Autorretrato, 1926 |
“Desde os meus primeiros anos foi sempre a pintura o melhor regozijo dos meus olhos e da minha vida e, hoje, que posso recordar esses dias da minha mocidade, observo com satisfação um pormenor bastante curioso a este respeito. É o seguinte: ao ver um quadro, uma estampa, eu pensava imediatamente, instintivamente, não tanto no que queriam representar como em quem o teria feito. Conforme a minha simpatia pelo quadro ou pela estampa assim era correspondente a minha imensa curiosidade de como seria a pessoa que tinha conseguido fazer aquilo. Eu não exigia do assunto do quadro nem do modo por que estava pintado senão que a minha simpatia o admitisse e, pelo contrário, punha no mais alto da minha admiração o autor.(…)
Hoje, porém, conhecedor e consciente, penso exatamente a este respeito como em criança: para mim, em pintura, primeiro o pintor e depois o quadro.”
Lisboa, Março de 1934
José de Almada Negreiros, in "Cuidado com a Pintura"
“…para mim, em pintura, primeiro o pintor e depois o quadro.”
Mas o quadro não é o pintor? E o pintor não é o quadro? Entendi sempre que o pintor inunda de si as telas que pinta, em poesia de cor, e que, através delas, o espetador mais atento e sensível lhe decifra a alma. Através delas, vemos como ele entende e canta a Natureza, como ele lê e sussurra a mulher ou a criança que retrata Por elas, observamos o seu mundo interior, num canto de sensibilidades mais ou menos profundas.
No entanto, hoje concedo a Almada toda a razão. Caminhemos, então, de encontro ao pintor que tanto admiro pela obra que nos legou, mas sobretudo por uma que me encanta.
O mês de março é para mim um mês muito especial. Não apenas por ser o mês em que nasci, mas, sobretudo, por ser o mês que me viu ser Mãe, em primeiro lugar de um menino e, dois anos depois, de uma menina, com que Deus, generoso, me quis agraciar.
Assim, quando consegui parar um pouco, para pensar no meu primeiro post deste mês do meu coração, veio-me à memória a obra “Maternidade”, pintada em 1935, por Almada Negreiros e que eu pude apreciar no Museu do Chiado, aquando da belíssima exposição O modernismo feliz.
Almada Negreiros, Maternidade, óleo sobre tela, 100X100, 1935, CAM, Lisboa |
Nesta época, ia já longe e distante o jovem Almada, que Sarah Afonso, sua esposa, nos descreveu como “...exuberante e excessivo. Deitava foguetes à porta da Brasileira, dava uns pulos que passava um bocado por cima da cabeça das pessoas, ia aos saltos por cima das mesas até ao balcão do fundo, na Brasileira, mas primeiro dando um pontapé rasteiro na balança que havia à entrada.”
Esta exuberância que Sarah amava, poderia ter sido direta consequência dos dez anos que viveu “encerrado” no Colégio dos Jesuítas, em Campolide, para onde foi enviado após a morte precoce de sua Mãe. Em La Lettre ,endereçada à Mãe, em francês, emociona quando diz “Tu m’as quitté/sans le vouloir”.Esta ausência da Mãe marcou-o definitivamente, uma Mãe desaparecida ainda ele menino, a quem apelou numa experiência poética em prosa “A invenção do dia claro”.
Artista sem mestre, foi sem dúvida a expressão maior do Homem que se desejava no período do Renascimento, pois deambulou pelo desenho, pela literatura (escreveu textos de intervenção, poemas, novelas), pela pintura e pelo mural. Viajou até Paris em 1919 e viveu durante cinco anos em Madrid, para onde viajou em 1927, especializando-se na arte do Mural, onde se excede nos anos 40, nas Gares Marítimas de Lisboa.
Em Madrid, foi muito bem recebido no café Pombo, como podemos confirmar aqui pela descrição da sua chegada, redigida por Gomez de la Serna:
“Almada, nervioso, alto, sonriente, negreiro de ojos e cabelo, almado de inteligência y simpatia, nos tendió la mano y nos mostro sus dibujos. Esto fué todo. Y fué muchissimo”.
E tão muitíssimo foi que logo se agendou uma exposição, dedicada ”a la memoria de Juan Gris y a Picasso, Sunyer, Vasquez Diaz y Solana”, que foi um êxito.
Para António Espina, crítico espanhol, nem Paris nem Madrid influenciaram decisivamente Almada. Ele é, isso sim, um pintor genuinamente português. E escreve uma das melhores críticas sobre o nosso artista, que não resisto a citar:
“Almada é um artista claro…e o que primeiro cativa na sua obra é a simplicidade infantil do olhar. A vida renasce frescamente através da grave pupila ingénua.(…)os nus possuem uma lenta e exasperada voluptuosidade…recôndita, muito cândida na aparência; no fundo muito cerebral.”
Em março de 1934 (cá está março, de novo), casa-se com Sarah Afonso. Em 1935, pinta Maternidade (alusiva ao nascimento do seu filho), um óleo sobre tela de grandes dimensões, intimista e sentimental, de uma modernidade inquestionável, assumindo, aqui, Almada a sua maturidade pictórica.
Os panejamentos de um cinza azulado acentuam a robustez da Mãe, numa clara alusão à força da Natureza que é a mulher. Da tela, imagino palavras soltas, já ditas e repetidas, na “Invenção do Dia Claro”, mas aqui pintadas em versos de cor: “Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado.” Ou então: “Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade.”
Há aqui quase uma incursão pelo neo-realismo, sugerida pelo tratamento dado aos pés nus da Mãe, que se rende ao filho.
Os panejamentos de um cinza azulado acentuam a robustez da Mãe, numa clara alusão à força da Natureza que é a mulher. Da tela, imagino palavras soltas, já ditas e repetidas, na “Invenção do Dia Claro”, mas aqui pintadas em versos de cor: “Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado.” Ou então: “Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade.”
Há aqui quase uma incursão pelo neo-realismo, sugerida pelo tratamento dado aos pés nus da Mãe, que se rende ao filho.
Para que a Maternidade seja perfeita, o ideal e mais natural é a existência do Homem e da Mulher. E do Amor. Ainda Almada, acerca do Homem de da Mulher:
“Acerca do Homem e da Mulher
Lembro-me de uma oleografia que havia em minha casa. A oleografia estava cheia de amarelo do Deserto. O amarelo do deserto era mais comprido do que a vida de um homem se não fosse o galope do cavalo onde o árabe rapta a menina loira. Na oleografia havia uma palmeira. A palmeira era tão pequena como a esmeralda do anel da menina loira. A palmeira era assim tão pequena porque estava muitíssimo longe. Era em direção à palmeira que ia a correr o cavalo. Havia outra oleografia quando já tinham chegado à sombra da palmeira. O cavalo estava como morto por terra. O árabe, esse, ainda nunca tinha estado cansado. Tinha a menina loira nos braços, como a esmeralda estava no anel. Eram três as oleografias. Na terceira oleografia, estava sozinha a menina loira a dar de mamar a um menino verdadeiro."
Acerca das três oleografias
Estas três oleografias explicam muito bem como se pode ser senhora e como se deve ser homem. As senhoras como a menina loira. Os homens como o árabe. Um homem sabe raptar; uma senhora merece ser raptada. Exemplo de um homem que soube raptar: o árabe. Exemplo de senhora que mereceu ser raptada: a menina loira da oleografia. Ser o árabe para desencantar a menina loira; ser a menina loira para que haja o árabe.(…)
Mãe! A oleografia está a entornar o amarelo do Deserto por cima da minha vida. O amarelo do Deserto é mais comprido do que um dia todo!
Mãe! Eu queria ser o árabe! Eu queria raptar a menina loira! Eu queria saber raptar.”
Almada Negreiros, "A Invenção do Dia Claro", 1921
E a Mãe acedeu! Ensinou Almada a raptar…e nasceu “Maternidade.
Que saibamos ser o árabe e a menina loira. E, já agora, um bom março para todos…afinal, vem aí a Primavera.
Rosa Maria Alves da Fonseca
Delícia de texto, Rosa Maria Fonseca! É mesmo um prazer ler o que brota da tua pena! Beijinhos!
ResponderEliminarTexto Belíssimo sobre Almada Negreiros!!! Adoro a pintura do quadro "Maternidade". Parabéns.
ResponderEliminarGosto muito de Almada Negreiros,aliás, de todos os grandes nomes do Primeiro Modernismo Português.E é bom escrever sobre o que gostamos.Ainda bem que apreciaram,muito obrigada.Rosa Maria Fonseca
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