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domingo, 24 de abril de 2016

DA ARTE, DA PINTURA, DE AMADEO DE SOUZA-CARDOSO


Lisboa, 4 de Setembro de 1916

“Meu querido Côrtes-Rodrigues
(…) Vai sair Orpheu 3.É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. (…)
Orpheu 3 trará, também, quatro hors-textes do mais célebre pintor avançado português-Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei dar notícias mais detalhadas.”
Fernando Pessoa
Carta de Fernando Pessoa para Armando Côrtes-Rodrigues (excerto)





Foram tempos de abertura e liberdade que permitiram dois grandes acontecimentos artísticos, de qualidade muito distinta, bem como uma grande aproximação a Paris, onde tudo mexe.
Esses acontecimentos de que falo, A Exposição Livre (1911) e a I.ª Exposição dos Humoristas (1912) fazem adivinhar uma rutura emergente com o passado tradicional e burguês de um país que, em 1910,corta as amarras a um liberalismo monárquico e traz para a ribalta uma república quase jacobina, goste-se ou não.

Os pintores da Exposição Livre anunciavam, quase em Manifesto: ”Queremos ser livres! Fugimos aos dogmas do ensino, às imposições dos mestres e, quanto possível, às influências das escolas…”.No entanto, esta exposição mais não foi do que uma nova afirmação do Naturalismo, onde Amadeo recusou estar presente, como se comprova neste excerto de uma carta enviada a seu tio: ”Estou em absoluto desacordo com os meus amigos compatriotas que marcham numa rotina atrasada.” .

A I.ª Exposição dos Humoristas foi um grande sucesso. Dela também Amadeo se distanciou e não se fez representar com nenhuma obra. Mas Almada Negreiros, Cristiano Cruz e Jorge Barradas marcaram a diferença, com laivos claros de modernidade presentes nas cores contrastantes e na suavidade da perspetiva, quase esfumada.
Era este o panorama nacional, onde apenas um pintor se destacava, Amadeo, e uma revista, Orpheu, anunciava a modernidade.
 Por estes anos, os seus trabalhos eram visíveis noutras paragens, como verdadeiro “estrangeirado” que era. As ilustrações para La Légende de Saint-Julien l’Hospitalier (1912),o seu álbum  XX Déssins, obras notáveis que qualquer amarantino que se preze conserva com amor na sua biblioteca particular, por mais simples que seja…como a minha, que se agiganta aos olhos de quem a vê, apenas por Amadeo ali ter lugar cativo. De Saint- Julien, diz Amadeo “Meu Pai está satisfeitíssimo comigo, o livro de Saint Julien tem-no maravilhado.” Começa bem decerto aqui uma admiração incondicional do Pai de Amadeo pela talento do seu filho.
Em 1912 ainda, a Galeria Der Sturm, em Berlim, seleciona os seus trabalhos, que expõe, e o Armory Show de Nova Iorque, Boston e Chicago recebe as suas obras impactantes o suficiente para o público americano, de tal ordem que a maioria dos seus quadros é adquirida ali, chegando a Amadeo novas encomendas.

Amadeo de Souza-Cardoso,  Galgos, óleo sobre tela, c.1911

Considero Amadeo um revolucionário que caminhou sempre em busca da perfeição, caminhadas perfeitas entre o traço elegante, o grafismo expressivo da sua linha coerente, até chegar à explosão das perspectivas e dos planos pluri e multifacetados, em reflexão geométrica pura, numa lógica cubista que ele tão bem abraçou, assim como abraçou certas liberdades dadaístas. Almada Negreiros, entusiasmado com esta revelação na arte portuguesa, promove a única exposição que Amadeo realizou em Portugal, Abstraccionismo. Primeiro no Porto, depois em Lisboa,na Liga Naval,1916.

Em 1969, Almada Negreiros, numa entrevista à Capital, lembrava:
“Em 1915,em Lisboa, o correio trouxe-me um postal. O postal dizia assim:
Almada: Viva. Substantivo. Ímpar. Um. Assinado: Amadeo de Souza-Cardoso.
Eu não sabia ainda que no mundo havia uma pessoa chamada Amadeo de Souza-Cardoso! (…). Aquando da preparação da Exposição de 1916 (quando o conheci) eu perguntei-lhe: o seu postal foi por causa do Manifesto anti-Dantas?... Ele respondeu-me: claro. O grito estava dado….”
 
Amadeo de Souza-Cardoso, A Menina dos Cravos, óleo sobre madeira, coleção particular


Hoje, mais um grito está a ser dado em Paris, no Grand Palais. Por isso, sobre ele escrevo, mais uma vez. Ali se desvendam segredos, guardados por Lucie, na sua casa de Paris, num ato de amor puro e compreensível. Lucie não conseguiu separar-se das obras de Amadeo, que lhe eram tão caras e que lhe recordavam momentos ímpares da sua execução, trabalho que ela sempre acompanhou com desvelos de enamorada. Visitar o Grand Palais é urgente. Mesmo para um amarantino, que sabe de cor quase todas as suas obras, mas sobretudo para um amarantino.

Se por lá andarem este fim-de-semana de abril, sugiro uma observação mais detalhada da obra A menina dos Cravos. É tempo de lembrar ventos de liberdade e de mudança. Goste-se ou não. Amadeo também viveu esses ventos, numa outra época, com outros protagonistas.
Rosa Maria Alves da Fonseca

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