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domingo, 18 de março de 2018

DEIXEI UM AMIGO NA ARRECADAÇÃO



A arrecadação é aquele lugar lúgubre e enfadonho onde despejamos toda a tralha (outrora objetos valiosos, úteis e adorados), de que já não precisamos ou deixamos de gostar e cujo destino final será o lixo. Só pudor ou uma certa nostalgia de alegres momentos passados nos impedem de os mandar definitivamente para o caixote sem retorno.
Quando deixamos alguma caixa na arrecadação sabemos perfeitamente que as hipóteses daqueles objetos voltarem à vida são ínfimas. Haverá um tempo em que já nem na arrecadação terão lugar.

Fazemos o mesmo com muitas pessoas que fizeram parte das nossas vidas. E o mais alarmante é que o fazemos com uma lucidez e frieza quase sinistras. Não precisam de ser propriamente velhos ou apenas companheiros circunstanciais do nosso trajeto pela vida; basta que tenham perdido a piada, isto é, a utilidade. Em alguns casos, a rapidez com que mastigamos e cuspimos seres humanos das nossas vidas é tão grande que até assusta a quem só assiste.

Ocasionalmente, hoje, falava com uma pessoa amiga quando veio à conversa o nome de um amigo comum. Homem cultíssimo, admirado justamente pelos colegas, teve o azar de encontrar a doença, há alguns meses. Logo ali perdeu grande parte da corte. Tentou reabilitar-se o melhor que soube, mas a doença roubara-lhe o melhor de si. Hoje, os amigos fogem dele, desconsideram-no, são intolerantes com as suas falhas. Afinal, o génio já não era tão genial, a sua debilitada não lhe serve de atenuante e a memória de cada um arquivou-o na arrecadação, por uns tempos, porque o carimbo final já está cravado na caixa.

Perscruto com atenção a memória e reconheço outros casos onde nem foi preciso nenhuma doença conveniente para que um ser humano desaparecesse do mapa das pessoas interessantes.
Às vezes, dou comigo a abominar esta expressão [“pessoas interessantes”]; soa-me quase sempre a baba de pessoas interesseiras.
Podia lembrar-vos que o Universo quase sempre se encarrega de proporcionar aos arquivadores de gente na arrecadação uma experiência inolvidável na arrecadação da vida, mas prefiro dizer-vos que tratar os Outros como tralha “apenas” nos diminui (imenso) como pessoas e nos tira oportunidades únicas de sermos felizes, porque cada pessoa é um tesouro maravilhoso por descobrir. Muitas vezes ele só está escondido entre o pó e as teias de aranha de uma qualquer miserável arrecadação.
Gabriel  

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