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quinta-feira, 12 de junho de 2014

DA ARTE, DA PINTURA, DE ANTÓNIO CARNEIRO (I)


Auto-Retrato, 1919 -
Óleo sobre tela, 55 x 45 cm, Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante



Venho da rua. Um inebriamento
De formas e de côres abalou
Um momento o meu ser, onde pousou
Numa interrogação um desalento.

No silêncio do lar as mãos ansiosas
Levanto, e cerro os olhos cismador.
Todas as sombras logo em derredor
De mim vêm alinhar-se carinhosas…

Que tens, pobre amoroso? Duvidaste?
Viste só com os olhos, e cegaste…
Vê com a alma, amigo. Põe constante

O coração nas cousas. Ama, crê!
A verdade é em ti, amigo, sê
Tu mesmo, e acha –la -às a todo o instante…
António Carneiro

A expressão modernista em Portugal conviveu sempre de muito perto com o Naturalismo português e manifestou-se em primeiro lugar com “…o sentir simbolista e expressionista… “de António Carneiro, pintor e poeta de Amarante, onde nasceu a 16 de setembro de 1872.
Dele, Eugénio de Castro afirmou que “atravessou a existência numa espécie de sonambulismo”, devido ao seu carácter reservado, em alheamento constante do mundo urbano e das multidões.
Desenvolveu um trabalho intenso numa solidão imensa de dedicação à pintura e à escrita. Os seus sonetos haveriam de ser publicados depois da sua morte com um título bem expressivo: ”Solilóquios”.
A música deleitava-o pelo que a sua presença, discreta e assídua em concertos, como aqueles organizados pelo Orfeão Portuense no Palácio de Cristal, era obrigatória. As exposições de pintura também o ocupavam, entre as quais uma, de Amadeo de Souza-Cardoso, no Salão Passos Manuel.
Mas a sua preferência pelo isolamento levariam Teixeira de Pascoaes, entre outros, a apelidá-lo de “sacro pintor” e ao seu local de trabalho “santuário”, talvez porque o seu traje preferido para pintar fosse o gabão monástico com que se auto -retratou tantas vezes.
Um grupo restrito de amigos e admiradores faziam questão de o receber e eram igualmente recebidos com honras próprias da amizade. Assim foi em casa de Júlio Brandão, no Douro, ou na casa do Belinho, da família Correia de Oliveira… mas a casa de Teixeira de Pascoaes, em Amarante, era a casa incontornável, de muitos serões, que Pascoaes descreveu de forma pormenorizada e onde se estreitou a amizade entre os dois:
“Adorava, como eu, as cartas de Cícero e as Epístolas de S. Paulo. Éramos do mesmo povo, da mesma terra e da mesma melancolia panteísta. Por isso, admirávamos ambos o pintor francês Millet. Aquela sua tela em que se ouvem as badaladas do crepúsculo! Não há retratos que falam? Falou a estátua de Moisés. Que importa que não a ouvisse Miguel Ângelo? ... Às vezes, depois do jantar, ainda à mesa, conversando, desenhava, ora a minha cara, ora, a ele mesmo,-obras-primas feitas a brincar com o lápis. Um desses desenhos é o meu melhor retrato. Que maravilha de expressão. Que delicadeza infinita no traçar das linhas. Eu não tirava os olhos das suas mãos nervosas, iluminadas! Imaterializavam-se, tornavam-se fantásticas!”

E a mais profunda das ligações:
 “E embalou-nos, no mesmo berço, esse vale do Tâmega, a sombra do Marão, a nossa ama. Como ela surge nas suas telas! E transparece nos meus poemas.”
Teixeira de Pascoaes, in “António Carneiro”

A ida do pai para o Brasil e a morte da mãe levam-no para o internato do Asilo do Barão de Nova Sintra. Em 1884, o Asilo faculta-lhe a frequência da Academia de Belas-Artes, onde termina o curso de desenho em 1890.Recebe lições de João Correia e de Marques de Oliveira e quase no final do curso, apresenta-se já em exposições. Em 1897,parte para Paris, graças a uma bolsa do Marquês de Praia e Monforte, onde trabalha no atelier do Boulevard Arago, nº 10 e frequenta a Academia Julien, onde foi discípulo de Jean Paul Laurens e de Benjamin Constant.
Conta-se que Constant, ao observar o trabalho de António Carneiro, exclamaria com alguma surpresa:
“Ce nést pas mal; c’est même três bien; on voit que vous êtes en marche. Vous n´êtes pas encore arrivé mais vous arriverez surement.”
E depois deste pequeno apontamento sobre o meu querido pintor de almas, naturalista especialíssimo, influenciado por Munch, pelos Nabis e até por Puvis de Chavannes, fecundo na temática religiosa e mística, no retrato, nas sanguíneas, belíssimo pintor de marinhas e paisagens, deixo-vos com uma paisagem de Carneiro, a aguçar curiosidades para a próxima semana. Densa, carregada de névoa, de mistério e de angústia expressiva… tal como ele.

António Carneiro, Nocturno, 1910, óleo sobre tela


 (continua)
Rosa Maria Alves da Fonseca

2 comentários:

  1. No soneto transcrito de António Carneiro falta o primeiro verso: «Venho da rua. Um inebriamento». Cumprimentos.

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    1. Muito obrigado pela sua atenção e correção, Fernando Silva.
      Um abraço.

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