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quinta-feira, 14 de abril de 2016

DA ARTE, DA PINTURA, DE CARAVAGGIO



Galleria degli Uffizi, Firenze, fotografia de António Bessa

“Caravaggio despoja as suas personagens de toda a nobreza exterior, pelo seu sentido rigoroso da realidade, não recuando perante qualquer fealdade, libertando-as de todo o convencionalismo, para que o espectador as veja tal como realmente são.”
História da Arte Universal

A tarde já ia longa, quando a passos largos segui em direção à Sala Caravaggio, nos Uffizi, ao encontro de três grandes obras-primas de Michelangelo Merisi(1571-1610), pintor sempre desconcertante pela obra e pela vida inquieta, a raiar a violência e a marginalidade. Era muita a ansiedade do encontro, que foi vibrante e apenas a dois, pois, por esta altura, já havia perdido Daniela, a guia, e quase todo o grupo.
A sala debruça-se perante mim e  as obras não me  desapontam; era este o ambiente que esperava; enquanto as olhava, imaginei lutas e conflitos interiores com que Caravaggio se debateu no momento da produção e criação daquelas obras.
O escudo com Medusa é impressionante e avassalador. Pensa-se que aquele rosto é o seu, o rosto de um Caravaggio ainda jovem mas já assombrado pelas agruras da vida. Não demorei muito ali o meu olhar, o mito bailava no meu pensamento, não me queria petrificada por aqueles olhos tão duros e tão reais.



Caravaggio, A Cabeça de Medusa,c. de 1597,óleo sobre tela,Galleria degli Uffizi,Florença


Baco, irónico, quase anedótico, convidativo, quem sabe, para uma taça de Chianti, figura também como personagem principal daquela sala apetecida. Reclinado à boa maneira romana, delicia-se entre frutas e parras, entregue aos prazeres do mundo e à boémia, tanto ao gosto do próprio pintor.

   
Caravaggio, Baco, c. 1595, óleo sobre tela,Galleria degli Uffizi,Florença

E, por fim, O Sacrifício de Isaac. Mais uma vez, a preferência pelos temas violentos, como violenta foi a sua própria vida. Esta obra, pintada a pedido do Cardeal Barberini, futuro papa Urbano VIII, exibe as grandes linhas orientadoras do trabalho de Caravaggio, a luz, a sombra, o jogo de claro-escuro, sempre em dualidade, luz e trevas, vida e morte, bem e mal…


 As suas vivências, a sua personalidade, as suas pequenas e grandes tragédias pessoais deixaram marcas profundas e eternas na sua obra admiravelmente inovadora. Criador do tenebrismo, que ele consegue nas telas imensas com uma forte projeção de luz dirigida intencionalmente de modo a destacar cenas e figuras da obscuridade tenebrosa que as rodeia, ele é um realista apenas na aparência. Como ninguém até aí, ele acentua e dramatiza as expressões, conferindo-lhe qualidade plástica e um pathos que impregna todo o espaço pictórico de sentimento e emoção.
Ironicamente, os seus contemporâneos apelidavam esta técnica de “iluminação de clarabóia”. Esta luz artificial faz adivinhar também a tendência naturalista da qual Caravaggio foi igualmente impulsionador. Tão ao gosto barroco, as cores utilizadas por ele, terrosas e mergulhadas em semipenumbra, são intencionalmente persuasivas, plenas de mensagens subtis…a luz caravaggiana poderá chamar-se de “conceptual”, porque está ali para potenciar uma mensagem , para alertar para a ação, para exponenciar sentimentos e realçar personagens, uma vez que os  raios de luz iluminam apenas a parte da composição essencial para o seu autor.
A arte e a personalidade rebelde de Caravaggio opuseram-no constantemente à sua época, ao tempo convencional em que viveu e onde não se conseguia encaixar. A sua vida de errância e de movimentações conflituosas constantes, não permitiram sequer a existência de discípulos seus. Em 1607,radica-se em Nápoles e convive com outros pintores, influenciando-os e dando origem à chamada Escola de Caravaggio. Esta cidade foi ponto de confluência de diversos artistas com as mais variadas origens e a grandiosidade da sua obra fez eco… os seus violentíssimos contrastes de luz e sombra, os seus jogos tenebrosos de claro-escuro foram assimilados e difundidos sobretudo em França, na Holanda e em Espanha. De uma nova maneira, sim. Mas à sua maneira também.
Georges La Tour soube ler a obra de Caravaggio e escolhe as suas personagens entre os camponeses, os artesãos e os pastores. No entanto, em La Tour não podemos falar de profanação, pois o pintor confere-lhes tranquilidade e dignidade, numa pureza muito franciscana.
Eustache La Sueur, utiliza a luz caravaggiana nos seus noturnos, dotando-os de uma expressividade inigualável.
Gerard von Honthorst modifica a projeção de luz abstrata e substitui-a por uma iluminação real, proveniente de uma candeia que dá ênfase à cena a destacar. Durante os anos em que estudou em Itália, era gentilmente apelidado de Gherardo della Notte, devido à presença constante de uma vela na maioria dos seus quadros.
Sem discípulos, portanto. Mas com ilustres seguidores. Esta é a melhor homenagem que se pode fazer a um grande mestre. Eu também , com a minha visita e com o meu olhar o homenageei. Todos os dias, alguém se maravilha com a sua pintura e volta da sua sala dono de um outro Olhar. Po rque não ser o seu próximo espectador?

Rosa Maria Alves da Fonseca

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