Quando ouvi a minha professora de francês do décimo ano, profunda
conhecedora do que de melhor se produzia em arte, eleger como seu pintor
favorito Marc Chagall, senti-me quase traída na minha expectativa de que, na
sua resposta, trouxesse à luz mais um grande vulto da pintura moderna que eu
ainda não conhecesse (o que não era difícil…) e rasgasse com ele mais uma
janela na pequena “Oikos” dos meus conhecimentos. Mas, Marc Chagall?... Entre
Picasso, Dali, Monet, Turner ou John Millais, era Chagall que a fazia ajoelhar?
Bem, já com o travo a heresia a rondar-me os lábios, o que pensava era se teria
sido Chagall alguma vez capaz de assinar qualquer coisa para além daqueles
arabescos entre o feérico e o anárquico, fixados em tela em pinceladas infantis
ou pior, havia mesmo necessidade de convocar um adulto para um trabalho que uma
criança seria capaz de fazer?
Pois… o
que só mais tarde e algumas imersões de humildade depois, fui capaz de perceber
é que foi precisamente aquele talento de ver o mundo pelos olhos e o coração de
uma criança e assim o verter em tela, vitral, teto ou mosaicos que fizeram de
Marc Chagall um dos nomes maiores da pintura de sempre, não só da sua Rússia
Natal, mas do universo artístico mundial.
Quem
nunca ficou rendido à sinceridade e inocência que se desprendem dos desenhos
das crianças? Antes que alguém a ensine a socorrer-se de um grafite para
aprisionar primeiro as formas na folha em branco e só depois as encher de cor,
uma criança puxa sucessivamente da cor que pretende e é com ela que desenha
cada objeto, animal ou planta e este recurso instintivo e direto à cor, numa
técnica “dois em um” (desenho e coloração), confere ao que faz uma suavidade e
graça desarmantes. Uma criança sabe como ninguém agarrar as emoções ao papel e
é assim que os braços dos pais dão muitas vezes para dar duas voltas à cintura
dos filhos.
É real? Não, não
é, mas desde a invenção da fotografia que a pintura desinvestiu de copiar a
realidade.
E se não coincide
com a realidade, nada é tão honesto como o desenho de uma criança. São amadas,
são felizes? Tudo nos seus desenhos é risonho; o seu coração está amarfanhado
de dor? Também os bonecos a que dá vida delatam sombras. É por isto que psicólogos
e pedopsiquiatras, para aferir da sua saúde afetiva e mental, dedicam-lhes a mesma
atenção que um pneumologista às radiografias dos seus doentes.
Contudo,
toda esta sensibilidade se perde facilmente com a maturidade. Quem a consegue
preservar na idade adulta e a combina com o que nos falta na infância – a
perfeição nos pormenores, a precisão técnica, a riqueza das experiências
acumuladas – tem um dom raro e, claro, faz a diferença.
Tal como
Alfred Hitchcok no cinema não precisava de poisar o olhar por trás da câmara
para saber a porção de realidade que cabia em cada ângulo, também Chagall tinha
mentalmente delineado todo o trajeto do pincel na representação fiel da
realidade, mas era o reino combinado da imaginação e das suas memórias, o mundo
simbiótico dos provérbios judaicos e contos populares russos, da arte
folclórica da sua Pátria primeira e dos seus dois grandes e felizes amores (Bela
e Valentine Brodsky – “Vava” - que o resgatou das cinzas em que se afundou com
a morte da primeira) que o seduzia. Pintou também os seus fantasmas, terrores e
tristezas, em cores pardacentas, infelizes, anoitecidas, quando a infelicidade
o comeu como um bicho.
E aqui tocamos noutro ponto da sua
originalidade. Marc Chagall foi também um libertador cromático. A escolha das
cores obedecia a uma lógica - cheia de simbolismo -, mas puramente pessoal,
totalmente liberta do espartilho da realidade. Por isso não é difícil encontrar
nos seus quadros uma vaca azul ou um rosto verde. E onde já vimos o mesmo?…
Foi esse mundo deslumbrante de criação que nos deixou.
E é uma delícia limpar o olhar em obras como “Eu e a
aldeia” ou “O inverno”, assim como é tocante testemunhar o amor que se solta de
“Retrato de Vava” (uma Valentine grávida de si própria e de Chagall, porque
nada é tão multiplicador e fecundo como o amor).
E é por tudo isto que, hoje, desembaraçada
das minhas arrogâncias juvenis, percebo porque Chagall é Grande. André Breton
disse um dia que, com ele, “a metáfora entrou triunfante na pintura moderna”.
Outros chamaram-lhe “O Poeta” (e não devem ter errado, as artes andam muitas
vezes de mãos dadas).
Chagall
foi tudo isso e um fantástico contador de histórias ou um menino acomodado num
prodigioso adulto.
Maria Vilas
Sem comentários:
Enviar um comentário