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sábado, 8 de fevereiro de 2014

REGRESSO À INFÂNCIA - MARC CHAGALL

           Quando ouvi a minha professora de francês do décimo ano, profunda conhecedora do que de melhor se produzia em arte, eleger como seu pintor favorito Marc Chagall, senti-me quase traída na minha expectativa de que, na sua resposta, trouxesse à luz mais um grande vulto da pintura moderna que eu ainda não conhecesse (o que não era difícil…) e rasgasse com ele mais uma janela na pequena “Oikos” dos meus conhecimentos. Mas, Marc Chagall?... Entre Picasso, Dali, Monet, Turner ou John Millais, era Chagall que a fazia ajoelhar? Bem, já com o travo a heresia a rondar-me os lábios, o que pensava era se teria sido Chagall alguma vez capaz de assinar qualquer coisa para além daqueles arabescos entre o feérico e o anárquico, fixados em tela em pinceladas infantis ou pior, havia mesmo necessidade de convocar um adulto para um trabalho que uma criança seria capaz de fazer?
            Pois… o que só mais tarde e algumas imersões de humildade depois, fui capaz de perceber é que foi precisamente aquele talento de ver o mundo pelos olhos e o coração de uma criança e assim o verter em tela, vitral, teto ou mosaicos que fizeram de Marc Chagall um dos nomes maiores da pintura de sempre, não só da sua Rússia Natal, mas do universo artístico mundial.
            Quem nunca ficou rendido à sinceridade e inocência que se desprendem dos desenhos das crianças? Antes que alguém a ensine a socorrer-se de um grafite para aprisionar primeiro as formas na folha em branco e só depois as encher de cor, uma criança puxa sucessivamente da cor que pretende e é com ela que desenha cada objeto, animal ou planta e este recurso instintivo e direto à cor, numa técnica “dois em um” (desenho e coloração), confere ao que faz uma suavidade e graça desarmantes. Uma criança sabe como ninguém agarrar as emoções ao papel e é assim que os braços dos pais dão muitas vezes para dar duas voltas à cintura dos filhos.
 É real? Não, não é, mas desde a invenção da fotografia que a pintura desinvestiu de copiar a realidade.

 E se não coincide com a realidade, nada é tão honesto como o desenho de uma criança. São amadas, são felizes? Tudo nos seus desenhos é risonho; o seu coração está amarfanhado de dor? Também os bonecos a que dá vida delatam sombras. É por isto que psicólogos e pedopsiquiatras, para aferir da sua saúde afetiva e mental, dedicam-lhes a mesma atenção que um pneumologista às radiografias dos seus doentes.
            Contudo, toda esta sensibilidade se perde facilmente com a maturidade. Quem a consegue preservar na idade adulta e a combina com o que nos falta na infância – a perfeição nos pormenores, a precisão técnica, a riqueza das experiências acumuladas – tem um dom raro e, claro, faz a diferença.
            Tal como Alfred Hitchcok no cinema não precisava de poisar o olhar por trás da câmara para saber a porção de realidade que cabia em cada ângulo, também Chagall tinha mentalmente delineado todo o trajeto do pincel na representação fiel da realidade, mas era o reino combinado da imaginação e das suas memórias, o mundo simbiótico dos provérbios judaicos e contos populares russos, da arte folclórica da sua Pátria primeira e dos seus dois grandes e felizes amores (Bela e Valentine Brodsky – “Vava” - que o resgatou das cinzas em que se afundou com a morte da primeira) que o seduzia. Pintou também os seus fantasmas, terrores e tristezas, em cores pardacentas, infelizes, anoitecidas, quando a infelicidade o comeu como um bicho. 
            E aqui tocamos noutro ponto da sua originalidade. Marc Chagall foi também um libertador cromático. A escolha das cores obedecia a uma lógica - cheia de simbolismo -, mas puramente pessoal, totalmente liberta do espartilho da realidade. Por isso não é difícil encontrar nos seus quadros uma vaca azul ou um rosto verde. E onde já vimos o mesmo?…
Foi esse mundo deslumbrante de criação que nos deixou.
E é uma delícia limpar o olhar em obras como “Eu e a aldeia” ou “O inverno”, assim como é tocante testemunhar o amor que se solta de “Retrato de Vava” (uma Valentine grávida de si própria e de Chagall, porque nada é tão multiplicador e fecundo como o amor).
            E é por tudo isto que, hoje, desembaraçada das minhas arrogâncias juvenis, percebo porque Chagall é Grande. André Breton disse um dia que, com ele, “a metáfora entrou triunfante na pintura moderna”. Outros chamaram-lhe “O Poeta” (e não devem ter errado, as artes andam muitas vezes de mãos dadas).
            Chagall foi tudo isso e um fantástico contador de histórias ou um menino acomodado num prodigioso adulto.

Maria Vilas

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