Etiquetas

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O RITUAL DAS CAMPAS REGA A MEMÓRIA COM FLORES

Todos os anos é a mesma coisa: Amélia arrasta o marido estrada fora, em penosos quilómetros percorridos em silêncio, por estradas vazias de gente e de vida, até à terra dos pais. Já não a reclama como sua, porque, na verdade, já não se sente filha daqueles penedios tristes, onde passara a infância.

Ao chegar à terra, alguns velhos, que sobraram do tempo dos pais, acenam e sorriem-lhe, buscando na memória ténue o tempo em que Amélia brincava à cabra cega. Retribui o doce cumprimento e dirige-se à casa paterna.

Está fechada desde o Verão. Os móveis cobertos de pó, as fotografias envelhecidas trazem de volta a tristeza pela morte do pai e, sobretudo, da mãe, há cinco anos. Abre as persianas, mas não tem coragem de fazer o mesmo às janelas. O cortante frio transmontano deprime-a e só mesmo o abraço carinhoso do esposo a faz regressar a uma paz resignada. A casa está fria e precisa que a lareira comece a crepitar. Começam a falar das coisas que necessariamente terão de executar para passar ali a noite...

O primeiro calor da lareira abre um breve sorriso em Amélia e Luís aproveita para lhe oferecer um copo de vinho tinto. Ela agradece o gesto de ternura e bebe um gole para não defraudar o marido.
O sino da igreja   trá-la de volta ao motivo da sua estadia ali. Pega no molho de flores que trouxe do Porto e dirige-se para a porta.
    - Vens?
Luís responde com um aceno afirmativo e segue-a em silêncio. Ouvem-se os passos ritmados, nos paralelos irregulares da rua, que leva dezenas de homens e mulheres até ao cemitério. 
Casacos escuros transportam belos ramos de flores coloridas.
Amélia dirige-se ao seu pequeno santuário. Coloca delicadamente as suas flores brancas e lilases sobre o mármore cinzento escuro. Não reza. Esqueceu-se por completo como se faz, mas rapidamente ultrapassa esta pequena vergonha de consciência e deixa que a memória a transporte a um Tempo, onde não havia velhice, nem doença nem morte. 

Rapidamente começam a emergir os slides mais significativos da sua vida como uma apresentação em powerpoint. 
Não consegue decifrar o tom da música de fundo, mas percebe claramente que o «filme» vai já para lá de meio. Quer rever alguns flashes que já passaram, para capturar um olhar feliz da mãe, mas também aquela apresentação sumária da sua vida está pré-programada e não permite mais do que uma visualização.

O leve toque do marido no ombro acorda-a daquele transe insólito. Diz-lhe para ir andando. Ele espera mais uns segundos, mas obedece-lhe. É então que ela olha novamente as flores que trouxe e vê o como os vento espalha algumas pétalas.
Percebe, por fim, que tudo aquilo é sobre ela e para ela. Aquela obrigação cristã trouxe-a à aldeia primordial para se reencontrar consigo e não para homenagear os pais com flores. 
Para ela era evidente, agora, que não podia deixar morrer a memória do que fora, porque a sua História se escrevia com ela. Aquelas flores não eram outra coisa senão um pouco de água sobre a sua memória ressequida.
GAVB 

Sem comentários:

Enviar um comentário