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domingo, 16 de agosto de 2015

HÁ QUE ENCARAR O PROBLEMA DE FRENTE



Ricardo era um homem calmo, cordato, amigo do seu amigo e bom profissional. Havia poucas coisas que o tiravam do sério ou o irritavam. Nessa pequena lista estava o uso e abuso das repetições desnecessárias, também conhecidas por pleonasmos ou tautologias.
Os amigos sabiam desta fraqueza e evitavam repetir-se, mas o pior eram os inimigos ou aqueles que não conheciam a sua aversão aos cromos repetidos. Havia ainda os distraídos, como o Carlos, o seu chefe. Logo no primeiro dia após o regresso de férias, ambos conversaram e Carlos disse:
- Homem, não fique aí especado na porta! Faça o favor de entrar para dentro!
-Chefe, isso é desnecessário…
- Qual desnecessário, qual quê! Entre chefe e empregado tem de existir sempre um elo de ligação forte. Até porque vamos conviver juntos muitos dias, durante o ano.
- Chefe, o que eu quis dizer é que há repetições desnecessárias que devemos evitar.
- Também acho, Ricardo. Isso é um facto real que não podemos ignorar.
           
O chefe lá continuou a falar enquanto Ricardo estava mortinho por ir à sua vida e não ter de ouvir mais pleonasmos. Ao sair da sala da direção, cruzou-se com Francisca, que lhe disse:
- Ricardo, que surpresa inesperada!
- Também para mim, mas deixa lá a “inesperada”, porque a “surpresa” não precisa dela!
- Não percebi! Importas-te de repetir de novo?
- Não vale a pena! Deixa lá, vou andando…
- Que antipático! Nem pareces uma pessoa humana.
           
Ricardo já ia longe, mas ainda ouviu. Levou as mãos à cabeça, exasperado, e prosseguiu para o seu gabinete, contudo este ainda não estava pronto. O pintor, um pouco constrangido, desculpou-se:
- Doutor, hoje não será possível entregar-lhe o gabinete pronto, ainda falta um acabamento final!
            Ricardo explodiu:
- Senhor, se é acabamento é final! Não existe acabamento quartas-de-final, acabamento semi-final…
            Sem perceber, o pintor, que era um pândego, ainda retorquiu:
- Não existe, mas devia de existir! Sempre eram mais uns trocos que ganhava!
           
No entanto, Ricardo, já não ouviu. Desceu as escadas e foi até à cafetaria do serviço. Pediu um chá. A empregada resolveu meter conversa:
- Dr. Ricardo, tenho um segredo ulta secreto para lhe contar!
            Ricardo arregalou os olhos, mas a rapariga não entendeu e prosseguiu:
- A nossa Ritinha vai ser a protagonista principal da nova novela da TVI.
            Ricardo engasgou-se com o chá e tossiu tanto com o incómodo que Dona Carla teve de lhe bater várias vezes nas costas. Regressou ao trabalho, onde se cruzou novamente com o pintor que lhe garantiu, “em seu nome pessoal”, que no dia seguinte o gabinete estaria pronto. Nem lhe respondeu! Já começava a sentir-se mal e lembrou-se que tinha de marcar uma consulta para si e para os filhos. Telefonou para o centro de saúde. Do outro lado da linha a telefonista respondeu:

- Só posso aceitar o seu pedido se comparecer pessoalmente!
            Desligou o telefono. Os nervos estavam em franja. Tentou acalmar-se… Afinal, aquele era o seu primeiro dia de trabalho após o regresso de férias. Procurou, então, o Antunes, o seu melhor amigo, mas não o via.
- Viste o Antunes, Pedro?
- Vi, vi! Acabou de descer essas escadas abaixo e depois saiu para fora do edifício.
            Mordeu a língua, mas não disse nada. Decidiu que bastava! Regressaria a casa. Mal entrou em casa, a mulher atirou:
- Meu Deus, como tu estás pálido! Vou já fazer uma canja de galinha!
- Naaãoooo!
- Calma Ricardo! Como berras alto!
- Berro alto? Não posso mais, não aguento mais! Vou deitar-me!
- Meu amor, que se passa contigo? Eu sei que, regra geral, as pessoas reagem mal ao primeiro dia de trabalho após as férias, mas também não é preciso exagerar. Há um ano atrás tiveste um problema parecido… acho que deves encarar o problema de frente. Eu e a tua filha mais velha chegamos a um consenso geral: antes que tenhas alguma hemorragia de sangue, sobe essas escadas para cima e deita-te na nossa cama. Vai fazer-te bem descansar!
- Meu Deus, quanta repetição desnecessária, quanta tautologia inútil. Desisto. Corrigir pleonasmo é coisa de asno. Vou dormir.
Gabriel Vilas Boas

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Eu também gosto muito dos pleonasmos, até daqueles que digo e faço os outros rir com as minhas "distrações". Ainda faltou aquele do "duas metades iguais"... eheheh

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