Lisboa, 4 de Setembro de 1916
“Meu querido Côrtes-Rodrigues
(…) Vai sair Orpheu 3.É aí que, no fim do
número, publico dois poemas ingleses meus, muito indecentes, e, portanto,
impublicáveis em Inglaterra. (…)
Orpheu 3 trará, também, quatro hors-textes do mais célebre pintor
avançado português-Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês
presente. Para a mala que vem já lhe poderei dar notícias mais detalhadas.”
Fernando Pessoa
Carta de Fernando Pessoa para Armando
Côrtes-Rodrigues (excerto)
Foram tempos de abertura e liberdade que
permitiram dois grandes acontecimentos artísticos, de qualidade muito distinta,
bem como uma grande aproximação a Paris, onde tudo mexe.
Esses acontecimentos de que falo, A Exposição
Livre (1911) e a I.ª Exposição dos Humoristas (1912) fazem adivinhar uma rutura
emergente com o passado tradicional e burguês de um país que, em 1910,corta as
amarras a um liberalismo monárquico e traz para a ribalta uma república quase
jacobina, goste-se ou não.
Os pintores da Exposição Livre anunciavam,
quase em Manifesto: ”Queremos ser livres! Fugimos aos dogmas do ensino, às
imposições dos mestres e, quanto possível, às influências das escolas…”.No
entanto, esta exposição mais não foi do que uma nova afirmação do Naturalismo,
onde Amadeo recusou estar presente, como se comprova neste excerto de uma carta
enviada a seu tio: ”Estou em absoluto desacordo com os meus amigos compatriotas
que marcham numa rotina atrasada.” .
A I.ª Exposição dos Humoristas foi um grande
sucesso. Dela também Amadeo se distanciou e não se fez representar com nenhuma
obra. Mas Almada Negreiros, Cristiano Cruz e Jorge Barradas marcaram a
diferença, com laivos claros de modernidade presentes nas cores contrastantes e
na suavidade da perspetiva, quase esfumada.
Era este o panorama nacional, onde apenas
um pintor se destacava, Amadeo, e uma revista, Orpheu, anunciava a
modernidade.
Por
estes anos, os seus trabalhos eram visíveis noutras paragens, como verdadeiro
“estrangeirado” que era. As ilustrações para La Légende de Saint-Julien l’Hospitalier (1912),o seu álbum XX Déssins,
obras notáveis que qualquer amarantino que se preze conserva com amor na sua
biblioteca particular, por mais simples que seja…como a minha, que se agiganta
aos olhos de quem a vê, apenas por Amadeo ali ter lugar cativo. De Saint-
Julien, diz Amadeo “Meu Pai está satisfeitíssimo comigo, o livro de Saint
Julien tem-no maravilhado.” Começa bem decerto aqui uma admiração incondicional
do Pai de Amadeo pela talento do seu filho.
Em 1912 ainda, a Galeria Der Sturm, em
Berlim, seleciona os seus trabalhos, que expõe, e o Armory Show de Nova Iorque,
Boston e Chicago recebe as suas obras impactantes o suficiente para o público
americano, de tal ordem que a maioria dos seus quadros é adquirida ali, chegando
a Amadeo novas encomendas.
Amadeo de Souza-Cardoso, Galgos, óleo sobre tela, c.1911
Considero Amadeo um revolucionário que
caminhou sempre em busca da perfeição, caminhadas perfeitas entre o traço
elegante, o grafismo expressivo da sua linha coerente, até chegar à explosão
das perspectivas e dos planos pluri e multifacetados, em reflexão geométrica
pura, numa lógica cubista que ele tão bem abraçou, assim como abraçou certas liberdades
dadaístas. Almada Negreiros, entusiasmado com esta revelação na arte
portuguesa, promove a única exposição que Amadeo realizou em Portugal, Abstraccionismo. Primeiro no Porto,
depois em Lisboa,na Liga Naval,1916.
Em 1969, Almada Negreiros, numa entrevista
à Capital, lembrava:
“Em 1915,em Lisboa, o correio trouxe-me um
postal. O postal dizia assim:
Almada: Viva. Substantivo. Ímpar. Um.
Assinado: Amadeo de Souza-Cardoso.
Eu não sabia ainda que no mundo havia uma
pessoa chamada Amadeo de Souza-Cardoso! (…). Aquando da preparação da Exposição
de 1916 (quando o conheci) eu perguntei-lhe: o seu postal foi por causa do Manifesto anti-Dantas?... Ele
respondeu-me: claro. O grito estava dado….”
Amadeo de Souza-Cardoso, A
Menina dos Cravos, óleo sobre madeira, coleção particular
Hoje, mais um grito está a ser dado em
Paris, no Grand Palais. Por isso, sobre ele escrevo, mais uma vez. Ali se
desvendam segredos, guardados por Lucie, na sua casa de Paris, num ato de amor
puro e compreensível. Lucie não conseguiu separar-se das obras de Amadeo, que
lhe eram tão caras e que lhe recordavam momentos ímpares da sua execução,
trabalho que ela sempre acompanhou com desvelos de enamorada. Visitar o Grand
Palais é urgente. Mesmo para um amarantino, que sabe de cor quase todas as suas
obras, mas sobretudo para um amarantino.
Se por lá andarem este fim-de-semana de
abril, sugiro uma observação mais detalhada da obra A menina dos Cravos. É
tempo de lembrar ventos de liberdade e de mudança. Goste-se ou não. Amadeo
também viveu esses ventos, numa outra época, com outros protagonistas.
Rosa
Maria Alves da Fonseca
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