Acordara brutalmente triste. O vento e a chuva chicoteavam
as vidraças, anunciando mais um dia sem história. Cansava-a já aquele ritual
matutino de se maquilhar. Olhava-se, longamente ao espelho, perguntando-se por que o faço ainda?
Havia uma grande desconformidade entre aquilo que projetava
e aquilo que todas as manhãs via ao espelho. Nunca ninguém a tinha olhado
assim, em estado puro, e pela primeira vez tinha mais pena do que medo.
A maquilhagem era o símbolo do disfarce que precisava de
usar há anos: com o patrão, com os colegas, com os amigos, com a família. Não
queria mais aquilo, queria ser ela.
Estava determinada. A primeira coisa que decidiu retirar foi
aquele sorriso de plástico, que punha em todas as ocasiões; depois sairia
também o fantástico ar de jovialidade e alegria disfarçada que todos lhe
gabavam. Sorriria apenas quando sentisse vontade disso.
Terminaria também com a base de mulher-mãe-empresária
modelo. A partir daquele dia, todos veriam as rugas da passagem dos anos, as
olheiras do cansaço acumulado, as irritações e os desabafos dos contratempos,
que aprendera a engolir em seco.
Estava plenamente consciente das consequências da sua
decisão. A repulsa dos olhares, a surpresa e as críticas. Até as comparações.
Sabia perfeitamente que algumas reações seriam cruéis, mas não havia volta a
dar. A maquilhagem não voltava para o rosto.
Não ignorava que aquela decisão era fruto do desencanto em
que vivia. Pior do que a lenta degradação da pujante beleza de outrora era o
abandono afetivo a que fora votada. As manifestações de amor eram insípidas e
de circunstância, o amor com que brindara os seus não tivera efeito boomerang e
perdera, por completo, as ilusões. O sucesso profissional enchia-lhe os bolsos,
mas não a alma.
Ainda não tinha saído de casa e já se sentia mais livre.
Deliciou-se com a reação das pessoas; a maioria totalmente previsível: a
surpresa, a preocupação, o riso escondido e escarninho, mas também a
interrogação sobre o porquê daquela mudança radical. Um até teve a ousadia de
lhe perguntar se estava bem.
Sorria com satisfação ao relembrar toda a panóplia de
reações que a ausência de maquilhagem no seu rosto suscitou. No entanto, nada a
tinha deixado tão satisfeita, intrigada e surpreendida como a reação de um
colega de trabalho, que raramente a cumprimentava e que sempre achou pouco
simpático. No final do horário de trabalho, ele abeirou-se da sua secretária,
sorriu-lhe de modo intenso e luminoso, e atirou: «Ficas tão bonita, quando és
apenas tu, Beatriz!»
GAVB
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