Reincidências em luz e
água
Não
sei se fruto da minha vocação para o disparate, mas por mais de uma vez
aconteceu encantar-me, numa loja, com o castanho antracite ou o azul índigo de
uma camisola que, assim que transporta a orla da porta, debaixo da chuva de luz
natural, transmutou-se num cinzento zombeteiro, para meu desconsolo.
Há cores de fronteira, azul na íris de alguns,
verde na de outros. Há também a nossa subjetividade. E depois há a luz e os
seus efeitos. E a luz é a feiticeira da Natureza, mostra e oculta, destaca e desmerece,
altera cores e volumes e dirige o nosso olhar.
A luz foi a musa e a obsessão dos Impressionistas
- à frente de todos, o pintor Claude Monet (Paris,
1840-1926). Foi, aliás, o seu quadro “Impressão:
Nascer do Sol”, exposto no Salão dos Recusados, que deu nome à corrente,
quando um crítico, chocado com a revolucionária forma de pintar, aparentemente
tão imprecisa, pegou no título daquele quadro e reduziu o novo estilo pictórico
a umas “impressões”.
O
quadro “Rio” que o pintor terminou em 1868 parecia ter sido mergulhado num
caldo de luz e de tal modo era o seu impacto ao vivo que os críticos se
queixavam que lhes agredia a vista.
Aos Impressionistas
interessava captar a Natureza, as pessoas ou os objetos, tal como se
apresentavam sob a fugidia luz solar (Guy de Maupassant, o autor de Bel-Ami, chegou mesmo a dizer de Monet
que já não era pintor, era um “caçador”). Por isso privilegiavam a pintura ao
ar livre (Monet afirmava mesmo que a Natureza era o seu estúdio) e pintavam não
exactamente a realidade, mas o que a luz deixava ver dela, em pinceladas
céleres o suficiente para acompanhar a peugada do sol. Aplicavam a tinta em
manchas que ao longe se fundiam e faziam todo o sentido, revelando o objeto retratado,
mas que vistas de perto e para o olhar vigente, agarrado à pintura arrumada de
Courbet, lembravam esboços ou borrões e obra inacabada. O resultado era um
conjunto de trabalhos muito belos, claros e delicados, de aspeto sugerido,
autênticas poesias de luz e cor.
Neste
“corta-mato” com a Natureza, o pintor perdia, naturalmente muitas vezes, pelo
que Monet optou por trabalhar em várias telas, com o mesmo tema (como os
famosos nenúfares), ao longo do dia. Passava de umas para as outras à medida
que o sol se deslocava no céu. No dia seguinte retomava o trabalho em cada uma
do ponto em que tinha ficado. Nasciam assim as séries – repetições da mesma
temática captada a diferentes horas do dia.
Mas
nem tudo era espontâneo, quando a Natureza se adiantava, Monet fazia recuar o
ponteiro do relógio biológico da forma que lhe estava ao alcance. Aconteceu
quando mandou arrancar do carvalho que pintava, num ambiente invernoso, as
folhas e pequenos rebentos que despontavam com a primavera.
De
outra vez pagou a um comerciante de madeiras para que não derrubasse os choupos
que adquirira para madeiramento, até os acabar de pintar do seu barco.
Em Giverny
(Normandia), onde viveu, tornou-se, aliás, presa fácil do oportunismo de alguns
vizinhos. Gulosos de fazer com ele algum dinheiro e, à maneira dos senhores
feudais, faziam-no pagar portagem quando lhes pedia para
atravessar os seus campos, fascinado com um retalho de paisagem que queria
registar em tela. Se o viam a pintar uma meda de feno ou um álamo em terreno
seu, logo se acercavam para a remover ou arrancá-lo… a menos, claro, que Monet
lhes quebrasse a urgência com dinheiro.
Felizmente
que os tempos de penúria já lá iam, porque esta obstinação custava-lhe
verdadeiras fortunas.
Quando pintou a série de quadros do “Lago dos
Nenúfares” que mais tarde afunilou em pinturas que se enchiam apenas com um
apontamento deste lago (como em “Nenúfares”), já havia criado, na sua
propriedade em Giverny, o seu próprio jardim e fonte de inspiração quase única
daí para a frente. Um braço-de-ferro com os agricultores da vizinhança, mais
uma vez. A sua tenacidade, contudo, também era férrea. Conseguiu autorização da
Câmara para drenar o Ru, um afluente do rio Epte e criar o extenso lago que
pintou e repintou em variações tonais. Povoou-o com os seus amados nenúfares e
foi uma dor de cabeça convencer os camponeses de que nem aqueles (praticamente
desconhecidos em França, à época) nem o desvio do curso do rio, ou as algas que
ondulavam na água como cabelos, prejudicavam a agricultura.
Pintou até ao fim da vida (com
um interregno de três anos de
profunda tristeza motivada pela morte da sua segunda mulher, Alice, a que se
sucedeu o falecimento do filho Jean), mesmo quando a doença o rasteirou e o
privou do seu principal instrumento de trabalho: a visão, comprometida por
cataratas e dores oculares terríveis.
Os últimos quadros, como “A Ponte
Japonesa”, de 1922 (a mesma dos Lagos dos Nenúfares), são testemunhos vívidos
disso mesmo, mas também da juventude anímica do octogenário Monet e um tributo
ao espírito de Samuel Beckett:
“Ever tried. Ever failed. No matter. Try
again. Fail again. Fail better.”
Maria Vilas
Apreciei a qualidade do blogue! Gosto muito dos "Grandes Impressionistas"!
ResponderEliminarParabéns, Maria Vilas.
Gostei do texto, sucinto quanto baste, sem no entanto deixar de nos encantar com a leitura. Pov.
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