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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O LOUCO ANO 20


 Um ano dominado pelo medo, pelo sofrimento, pela doença e pela morte é objetivamente um ano mau. Um ano que deixa marcas, para alguns definitivas, porque a morte dos que amamos é uma cicatriz indisfarçável. 

Como cegos, tacteamos uma estrada lenta e cheia de armadilhas, onde ainda estaremos por mais tempo. Reiniciar a vida em modo de segurança foi uma obrigação que só engolimos em estado de emergência, porque nos esquecemos há muitos anos do essencial. 

Tivemos de voar em contramão, com a segurança de uma máscara, desconfiando de qualquer impureza microscópica, temendo abraços verdadeiros, negando beijos autênticos. 

Um vírus com cara de sereia enganou-nos com perfídia e deixou-nos em confusão e discórdia. Pior que as mortes é a constante sensação de vulnerabilidade, o sequestro da confiança, o confinamento da alegria.

 

Hoje, os desejos de felizes realizações para o novo ano são temerosos e retóricos, porque a tempestade ainda nos sorri em desafio.

Abrunhosa canta que não estamos sós na tempestade, pois há anjos de verdade que nos enchem a angústia de esperança e desembaciam os olhos salgados, mas a verdade é que o Natal teve menos pessoas à mesa, pessoas que não voltaremos a ver e nos deixaram definitivamente mais sós e mais pobres.

Por muito que nos custe, e custa, somos apenas mais um elemento, renovamo-nos sem permanecer. Há certamente beleza no despontar de uma nova vida, belas promessas de felicidade em sorrisos jovens, mas este ano 20 só me deixa a memória de um vento louco de outono que depenou belas árvores cuja beleza eu ainda não tinha admirado por completo.

GAVB


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

COMO É QUE O CEO DA TAP GANHA CINCO VEZES MAIS QUE O PRESIDENTE?

 


Se até há pouco tempo a pergunta não tinha legitimidade porque a TAP não era uma empresa totalmente detida pelo Estado, agora que são os contribuintes portugueses a suportar, por inteiro, os salários e a enorme peso da dívida da TAP faz todo o sentido questionar os salários da comissão executiva da TAP, especialmente num momento em que há despedimentos e cortes de 20% nos salários de quem fica.

O problema já nem é a falta de vergonha de quem propõe ou de quem acha bem ser aumentado num período como este, mas de não ser posssível haver um mecanismo legal para impedir tal indecência ética.

CEO DA TAP DUPLICA SALÁRIO 

Não basta a Marcelo escrever ao ministro, nem basta a indignação de Rui Rio. É preciso ir mais longe e rapidamente. 

Na minha opinião, talvez estivesse na altura de moralizar definitivamente os salários nas empresas públicas, em Portugal. o salário mais alto pago pelo estado português deve ser o do Presidente da República e ponto final.

Todo e qualquer outro cargo é inferior. Seja ele presidente da TAP ou outra qualquer empresa pública. 


Os administradores não estão interessados em continuar? É baixo o salário? Têm bom caminho: apresentam a demissão. Se o ministro que manda na TAP recebe 4200 euros por mês, nada justifica que um seu subordinado receba 35000 euros, ou seja, mais de oito vezes esse valor.


SALÁRIOS DOS POLÍTICOS PORTUGUESES

Se um primeiro-ministro consegue encontrar gente com valor que queira ser ministro, também consegue encontrar bons gestores que recebam um salário bem menor, como se consegue encontrar bons juízes, bons cirurgiões ou bons técnicos.

Portugal tem de pagar os salários que pode e não os salários que outras empresas do mercado internacional pagam. Por alguma razão não houve interessado em comprar a TAP e foi o governo que teve de assumir os encargos.

A TAP está em coma e não é nada certo que se consiga salvar. Os salários de quem comanda são um sinal evidentemente que se dá aos trabalhadores da TAP. Se o sinal a dar é pagar salários de 35 mil euros ao presidente da comissão executiva, num momento de crise aguda, em que os contribuintes precisaram de se chegar à frente, então mais vale "enterrar" já o projeto de viabilidade económica da TAP.

Depois as pessoas do PS não percebema razão do Chega de Ventura crescer a olhos vistos. Claro que cresce, pois as decisões de quem governa são tão inexplicáveis e eticamente indecentes que até um Ventura a meio gás «chega» para titar disso dividendos eleitorais.

GAVB

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

OS POBREZINHOS

 


Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.


Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".

António Lobo Antunes

domingo, 27 de dezembro de 2020

AMO A VIDA


 

Amo a vida!

Que chega com a força

Magnífica de uma onda

E o sorriso luminoso

De um amigo.

 

Saboreio o calor

Dos abraços demorados,

A bem-humorada amizade

Da Natureza espreguiçando-se

Despudoradamente ao sol.

 

Enquanto a lembrança

Memora um poema de Neruda

Imagino o sol a despedir-se do dia

Num concerto silencioso de cores,

Beleza e vida em Hagia Sophia.

 

Contemplo as estrelas

Que Van Gogh escreveu no céu

E, subitamente a brisa sopra doce

Uns versos de Benedetti

“Não te rendas, por favor, Não cedas

Porque não estás só!”

 

E nesse instante, ao longe,

O faroleiro acende a lanterna

Iluminando o náufrago sem alento.

Breve é já o tempo que os separa.

 

Apetece-me abraçá-los,

Mergulhar na humanidade

Ofegante que transpiram,

Mas limito-me

A desenhar na noite

O meu sorriso agradecido.

 


Amo a vida!

Com a sabedoria de um amor antigo,

Com a intensidade de um amor de mãe.


gavb



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

OS ALUNOS TAMBÉM PROTESTAM, MAS AGORA NINGUÉM QUER SABER DO "SUPERIOR INTERESSE DOS ALUNOS"

 

Se os alunos não têm professores para vigiar os seus exames, porque os professores ameaçam com um greve, o país empertiga-se, os políticos revelam-se autoritários, os pais indignam-se, que não pode ser. no entanto, se os alunos não tem aulas porque deixou de haver quem os queira ensinar, os jornais não se interessam, os políticos nem param para olhar e os encarregados de educação não querem saber.

Onde pára o famoso líder das associações de pais, quando passam quatro meses desde que o ano letivo começou e há milhares de alunos sem aulas? Não quer saber. Provavelmente já nem tem filhos a estudar, nem nunca os teve numa escola pública. Quer lá ele saber dos pobres coitados, que nunca aparecerão na televisão nem lhe darão audiências. Essa coisa dos "superiores interesses do alunos" era apenas para alguns que já tinham interesses muitos superiores ao comum dos alunos. 

Hoje um grupo de alunos do ensino secundário protestou, em Lisboa, em frente ao Ministério da Educação por mais professores, melhores infraestruturas e direito a associação. 

Alunos protestam em lisboa contra o Ministério da Educação

E quem lhes ligou alguma coisa? Um jornal, numa notícia perdida entre tantas outras. Porque apesar de estar prometida uma chuva de dinheiro para 2021, as escolas não são nenhuma TAP, os professores são acessórios para a educação dos jovens e o direito a associação só é posível para quem é militante do PCP.

O título da notícia é curioso "Alunos pedem mais condições", como se tivessem algumas, sem professores, sem aulas, sem salas condignas.

Os alunos, tal como os porfessores e os auxiliares da ação educativa não têm interesse nenhum para quem governa ou faz notícia, a não ser que dê audiência, votos ou influência. 

Quatro meses passados desde do início do ano letivo, ou seja, 40% das aulas do ano cumprido, quem quer saber das matérias por lecionar ou das aprendizagens por fazer? Quase ninguém! Entretanto, se tivesse havido a possiblidade das escolas escolherem, para determinadas turmas, aulas não presenciais, muito deste problema seria mitigado, mas isso da Educação é assunto que não interessa debater.

Ontem, numa reunião online com professores e alunos romenos, austriacos, gregos, bulgaros e italianos, no âmbito do Projeto Erasmus +, reparei que apenas os alunos portugueses não estavam em casa, a ter aulas online. Portugal está com o número de mortos e de novos casos de Covid-19 / Dia que todos nós sabemos, mas na Educação está tudo bem, porque em muitas escolas já nem se faz a contabilidade dos alunos que testaram positivo, nem dos que estão em isolamento em casa.

Até morrer um aluno, o que se passa nas escolas com o Covid 19, com as reuniões presenciais sem sentido, com a opacidade dos números da pandemia não é assunto. 

No caso do ucraniano assassinado pelo SEF demorou nove meses. Nas escolas quanto irá demorar? Pouco importa, enquanto não morrer nenhum aluno em combate, não haverá debate, porque quanto a "profes", esses morrem todos os dias, sobretudo porque são velhinhos, coitados. 

GAVB


sábado, 12 de dezembro de 2020

O GOVERNO DESCOBRIU QUE PRECISA DE CONTRATAR MÉDICOS


 O governo português abriu 462 vagas para contratar médicos especialistas. Não porque precise deles para combater a pandemia, mas porque o sistema nacional de saúde, já não aguentava mais tal carestia de meios. 

Ao fim de quase seis anos de governo PS, apoiado pelo BE e pelo PCP, as autoridades portuguesas descobrem que lhe faltam quase 500 médicos no SNS. Incrível o tamanho da hipocrisia política!

Depois de anos a deixar sair médicos e enfermeiros do SNS, sobrecarregando até à exaustão aquelas que recusaram abandonar os seus doentes, o governo acena aos médicos do privado com a contratação pública. 

O mais certo é grande parte das vagas ficarem por preencher, porque trabalhar para o Estado português deixou de ser motivo de orgulho, para muito profissionais de saúde, tais foram as desconsiderações, falta de incentivos reais e parcas condições de trabalho que o ministério da saúde dedicou (e ainda dedica) a muitos profissionais. 


Hoje, uma parte significa dos médicos e enfermeiros formados em Portugal não querem trabalhar para o SNS porque descreem de quem os dirige e governa, porque sabem que jamais serão recompensados pelo seu esforço e dedicação, porque não veem grande perspetiva de carreira dentro do Estado. 


É um sintoma preocupante de doença do sistema público português quando nem a carreira de médico em funções públicas é suficientemente atrativa para um jovem licenciado. 

A diabolização daqueles que serviram (muitos ainda servem) o Estado português, nos hospitais, nas esquadras, nas escolas, nas repartições começa a produzir os seus nefastos efeitos e tem dois grandes responsáveis: os partidos políticos, que não souberem nem governar nem defender médicos, professores, polícias, magistrados, e grande parte da população (bem instrumentalizada por partidos e fazedores de opinião) que foi sugerindo que o serviço público era medíocre e dispensável. Não era, mas está a caminho.

Qualquer cidadão minimamente consciente sabe perfeitamente que são necessários bons médicos, bons professores, bons magistrados, bons polícias. Como sabem que não podemos achincalhar e enganar profissionais competentes e sérios, porque, por mais amor que tenham ao seu país e aos seus concidadãos, eles também têm dignidade.

A ministra da saúde quer contratar cinco centenas de médicos especialistas. Ela sabe que provavelmente não o conseguirá. Grande parte da culpa não é dela, mas será mais uma vez ela a pagar a fatura do insucesso. 

Tanta vezes médicos  enfermeiros lhe pediram uma audiência, reclamaram por ajuda e obtiveram uma mão cheia de nada. Agora são eles que não têm tempo para atender um governo doente e uma ministra cansada e sem soluções para o SNS. Talvez ela perceba finalmente que os doentes não se tratam com finais da Champions em Lisboa.

GAVB


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

FIQUEI COM TANTO ÓDIO A PORTUGAL

 


É obviamente uma frase forte, que atinge cada português, mas tem justificação na dor de uma mulher que viu o seu marido ser assassinado [não encontro outro termo que defina melhor o que aconteceu há nove meses] numa sala do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em Lisboa. 

Lhor Homenyuk era um homem como tantos outros que tentam obter autorização para entrar. Não era um criminoso, um assassino, um terrorista. Isolado, algemado, agredido, Lhor teve uma morte lenta e agonizante, como refere o relatório da autópsia.

Nove meses volvidos, as autoridades portuguesas, com o Presidente da República à cabeça, começam a acordar para a gravidade da situação. Só agora Marcelo descobrir que "se há um pecado mortal do sistema, este SEF não serve". 

Caro Marcelo, não há um pecado mortal do sistema, mas houve um crime! Cometido por inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras contra um cidadão estrangeiro, sem qualquer justificação. 

Nove meses para apurar factos e responsabilidades daquilo que parece óbvio? Muita paciência tem tido o governo ucraniano com as autoridades portuguesas, que, a cada dia que passa, mais se enterram numa culpa fatal.

Claro que agora, passados nove meses sem os culpados condenados, a culpa é de quem dirige, governa e preside. Não só a diretora do SEF, mas também o ministro da administração interna, Eduardo Cabrita, e de quem o mantém [António Costa] porque esta mancha sobre o nome de Portugal é cada vez mais negra e profunda; e de quem não percebeu que o nome do país chafurdava na lama da xenofobia e da violência policial, aos olhos incrédulos dos cidadãos nacionais e estrangeiros - Marcelo Rebelo de Sousa.

Em vez de discutir quem tem mais culpa, cabe ao Presidente pegar na esfregona e começar a limpar a porcaria. Se começar por cima, ou seja, no ministro, é certo que rapidamente se chegará à condenação dos autores materiais.

É cortante ter de entender as razões de quem rasga o silêncio da dor com este "Fiquei com tanto ódio a Portugal".    

 Gabriel Vilas Boas

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

ALGUMA VEZ TE MENTI?

 

Conhecemo-nos há muitos anos na festa do Avante metidos numa tenda como as cartomantes a autografar romances e a comer a poeira internacionalista da Ajuda. 
Lia-te desde a adolescência. Recordo-me da Seara de Vento com a capa do pintor Vespeira, de encontrar alguns dos teus poemas na antologia que Jorge de Sena fez das líricas portuguesas. 
Encontrámo-nos no pó. Gostei do teu sorriso. Ficámos amigos. 

Jantávamos em tabernas do Bairro Alto e em restaurantes chineses, iluminavas o shop-suey com os teus olhinhos divertidos, passeávamos noite fora pela Praça das Flores e às quatro, cinco, seis sete da manhã deixava-te no Cais do Sodré porque nunca consentiste que te levasse ao Seixal, e eu ficava a ver-te afastar de boné de guarda-redes na cabeça na direção do primeiro barco ou do último tasco, onde os travestis de voz subitamente grossa escondiam a sementeira da barba sob um reforço de cremes. 

Tu falavas e eu ouvia. Às vezes abria a boca para perguntar
- Tens escrito?
tu respondias depressa de mais
-Claro que sim

e eu sabia que não era verdade, que não trabalhavas, que talvez de tempos a tempos te sentasses à mesa em Santiago, diante do papel, mas havia qualquer coisa, não sei bem o quê, que te impedia de escrever, uma amargura que o pudor não deixava revelar, a dor de não te darem a importância e o lugar que eram os teus, o reconhecimento que neste país de oportunidades e de modas ofereciam a outros que não tinham o talento de começar uma história com a frase soberba Antigamente o largo era o centro do mundo, oito palavras sábias e mágicas que valem centenas de páginas que para aí se publicam.
De maneira que quando chegava a Feira do Livro, postava-me junto à barraquinha do teu editor, arengava às pessoas para comprarem os teus livros, agarrava-as pelo braço, mostrava-lhes o Cerromaior, mostrava-lhes a Aldeia Nova no tom dos vendedores de xarope para o cancro da Feira da Ladra, e ao fim do dia descíamos o parque, eu sempre a gritar

- Uma tarde estava eu na Praça da Liberdade chega um cavalheiro à minha beira e diz. Você está medalhado. Medalhado eu que não pratico ciclismo atletismo ou alpinismo? Medalhado sim porque com os romances do Manuel você tirou a bicha do corpo daquela criança, aquela maldita que a roía

e tu a rires ao meu lado até o crepúsculo se fechar sobre nós como uma redoma em cima de dois santinhos de barro, cada qual com o seu cálice de ginja num balcão dos Restauradores que é onde os santos se abastecem para a travessia da noite. De cotovelos no tampo de pau cheio de riscos e de auréolas roxas de copos de vinho perguntava-te
- Tens escrito?
e tu
- Claro que sim
e eu
- A sério?
e tu de pálpebras apertadas muito convicto
- Alguma vez te menti?

Parece que esta semana houve imensa gente a visitar-te. Eu não. Primeiro porque seria de mau tom perguntar se tens escrito diante de uma data de estranhos. E segundo porque fiquei perto do telefone à espera de ouvir a tua voz do outro lado a convidar-me para o nascer do sol na Ribeira, sobre as chávenas de cacau da madrugada.
Ainda aqui estou ouviste? E mesmo que me garantam que te levaram dentro de uma caixa para Santiago não saio do pé do aparelho já que sei (foi sempre assim) que daqui a nada vais chamar-me.

António Lobo Antunes 

* (conto dedicado à memória de Manuel da Fonseca)


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

NUNCA FUI COMO TODOS




Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse


Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só..

Florbela Espanca

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

MARCELO DIZ QUE É O MESMO. E OS PORTUGUESES QUEREM O MESMO TIPO DE PRESIDENTE?


    
    Finalmente Marcelo Rebelo de Sousa apresentou a sua recandidatura à presidência da república. Esta era uma ação esperada assim como é esperado que Marcelo precise de fazer pouca campanha para ser reeleito. 

    Marcelo é o melhor que Portugal podia ter, no momento em que vive, ou é simplesmente o melhor dos candidatos? 

Acho que para responder a essa pergunta é preciso fazer um balanço do que foi o 1.º mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. 

Que nota daria o prof. Marcelo ao presidente Marcelo?

Marcelo aproximou muitíssimo o Presidente da população. Porventura até demasiado, de maneira que em certos momentos pareceu mais popularucho do que popular. E quando se apercebeu disso, algum do encanto já se tinha desvanecido. No início do seu mandato, Marcelo criou a ilusão que finalmente a magistratura de influência do Presidente ia ser suficientemente forte para fazer diferente: os mais desprotegidos iam ter o seu conforto mínimo garantido, os sem-abrigo desapareceriam, as desigualdades gritantes seriam atenuadas, os mais velhos ganhariam o respeito e a consideração da sociedade. Não foi bem isso que aconteceu.

 

Marcelo cooperou com o governo, mas não trouxe à governação socialista o toque de Midas que ele esperava, por que há problemas estruturais que demoram anos a resolver e sobretudo exigem gente capaz de medidas corajosas. E estas duas premissas não estão garantidas com o governo de António Costa.

    Muitas das intenções de Marcelo ficaram-se apenas por intenções e houve momentos de fracasso claro. Marcelo quis estar próximo do governo, assumindo uma espécie de governação em co-autoria, por isso são também dele o fracasso na maneira como foi gerida a resposta aos grandes incêndios de 2017 e o alastrar da pandemia da COVID-19, no Outono de 2020. 

    O Presidente não foi enérgico, determinado e exigente com o governo como devia. Preferia marcar posição em Tancos, que teve muito mais de anedótico do que de grave.

Ao recandidatar-se, Marcelo disse fazê-lo por três razões:

"Porque temos uma pandemia a enfrentar. Porque temos uma crise económica e social para vencer. Porque temos uma oportunidade única de, para além de vencer a crise, mudar para melhor Portugal, na economia, mas sobretudo, no nosso dia a dia, reforçando a nossa coesão social e territorial."

    Ao ler isto, pensei que Marcelo se estava a candidatar a governo e não a presidente. Não é ele que governará e por isso seria interessante que Marcelo dissesse como pretende ajudar a governar melhor, ou seja, que grau de exigência terá com o futuro governo, que até pode ser uma geringonça de Direita. 

Para já deu um bom sinal, ao vetar a lei da contratação pública, mas o seu veto parece quase um não-assunto. É pena, porque mexe com muito dinheiro e mostra que Marcelo não acha bem o modo como o PS pretende aligeirar os procedimentos de controle de compras públicas do Estado.

De resto, Marcelo utilizou os clássicos chavões de qualquer candidatura presidencial ou não:

"combater a pobreza e a exclusão, promovendo o emprego, com investimento, crescimento e melhor distribuição de riqueza".

O que o povo espera de um presidente que acaba mandato é um pouco mais. É que lhe explique o que falhou em cinco anos de presidência para que estes assuntos continuem a ser tema de campanha. Ou houve falhanço ou estes não são assuntos da sua competência.

Gabriel Vilas Boas

domingo, 6 de dezembro de 2020

DIGNIDADE SELETIVA

 


Este tema foi levantado, no início desta semana, pelo ministro francês da administração interna, Gerald Darmanin, quando atacou dois dos mais importantes jogadores da seleção gaulesa de futebol - Antoine Griezmann (Barcelona) e Kylian Mbappé (Paris Saint-Germain) por terem condenado veementemente (e bem) a  violenta ação da polícia francesa na prisão de um produtor musical negro e terem-se feito esquecidos quando 98 polícias ficaram feridos, ao tentar controlar um manifestação contra a nova lei de segurança, que o governo quer implementar.

O Racismo é a discriminação baseada na cor e não na cor negra. É tão digno um produtor musical negro como um polícia branco. E depois há a lei a ordem, que é preciso respeitar, mesmo que não concordemos com ela, até porque está assegurado o direito ao protesto, mas não à violência nem à dignidade seletiva.

Num país democrático até as leis são revertíveis, basta elegermos alguém que esteja disposto a isso. A violência é má. Não tem "mas", porque tem alternativa. A dignidade do ser humano é um bem absoluto. Não há dignidade negra nem branca ou amarela. Muito menos dignidade famosa ou anónima, rica ou pobre.

A maior tristeza que este Tempo me causa é a tendência para tomarmos atitudes cívicas ou públicas tendo como principal objetivo sermos notados, participarmos numa espécie de eleição de gente cool, preocupada, digna e decente. 

Não há mal nenhum em que a nossa posição seja pública, o que é perverso e egoísta é fazê-lo porque fica bem, porque queremos tirar dividendos disso. Seria bom que fosse público, quando fosse difícil de assumir para nós, e privado, quando a bendita da nossa imagem pudesse retirar disso qualquer benefício.

Esta preocupação com a imagem está a matar uma geração e um tempo tão capaz e tão inteligente, que dá pena ver tanta boa vontade e altruísmo cair aos pés da eterna vaidade.

Como diria Al Pacino no imortal "Advogado do Diabo", 

A Vaidade é o meu defeito predileto. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

EDUARDO LOURENÇO AMOU PORTUGAL COM UMA INTELIGÊNCIA SUBLIME





«Nação pequena que foi maior do que os deuses em geral o permitem, Portugal precisa dessa espécie de delírio manso, desse sonho acordado que, às vezes, se assemelha ao dos videntes (Voyants no sentido de Rimbaud) e, outras, à pura inconsciência, para estar à altura de si mesmo. 


Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho. 
Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.»

"Portugal - identidade e imagem" in "Nós e a Europa ou as duas razões", Eduardo Lourenço 


NOTA: Eduardo Lourenço morreu no dia seguinte ao da comemoração da morte do poeta que mais amava e admirava (Fernando Pessoa) e no dia em que passam 380 anos que Portugal recuperou a sua independência e a sua identidade enquanto povo. Profundamente simbólico.


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MIGUEL TORGA CHORA A MORTE DE FERNANDO PESSOA


“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.”


Miguel Torga, in Diário I (3-12-1935)


domingo, 29 de novembro de 2020

SOU UM MENINO CUJO ENVELOPE SE GASTOU

A Velhice

Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. 

Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica, desde o inimitável Fernando da Conceição da Cruz, o Pardalito do Bairro da Liberdade ao glorioso Domiciano Barrocal Gomes Cavém passando por José Pinto de Carvalho Águas, o Grande Capitão e Mário Esteves Coluna, o Monstro, que afirmou numa entrevista ser o Victor Macture dos estádios. 

A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais. 


Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade.
Ou internam-me no Meu Lar, Recebe Idosos Inválidos & Convalescentes a fim de passar as tardes à janela em casaco de pijama, num poltrona de orelhas com os bolsos cheios de palitos, capicuas e migalhas de bolacha Maria, visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de amêndoas. 
Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heroicos, cravavam nos gelos polares. Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com enorme telefonia à cabeceira a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou 
    - Que lindo rádio que a senhora tem!
    E ela num suspiro de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e coquete
   - Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô que viesse fazer uma festa à cama. ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos almanaques da Bertrand do sótão organizados pela Sra. Dona Maria Fernandes Costa e de escrever e de escrever nas soluções, quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa. 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
António Lobo Antunes

sábado, 28 de novembro de 2020

PASSAR OS CONTRATADOS A EFETIVOS RESOLVERIA O PROBLEMA DA FALTA DE PROFESSORES?

 


Filinto Lima acredita que sim! Todavia é possível que não seja bem assim! O grande trunfo desta medida seria oferecer aos professores contratados uma garantia de emprego a longo prazo, mas acredito que isso não seja suficiente, pois manter-se-iam os dois grandes obstáculos que tornam a profissão de professor tão pouco atrativa entre os jovens.

O primeiro obstáculo é a questão monetária. Um professor que entra na carreira pouco mais ganha que um professor contratado. Ora, não são mais 100 euros que levarão uma professora de Penafiel a fazer as malas e a trabalhar em Sintra. Depois de fazer as contas, facilmente chegaria à conclusão que para manter o mesmo nível de vida que um salário mínimo lhe proporciona perto de casa precisar de ganhar bem mais do que o Estado lhe promete oferecer. O mais certo seria pagar para trabalhar, ficar longe da família e aumentar os encargos indiretos. 

Outra questão é o da valorização social da profissão. Os jovens não seguem os cursos de educação apenas porque percecionam que não estes não oferecem grandes saídas profissionais. Eles veem todos os dias o trabalho dos seus professores, o modo como muitos pais os desconsideram, a falta de respeito com que as suas opiniões são deliberadamente ignoradas. Eles observam a desilusão cravada nos olhos de quem os ensina e sabem que não querem ir por ali. 


Faltam professores em Portugal, mas não a todo o tipo de alunos. Faltam professores, sobretudo, aos alunos pobres. Alunos cujos pais não têm voz nem poder. Faltam professores às famílias que ainda não perceberam que a Escola, uma boa escola pública, é o único passaporte que têm para subir socialmente. 

Hoje a comunidade docente está muda e cansada. Espera que o tempo passe, sem contaminações, até à reforma. Deixou de lutar porque já não acredita na luta e porque sente que luta por gente ingrata. 

A Escola pública continuará a ter bons professores e bons alunos, mas estes serão cada vez menos. Serão apresentados como troféus do poder político, uma espécie de heróis modernos, e servirão apenas para legitimar o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres. Tal como acontece já um pouco com os médicos, os professores terão apenas boas condições de trabalho, mas não remuneratórias, nos colégios, tornando-se uma espécie de proletariado dos ricos.

A sociedade será mais desigual porque a Escola se torna, a cada dia que passa, mais desigual.

Portugal produz riqueza suficiente para que este não seja o caminho, mas a teia está de tal modo bem montada, que serão os mais prejudicados a defendê-la, com unhas e dentes, e a executá-la, em parte. 

Um país que se preze, que queira ter orgulho em si, tem de querer uma escola pública de qualidade. Esta só se consegue com bons professores. Estes têm de se sentir considerados, justamente remunerados e livres nas suas decisões.

GAVB

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

AD10S, DIEGO, O MAIS BELO DEUS DO OLIMPO DO FUTEBOL



Maradona foi uma espécie de Che Guevara do futebol.
O herói romântico que obrigou milhões a apaixonarem-se pelo futebol. Maradona foi um génio deste fabuloso desporto porque a sua relação com a bola era mágica e fazia-nos sonhar. Com ele, passou a existir alguém que nos punha no corpo e na alma um sorriso de prazer ao ver um jogo de futebol.

FABULOSO, GÉNIO, MÁGICO... tudo parece pouco para definir o mais brilhante jogador que vi jogar.



Maradona não foi um jogador feito pelo marketing porque era tão rebelde, tão puro, tão disruptivo que foi o marketing que teve de se ajustar a ele.

Além das fintas, dos golos, dos passes, da magia com que embelezava cada ação em campo, Maradona empunhava outras bandeiras, apesar de ser o deus mais imperfeito da galáxia. 

Sem pejo, um dia afirmou: "Fui, sou e serei sempre um drogado!" A droga embaciou-lhe a apoteose, mas o não suficiente para lhe tirar a lugar no Olimpo.


Uma das facetas que mais admirava em Diego Armando Maradona era a coragem com que afrontava os poderosos. No futebol e fora dele. Um pouco como Che, apenas com a bola nos pés, conquistou quase sozinho o Mundial de 86 para a sua amada Argentina; enfrentou e venceu os poderosos clubes do norte de Itália (Inter, Juventus e Milan), ao comando do ultra-humilhado Nápoles, no final da década de oitenta, do século XX.

Ao contrário de Messi, por exemplo, Maradona recusou viver do lado confortável da vida, e por isso, deixou Barcelona para triunfar em Nápoles, clube mediano do sul da Itália. 


Apesar do seu génio, da sua ousadia quase suicida, Maradona tinha a noção de equipa. A maneira como capitaneava os seus colegas da seleção azul celeste era de um general tão astuto quanto era valente o melhor dos seus guerrilheiros. A maneira sublime como guindou a sua Argentina à final do Mundial Itália 90 revela um líder perfeitamente conhecedor das forças e fraquezas dos seus e dos adversários. Eliminou o Brasile depois a anfitrião Itália até tombar perante um duvidoso penalty, assinalado a cinco minutos do final do jogo contra a RFA.



No campo ele era mais do que magia, arte ou vitórias. Ele era o orgulho de 40 milhões de argentinos que se sentiam vingados da guerra das Maldivas na maneira sublime, poética e irregular como Maradona derrotou Inglaterra no Mundial de 86, o jogo onde mago d futebol argentino marcou os dois golos mais célebres da sua carreira: o mais polémico - o da mão de Deus - e o mais brilhante, aquele em que finta meia equipa inglesa e afunda o porta-aviões do Reino Unido.


Maradona sabia o que valia, mas também de onde vinha. Costumava dizer que nascera num bairro privado... privado de água, privado de luz, privado de telefone.Talvez por isso, em muitas ocasiões o seu combustível fosse a raiva. Um raiva que não o deixava ser Beethoven, como Pelé, mas que lhe permitia ser ser, ao mesmo tempo, Keith Rchards, Ron Wood e Bono.


Vê-lo jogar teve para mim a transcendência mística do concerto dos Queen em Wembley. Felizmente durou ma década e não apenas mas horas.  


Diego, aquele D10S imperfeito e sedutor que nos drogou para sempre com a magia do futebol, recolheu definitivamente ao Olimpo.

Certo dia, a sua compatriota Mercedes Sosa cantou com paixão "gracias à la vida qe nos ha dado tanto". Hoje e sempre, todos aqueles que amam o futebol fazem uma pequena divagação literária ao verso de Mercedes e inscrevem na lápide de Maradona

"Gracias a DIEGO, que nos ha dado tanto!"

 

Gabriel Vilas Boas

domingo, 22 de novembro de 2020

UM SENHOR RICO E O SEU ESCRAVO

   

 Há quase dois mil anos o Vesúvio cuspiu revolta em forma de lava e as suas cinzas incandescentes congelaram Pompeia para a eternidade. 

  Ao longo dos séculos, arqueólogos e historiadores foram destapando, pacientemente, as histórias que o vulcão cobrira de cinza e morte. Recentemente, vieram à luz do dia os restos mortais de dois homens, deitados lado a lado, iguais na morte, desiguais em vida. 

     As investigações permitiram concluir que um deles, o mais velho, seria um senhor rico e com status, pois os vestígios de um manto de lã foram encontrados junto ao seu pescoço; já o outro, mais jovem, com idade provável entre os 18 e os 23 anos, seria um escravo, dado que as vértebras esmagadas indiciavam trabalho braçal. 


  Olho novamente a fotografia do extraordinário achado arqueológico e não deixo de pensar como a natureza, de tempos a tempos, repreende o Homem pelas distinções arbitrárias e abusivas que cria entre si.

     Não é apenas a morte que nos iguala e nos coloca no nosso lugar. Também a Natureza é uma lição silenciosa sobre a maneira como agimos entre pares. O modo como a consumimos, como a desejamos sequestrar, fazê-la um condomínio privado do nosso egoísmo tonto, diz muito da falta de inteligência emocional de muitos de nós e da nossa incapacidade de nos situar no tempo, no espaço e na História.

     A lava dos vulcões ou as marés vivas que nos lambem as casas plantadas sobre as dunas são importantes lições que teimamos em ignorar. A Natureza detesta que lhe pisem os calos, por isso sacode, cada vez com mais frequência, todas as tentativas parolas de escravização humana. Tal como aconteceu em Pompeia, se continuarmos a desafiar as suas leis, em breve seremos apenas material arqueológico.

GAVB

domingo, 15 de novembro de 2020

ELA NÃO PODE ESTAR BOA DA CABEÇA!


 Cláudia Lopes, jornalista da TVI, disse numa entrevista que a pessoa mais importante da sua vida é o marido e só depois o filho.

Ciente ou não da polémica que essa afirmação iria causar, explicitou o seu raciocínio: « Há aqui uma razão muito simples que é: tu não podes gostar mais do teu filho do que de quem te ajuda a criá-lo, porque isto de criar uma criança não é tarefa nada fácil e, segundo ponto, acho que o meu filho é uma criança mais feliz se o pai e a mãe forem felizes».

Como seria de esperar, Cláudia Lopes foi trucidada. 

"Os meus filhos sempre em primeiro lugar. Que mulher é esta?" ou "Não pode estar bem da cabeça. Marido não é família, não tem o nosso sangue. Filho é o nosso sangue, os nossos ossos, o nosso coração a bater constantemente a cada segundo que respiramos. Talvez esta pessoa mude de ideias quando o marido se lembrar de a trair e trocar por outra".

Cláudia Lopes manifestou algum sentimento negativo? Disse odiar alguém? Não, ela apenas hierarquizou os seus sentimentos. E tem todo o direito a isso. E tem o direito a não ser vilipendiada. 

Quem somos nós para definir e hierarquizar os sentimentos dos outros? É completamente desnecessário contra-argumentar, mas todos conhecemos inúmeros exemplos de filhos que abandonam os pais em hospitais ou lares, que não os visitam durante décadas ou apenas se interessam pelo seu dinheiro ou bens, de uma maneira despudorada. São também vários os exemplos de casais que se amam até à morte com uma ternura comovedora. 

O que me indigna nestes comentários é que eles são uma espécie de estética do sentimento e quem não se encaixe nela é insultado, perseguido, ridicularizado. 
Como seriam estas mulheres se os seus maridos lhes declarassem que as amam em primeiro lugar e só depois aos filhos? Também lhes diriam que estavam maluquinhos? Que eram tolos, pois o mais certos era traí-los daí a uns dias? 

Amar não é uma competição. Ama-se o marido, os filhos, os pais, os amigos de diferentes modos. Não temos de hierarquizar esses amores, como se eles competissem num qualquer campeonato do sentimento.

E antes de tudo é um abuso, um insulto querer passar um atestado de bom ou mau comportamento aos sentimentos dos outros; dizer aos outros como devem hierarquizar os seus sentimentos, como se eles não tivessem cabeça para pensar e o seu coração tivesse sido produzido numa qualquer fábrica da estética do amor, de um regime nazi.

GAVB