«Não vos peço piedade, só peço compreensão
– nem sequer isso. Apenas reconhecimento de mim em ti, e do inimigo, o Tempo,
em todos nós.»
O Doce Pássaro da Juventude é uma peça de
teatro de Tennessee Williams que a companhia de Jorge Silva Melo, Artistas
Unidos, leva novamente à cena, em Lisboa, a partir de hoje até ao próximo dia
14. Via-a no passado domingo num Teatro Nacional de São João quase repleto.
À frente de um extenso elenco, brilham os
atores Maria João Luís e Ruben Gomes. A peça do dramaturgo norte-americano aborda
a questão do tempo e da sexualidade que vão destruindo as relações e a pureza
da juventude. Como noutras peças de Tennessee Williams, também em O
Doce Pássaro da Juventude está patente aquela que é uma das grandes
preocupações do dramaturgo: o tempo inexorável que passa por cima de todos nós.
“O Doce
Pássaro da Juventude” envolve triângulos que se intersetam: Chance/Heavenly/Boss
Finley (pai de Heavenly) e Chance/Heavenly/Alexandra del Lago (o trio mais relevante).
As duas mulheres (Heavenly e Alexandra) nunca se cruzam mas oferecem a Chance
as duas possibilidades emocionais e sexuais que ele conhece na peça.
Heavenly é uma miragem, a concha da
rapariga que amou, mas Chance acredita que irá recuperá-la e através dela
recuperar a sua juventude e inocência. Alexandra del Lago é uma personagem
muito real, completa, com as suas gloriosas neuroses e os meios para
temporariamente as fazer esquecer.
Chance conheceu um glorioso instante de
beleza e amor na cama com Heavenly, num comboio a grande velocidade, e vive
para recriar esse momento. Há pureza nesse sonho. No entanto, para os homens no
poder na sua terra, St. Cloud, ele é o criminoso degenerado que merece ser
castrado, depois de ter inconscientemente infetado Heavenly com a “doença das
putas”, adquirida numa das muitas mulheres da vida com que Chance teve, na sua
tentativa de arranjar dinheiro e estatuto para estar ao nível daquilo que Boss
Finley pretendia para o marido da filha. Na verdade, apenas arranjou um bilhete
sem regresso para o inferno.
A certa altura da peça, Alexandra del Lago
ou simplesmente “A Princesa” implora pelo corpo de Chance:
“-
Chance, preciso desta distração. É o momento de descobrir se és capaz de ma
dar. Não podes ficar preso a essa ideia parva de que podes valorizar-te
voltando as costas e indo para a janelas quando alguém te quer… eu quero-te…
agora mesmo.”
É esta mercantilização do sexo que deixa
Chance emasculado (castrado). Ele é a versão masculina da puta de ouro, um
romântico amoroso que se redime a dar voz a juízos patriarcais sobre a renúncia
ao poder masculino. A corrupção da personagem é causada pela sua capturada
dentro do sistema materialista.
Ao contrário de Alexandra del Lago,
Heavenly é uma impossibilidade para Chance. O pai nunca permitirá que Chance a
leva e ela torna-se tão somente um “sonho de juventude”, uma jovem despedaçada,
tornada estéril pela doença venérea que Chance lhe transmitiu e agora é forçada
a casar com o médico que lhe extraiu o útero.
Alexandra oferece a Chance uma forma de
escapar à castração e fugir de St. Cloud: continuar ao seu serviço. Mas ele
recusa. Quando o seu sonho de juventude acaba, só lhe resta o orgulho e por
isso ele prefere a castração a ser um brinquedo de Alexandra. Quando Chance diz
a Alexandra que forçá-lo a cumprir sexualmente é uma forma de castração, ela
contrapõe: “A idade faz o mesmo com as
mulheres” e nós ficamos a pensar quanto certeira é aquela observação.
O Doce Pássaro da Juventude decorre num domingo de Páscoa, sugerindo uma redenção que a peça não admite. A Páscoa
funciona aqui ironicamente, pois não há como escapar ao tempo ou à mortalidade.
A peça celebra a tenacidade de Alexandra
del Lago, capaz de ser honesta consigo e com os outros, e capaz de momentos
luminosos de compaixão e até de amor. No entanto ela sabe que, fundamentalmente,
estamos sós numa terra de ogres.
No final, Chance só abdica das suas vãs
ilusões quando Alexandra o confronta com a dura verdade sobre ele próprio e
Heavenly. O que ganhará ele com a castração? Não será mais heroico suportar a
inevitabilidade do tempo, esse inimigo, do que claudicar diante dele?
Alexandra é o verdadeiro centro da peça e
não Chance. As últimas palavras que dirige a Chance propõem uma filosofia de
persistência e adaptabilidade: “Então,
anda, temos de continuar.”
Gabriel Vilas Boas
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