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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

ALGUMA VEZ TE MENTI?

 

Conhecemo-nos há muitos anos na festa do Avante metidos numa tenda como as cartomantes a autografar romances e a comer a poeira internacionalista da Ajuda. 
Lia-te desde a adolescência. Recordo-me da Seara de Vento com a capa do pintor Vespeira, de encontrar alguns dos teus poemas na antologia que Jorge de Sena fez das líricas portuguesas. 
Encontrámo-nos no pó. Gostei do teu sorriso. Ficámos amigos. 

Jantávamos em tabernas do Bairro Alto e em restaurantes chineses, iluminavas o shop-suey com os teus olhinhos divertidos, passeávamos noite fora pela Praça das Flores e às quatro, cinco, seis sete da manhã deixava-te no Cais do Sodré porque nunca consentiste que te levasse ao Seixal, e eu ficava a ver-te afastar de boné de guarda-redes na cabeça na direção do primeiro barco ou do último tasco, onde os travestis de voz subitamente grossa escondiam a sementeira da barba sob um reforço de cremes. 

Tu falavas e eu ouvia. Às vezes abria a boca para perguntar
- Tens escrito?
tu respondias depressa de mais
-Claro que sim

e eu sabia que não era verdade, que não trabalhavas, que talvez de tempos a tempos te sentasses à mesa em Santiago, diante do papel, mas havia qualquer coisa, não sei bem o quê, que te impedia de escrever, uma amargura que o pudor não deixava revelar, a dor de não te darem a importância e o lugar que eram os teus, o reconhecimento que neste país de oportunidades e de modas ofereciam a outros que não tinham o talento de começar uma história com a frase soberba Antigamente o largo era o centro do mundo, oito palavras sábias e mágicas que valem centenas de páginas que para aí se publicam.
De maneira que quando chegava a Feira do Livro, postava-me junto à barraquinha do teu editor, arengava às pessoas para comprarem os teus livros, agarrava-as pelo braço, mostrava-lhes o Cerromaior, mostrava-lhes a Aldeia Nova no tom dos vendedores de xarope para o cancro da Feira da Ladra, e ao fim do dia descíamos o parque, eu sempre a gritar

- Uma tarde estava eu na Praça da Liberdade chega um cavalheiro à minha beira e diz. Você está medalhado. Medalhado eu que não pratico ciclismo atletismo ou alpinismo? Medalhado sim porque com os romances do Manuel você tirou a bicha do corpo daquela criança, aquela maldita que a roía

e tu a rires ao meu lado até o crepúsculo se fechar sobre nós como uma redoma em cima de dois santinhos de barro, cada qual com o seu cálice de ginja num balcão dos Restauradores que é onde os santos se abastecem para a travessia da noite. De cotovelos no tampo de pau cheio de riscos e de auréolas roxas de copos de vinho perguntava-te
- Tens escrito?
e tu
- Claro que sim
e eu
- A sério?
e tu de pálpebras apertadas muito convicto
- Alguma vez te menti?

Parece que esta semana houve imensa gente a visitar-te. Eu não. Primeiro porque seria de mau tom perguntar se tens escrito diante de uma data de estranhos. E segundo porque fiquei perto do telefone à espera de ouvir a tua voz do outro lado a convidar-me para o nascer do sol na Ribeira, sobre as chávenas de cacau da madrugada.
Ainda aqui estou ouviste? E mesmo que me garantam que te levaram dentro de uma caixa para Santiago não saio do pé do aparelho já que sei (foi sempre assim) que daqui a nada vais chamar-me.

António Lobo Antunes 

* (conto dedicado à memória de Manuel da Fonseca)


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