência. Como ninguém até aí, ele acentua e dramatiza
as expressões, conferindo-lhe qualidade plástica e um pathos que impregna todo o espaço pictórico de sentimento e emoção.
Ironicamente, os seus
contemporâneos apelidavam esta técnica de “iluminação de clarabóia”. Esta luz
artificial faz adivinhar também a tendência naturalista da qual Caravaggio foi
igualmente impulsionador. Tão ao gosto barroco, as cores utilizadas por ele,
terrosas e mergulhadas em semipenumbra, são intencionalmente persuasivas,
plenas de mensagens subtis…a luz caravaggiana poderá chamar-se de “conceptual”,
porque está ali para potenciar uma mensagem , para alertar para a ação, para
exponenciar sentimentos e realçar personagens, uma vez que os raios de luz iluminam apenas a parte da
composição essencial para o seu autor.
A arte e a personalidade rebelde de
Caravaggio opuseram-no constantemente à sua época, ao tempo convencional em que
viveu e onde não se conseguia encaixar. A sua vida de errância e de
movimentações conflituosas constantes, não permitiram sequer a existência de
discípulos seus. Em 1607,radica-se em Nápoles e convive com outros pintores,
influenciando-os e dando origem à chamada Escola de Caravaggio. Esta cidade foi
ponto de confluência de diversos artistas com as mais variadas origens e a grandiosidade
da sua obra fez eco… os seus violentíssimos contrastes de luz e sombra, os seus
jogos tenebrosos de claro-escuro foram assimilados e difundidos sobretudo em
França, na Holanda e em Espanha. De uma nova maneira, sim. Mas à sua maneira
também.
Georges La Tour soube ler a obra de
Caravaggio e escolhe as suas personagens entre os camponeses, os artesãos e os
pastores. No entanto, em La Tour não podemos falar de profanação, pois o pintor
confere-lhes tranquilidade e dignidade, numa pureza muito franciscana.
Eustache La Sueur, utiliza a luz caravaggiana
nos seus noturnos, dotando-os de uma expressividade inigualável.
Gerard von Honthorst modifica a projeção
de luz abstrata e substitui-a por uma iluminação real, proveniente de uma
candeia que dá ênfase à cena a destacar. Durante os anos em que estudou em
Itália, era gentilmente apelidado de Gherardo della Notte, devido à presença
constante de uma vela na maioria dos seus quadros.
Sem discípulos, portanto. Mas com ilustres
seguidores. Esta é a melhor homenagem que se pode fazer a um grande mestre. Eu
também , com a minha visita e com o meu olhar o homenageei. Todos os dias,
alguém se maravilha com a sua pintura e volta da sua sala dono de um outro
Olhar. Po rque não ser o seu próximo espectador?
Rosa Maria Alves da Fonseca
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