Chega março e com ele o sol atrevido, as camélias, os pássaros em ninhos de chilreios tímidos mas maravilhosos. Março é um mês talentoso, criador e vivo, pois é sempre nele que irrompe a primavera, trazendo consigo o dia da Mulher, deusa maior da criação, numa explosão de luz e cor por que ansiámos todos, cansados já das vestes pesadas do inverno gigante deste ano que teimou em nos impor a sua presença enorme de chuva e névoa, de frio e de vento e de ondas gigantes de que já não queremos ouvir sequer falar…
É por isto que, para mim, este mês combina na perfeição com Almada, também ele um arco-íris de talentos já provados, que nos orgulha da raça de ser Português.
Em 1911,revela-se a um Portugal que nunca renegou, apesar das contingências políticas (também por isso o admiro) pois ele próprio afirmou, num arremesso de nostalgia que “a arte não vive sem a pátria do artista”; assim, apresenta-se, naquela data, na 1ª Exposição do Grupo dos Humoristas Portugueses. Mais tarde, conhece Pessoa, de quem se torna amigo, e envolve-se em projetos que o ligam definitivamente ao Primeiro (e genuíno) Modernismo Português: as revistas Orpheu, em 1915 e Portugal Futurista, em 1917. Muito mais tarde, funda Sudoeste (1935) e continua a colaborar em diversas revistas e jornais; publica obras literárias de inegável valor, entre as quais figura até uma peça de teatro ”Deseja-se Mulher, uma busca incessante do amor, em texto de uma mestria excecional, num jogo poético e modernista ímpar, onde se conjugam na perfeição o amor, o sonho e a realidade.
Um dia, Almada afirmou que “os olhos são para ver e o que os olhos veem só o desenho o sabe”. Encantadora pelo sentido metafórico, questionei esta divagação almadina, querendo, num ato absoluto de indiscrição feminina saber o que viam os olhos gigantes do meu “gigante” pintor. E, neste março envolto em feminino, procurei claro, a mulher em Almada, nas suas diferentes representações, nas suas diferentes técnicas e aceções. Ora espreitem aqui uma das suas mais belas figurações da mulher que selecionei para regalo dos nossos olhos.
José de Almada Negreiros, Nu, óleo sobre tela, 1926,Bristol Club
A sua obra reflete um gosto particular pelo quotidiano, pela mundividência que deseja moderna e que espelha com afetividade nos desenhos, nas ilustrações e nas pinturas que inundam jornais, revistas e salões. Aqui e ali, abundam as flappers, numa atitude modernista elegantemente cosmopolita, em corpos reinventados, frios, estreitos, pálidos e imbuídos de uma profunda estilização. Em todos eles, o seu olhar perscrutador deixa adivinhar romance e uma sensibilidade afetiva de um lirismo extremo que nos seduz irremediavelmente. Assim me senti, em 2012,no MNAC, aquando da Exposição “O Modernismo Feliz”, absolutamente rendida a uma arte nacional que irrompe Estado Novo adentro, mas que continua eivada de vanguardismo, apesar de “guiada” por um SPN que insistia em aprofundar uma aliança consentida/comprometida entre Arte e Poder, pelas mãos de um António Ferro todo poderoso, mas que deixou obra.
Os jogos de geometria pura, quase impenetrável, a lembrar viagens picassianas a uma arte que emerge de Paris, como tão claramente se observa na obra As Banhistas, dão o tom para esta música poética que são as mulheres de Almada, nunca libertas do predomínio do desenho. Assim foi com as obras realizadas quer para a Brasileira do Chiado, quer para o Bristol Club. Destas, destaco a tela Nu feminino, elaborada para aquele Club elitista da época, de uma sensualidade ostensiva. A marcar o seu tempo, o cabelo “à la garçonne” que a menina olha no espelho e os sapatos vermelho vivo, a acentuar a feminilidade.
Almada quis inebriar a Lisboa do seu tempo de uma modernidade que ainda lhe era estranha, tardiamente mergulhada num oitocentismo arreigado e enraizado; Almada quis com toda a sua alma o Portugal Futurista, de uma velocidade que não encontrou eco nas gentes, e nas senhoras dos elegantes chás das cinco, ainda espartilhadas pelas convenções sociais e providas dos seus obrigatórios chaperons, nas curtas saídas para umas compras ou um Passeio Alegre qualquer…
Almada acompanhou também uma época de mudança na atitude da mulher. Por todo o lado se ouvem gritos feministas com o objetivo de pôr termo à situação de dependência em relação ao sexo masculino. Estas reivindicações centram-se pois, na igualdade jurídica, social, económica e até política entre os dois sexos.
Ana de Castro Osório, já em 1905 se havia dirigido às mulheres portuguesas, afirmando que “ser feminista não é querer as mulheres masculinas (…); mas sim desejá-las criaturas de inteligência e razão, educadas útil e praticamente, de modo a verem-se ao abrigo de qualquer dependência, sempre amarfanhante para a dignidade humana.”
José de Almada Negreiros, Five o'clock tea, desenho a Tinta-da –China, Aguada e Aguarela sobre papel
José de Almada Negreiros, S/título, Pintura decorativa, Alfaiataria Cunha
José de Almada Negreiros, As banhistas, Pintura para o Café “A Brasileira” do Chiado, 1925, óleo s/ tela
Uma das definições mais interessantes da flapper dos loucos anos vinte foi publicada em 6 de dezembro de 1922,na “Outlook”, num artigo escrito por Ellen Welles Page, do qual aqui transcrevo um excerto:
“Se me julgam pelas aparências, acho que sou uma flapper. Estou dentro da idade. Uso cabelo curto, escorrido, o emblema da flapper (oh, e que conforto isso é!). Ponho pó de arroz no nariz. Uso saias com franjas, sweaters berrantes, écharpes,(…)sapatos de salto baixo. Adoro dançar. Passo muito tempo em automóveis. Vou a festas, jogos, corridas e outros eventos (…). Não uso rouge, bâton, nem depilo as sobrancelhas. Não fumo (tentei, mas não gosto), bebo ou conto piadas picantes. Mas claro que há muitos graus de flapper. Há a semiflapper, a flapper, a superflapper.
Todos vós gritais: “É o resultado da guerra!”E então condenam-nos publicamente. Têm de ajudar-nos. (…) A guerra destruiu os nossos alicerces espirituais e desafiou a nossa fé. (…) E não temos ninguém para quem nos voltar-ninguém a não ser o resto da juventude, que está tão perplexa e perturbada com os seus problemas como nós próprias.”
Penso ter ficado provada aqui a minha devoção a este génio percursor do Modernismo português. Deixo igualmente o meu aplauso às flappers de Portugal e às feministas destes conturbados tempos, que romperam amarras com as suas importantes conquistas. E se me deixassem viajar no tempo, claro que eu me demoraria naqueles Roaring Twenties e aproveitaria um café na Brasileira do Chiado ou um D. Pérignon no Bristol Club, talvez ao som de uma música como esta. Quem sabe, Almada apareceria por lá.
Rosa Maria Alves Fonseca
Belíssimo Texto!!! " DA ARTE, DA PINTURA E DAS MULHERES EM ALMADA NEGREIROS " está Excelente!!! Gostei do vídeo com uma bela musica Midnight in Paris... PARABÉNS!!!
ResponderEliminarComo já deves ter percebido, Ana, a Rosa escreve muito bem e tem muita sensibilidade para a pintura. Obrigado pela tua leitura atenta do nosso blogue. Faremos por merecer essa atenção.
ResponderEliminarA Rosinha é uma verdadeira Mulher de Letras e das Letras! É também uma alma carinhosa e sensível com muito para nos oferecer.
ResponderEliminarComo é que tu tiveste a lata de não escrever estes anos todos?
Delicioso, o teu texto!
Partilho inteiramente as tuas palavras sobre a Rosa, que a cada dia vou conhecendo melhor e gostando mais, Anabela Magalhães. Bjs.
ResponderEliminarObrigada por me/nos lerem...e pelas vossas palavras de incentivo. A vossa opinião também conta. Bjs
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