A
arrecadação é aquele lugar lúgubre e enfadonho onde despejamos toda a tralha
(outrora objetos valiosos, úteis e adorados), de que já não precisamos ou
deixamos de gostar e cujo destino final será o lixo. Só pudor ou uma certa
nostalgia de alegres momentos passados nos impedem de os mandar definitivamente
para o caixote sem retorno.
Quando
deixamos alguma caixa na arrecadação sabemos perfeitamente que as hipóteses
daqueles objetos voltarem à vida são ínfimas. Haverá um tempo em que já nem na
arrecadação terão lugar.
Fazemos
o mesmo com muitas pessoas que fizeram parte das nossas vidas. E o mais alarmante
é que o fazemos com uma lucidez e frieza quase sinistras. Não precisam de ser
propriamente velhos ou apenas companheiros circunstanciais do nosso trajeto
pela vida; basta que tenham perdido a piada, isto é, a utilidade. Em alguns
casos, a rapidez com que mastigamos e cuspimos seres humanos das nossas vidas é
tão grande que até assusta a quem só assiste.
Ocasionalmente,
hoje, falava com uma pessoa amiga quando veio à conversa o nome de um amigo
comum. Homem cultíssimo, admirado justamente pelos colegas, teve o azar de
encontrar a doença, há alguns meses. Logo ali perdeu grande parte da corte.
Tentou reabilitar-se o melhor que soube, mas a doença roubara-lhe o melhor de
si. Hoje, os amigos fogem dele, desconsideram-no, são intolerantes com as suas
falhas. Afinal, o génio já não era tão genial, a sua debilitada não lhe serve
de atenuante e a memória de cada um arquivou-o na arrecadação, por uns tempos,
porque o carimbo final já está cravado na caixa.
Perscruto
com atenção a memória e reconheço outros casos onde nem foi preciso nenhuma
doença conveniente para que um ser humano desaparecesse do mapa das pessoas
interessantes.
Às vezes,
dou comigo a abominar esta expressão [“pessoas interessantes”]; soa-me quase sempre
a baba de pessoas interesseiras.
Podia
lembrar-vos que o Universo quase sempre se encarrega de proporcionar aos
arquivadores de gente na arrecadação uma experiência inolvidável na arrecadação
da vida, mas prefiro dizer-vos que tratar os Outros como tralha “apenas” nos
diminui (imenso) como pessoas e nos tira oportunidades únicas de sermos
felizes, porque cada pessoa é um tesouro maravilhoso por descobrir. Muitas vezes
ele só está escondido entre o pó e as teias de aranha de uma qualquer miserável
arrecadação.
Gabriel
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