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segunda-feira, 26 de março de 2018

JÁ POSSO FALAR?!



Ricardo já tinha repetido aquele pedido desesperado e impaciente três vezes, mas a mãe não lhe dava a palavra. Furiosamente continuava debitar as acusações de sempre sobre as notas escolares, que nunca a satisfaziam.
O filho tentou interrompê-la, porque tinha várias coisas a dizer em sua defesa, além de já estar cansado daquela saraivada de acusações, a que já perdera a conta. No entanto, acabou por desistir de tentar ser ouvido. Esperou que o cansaço derrotasse aquela fúria, engoliu em seco o inevitável «Ouviste bem o que estou a dizer?!» e disse com calma:

- Mãe, eu estive atento nas aulas, estudei e até melhorei as notas em relação ao período passado, mas tu nunca estás satisfeita!
   Ficou surpreendida, mas disparou à mesma a resposta formatada que tinha pensado.
 -Não quero saber! Tens de tirar melhores notas. Tens capacidades para mais! Esforça-te mais!
  Ricardo desistiu de ripostar, de a tentar convencer das suas razões, porque a mãe, simplesmente, não o ouvia. Que lhe adiantava falar se ela não o ouvia?!
        
No dia seguinte seria diferente… ia ter com o pai. Como a relação deles mudara! Agora conversavam. Falavam de tudo um pouco e sentia-se ouvido e confiante.
         A mudança ocorrera, no final do período passado, quando o pai também lhe viera com a conversa das notas, durante um jantar. Criticava-o enquanto mandava uns sms urgentes (não são todos?) e dava uns likes nas fotos dumas amigas do facebook.

Aquilo irritou-o profundamente. Achou uma grandessíssima falta de respeito e resolveu pôr o pai na ordem.
- Importas-te de desligar o telemóvel e ouvir o que tenho para te dizer?!
Sacudido por aquela bofetada de luva branca, o pai sorriu sem graça e, envergonhado, desligou o telemóvel. Ricardo aproveitou para lhe dizer quanto o magoava que durante os almoços que tomavam juntos o pai estivesse sempre atento ao telemóvel, o que fazia que não prestasse qualquer atenção ao que o filho dizia. Por isso esquecia-se com frequência dos seus pedidos, dos seus argumentos e até do que haviam combinado.

Ricardo explicou ao pai que se esforçava na escola, tendo subido sempre as suas notas, mas que tinha as suas limitações, que nem sempre conseguia vencer. Além do mais, para ele, o mais importante era perceber aquilo que lhe ensinavam e a sua utilidade prática e não se tirava um cinco ou um quatro.
Pela primeira vez em anos, o pai ouviu-o com atenção. Estava comovido com a lição que o filho lhe dera. Os dois tomaram, em conjunto, algumas resoluções. A partir dali, os telemóveis seriam banidos durante os almoços e o tema das notas só entraria na conversa se o Ricardo o invocasse.

A relação entre pai e filho melhorou imenso. Falavam muitas vezes durante o dia; trocavam confidências e passaram a confiar um no outro. De vez em quando, Ricardo provocava o pai:
- Não queres saber que nota tirei a Geografia?
O pai costumava retorquir-lhe com aquele
- Diz-me antes o que aprendeste nas últimas duas semanas?
E a conversa fluía normalmente. O pai aprendera a olhá-lo nos olhos, a ouvi-lo, a querer saber dele para além das notas. No entanto, era ao pai que ele contava em primeiro lugar as notas que tirava. Fazia-o com gosto e responsabilidade, mas também com reconhecimento.

Há meses que Ricardo deixara de discutir com o pai. Nunca mais tivera necessidade de lhe dizer «Já posso falar?!», porque podia mesmo falar e, sobretudo, ser ouvido.

Os filhos não ouvem, falam! Nós é que os temos de ouvir. Olhá-los nos olhos e perceber o que está para além de uma nota, um mau comportamento, uma desatenção permanente. 
O que conta para eles é o exemplo.
Os filhos são um grande teste à nossa capacidade de amar, porque o amor também exige inteligência e humildade.

Gabriel

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