Olhou-me com um ar triste mas compreensivo com a minha
ignorância, antes disparar aquela frase que me gelou a consciência: «Sabes lá
tu o que é viver numa cadeira de rodas!»
De facto, não sabia. Devolvi-lhe um sorriso envergonhado,
sabendo que não encontraria nenhuma resposta, nenhuma expressão que me
satisfizesse. Vim para casa decidido a descobrir aquele inferno. Seria uma
simulação (e logo aí um logro psicológico), mas estava determinado a viver a
experiência com o máximo de seriedade.
Uma semana numa cadeira de rodas, sem ajudas, sem truques, sem concessões. Como seria?
No domingo há noite fui à arrecadação buscar a cadeira de rodas que o meu avô usar e um par de muletas, que eu próprio já tinha precisado. A aventura começava no dia seguinte.
No domingo há noite fui à arrecadação buscar a cadeira de rodas que o meu avô usar e um par de muletas, que eu próprio já tinha precisado. A aventura começava no dia seguinte.
Logo ao acordar a primeira dificuldade: sair da cama para a cadeira até à casa de banho. Demorei o dobro do tempo a fazer a necessária higiene e a vestir-me. Preparei o meu pequeno-almoço com dificuldade, usando o fogão, porque o micro-ondas ficara numa prateleira superior. De cadeira de rodas até ao elevador e depois até ao carro. Com ajuda das muletas segurei-me e lá consegui atirar a cadeira para a mala. 30 minutos de atraso.
Cheguei ao trabalho. Tive problemas para estacionar perto, mas consegui atirar-me para fora carro, arrastar-me de muletas até à mala e puxar a cadeira de rodas para a montar. Algumas pessoas conhecidas olhavam-me surpreendidas, mas nenhuma se decidiu pela ajuda. Meio suado, meio cansado, dei aos braços. E que força era preciso fazer! Ao fim de vinte metros já estava exausto. Tive de fazer mais cento e cinquenta...
Quando cheguei à porta do emprego, lembrei-me finalmente que a entrada se fazia por um passeio. Não era alto. Consegui ultrapassá-lo com algum esforço, mas depois só havia escadas. Esperei cinco minutos até que uma pessoa apareceu. Não me ofereceu ajuda. Olhou-me com surpresa, mas seguiu. Dois minutos depois, apareceram outras duas. Perdi a vergonha e pedi que me ajudassem a descer aquelas escadas. Ajudaram-me e seguiram. Eu também.
Entrei finalmente na porta do prédio onde ficava o escritório. Só então me lembrei que tinha deixado as muletas no carro e temi… mesmo assim desistir estava fora de hipótese. Entrei no elevador e subi ao terceiro andar. Uma hora atrasado.
O meu estado servia de justificação, mas acrescentei alguns pormenores, para que todos acreditassem na minha dependência da cadeira de rodas. Alguns lamentaram, outros quiseram saber alguns pormenores do acidente e das minhas esperanças de recuperação, mas a caridade durou vinte minutos.
Procurei um restaurante perto, mas todos os que ficavam perto não tinham estacionamentos disponíveis para deficientes. Almocei mais longe, paguei mais caro, comi pior. No regresso, o mesmo problema com as escadas. Senti a apreensão de uma colega que se oferecera para me ajudar. Ia tornar-me num problema para todos. Que chatice! Não a minha condição, mas o incómodo que causava a toda a gente.
A tarde decorreu sem problemas, mas só pensava como seria o
regresso a casa. Tinha de fazer compras, no supermercado, onde estacionamento
era caótico.
Amargurado e cheio de raiva, resolvi fazer-me notado em frente ao obstáculo. Cinco minutos depois, uma menina de dez anos percebeu a minha impotência e pediu ajuda a uns colegas mais velhos. Tinham quinze anos e já alguma força. Com dificuldade, lá me auxiliaram. Fizeram questão de me acompanhar até ao carro, certificando-se que a boa ação do dia ficava completa.
Cheguei já de noite ao supermercado, onde estacionei no lugar que me estava reservado e fui às compras. Sai de lá com metade dos produtos pretendidos, pois muitos estavam nas prateleiras superiores e não havia empregados entre os corredores. Eram só três na loja inteira e estavam ocupados nas caixas. De cadeira de rodas empurrei o carrinho de compras das compras até ao automóvel. Entretanto começara a chover enquanto enchia o banco de trás de sacos de compras. Ninguém se aproximou para me ajudar, abrir um guarda-chuva ou meter a cadeira na mala.
Estava cansadíssimo, irritado com a falta de ajuda e triste. Cheguei à garagem e só então me lembrei que tinha de transportar todas aquelas compras até casa. Fiz cinco viagens de elevador e demorei 25 minutos.
Com calma e persistência fiz o jantar, arrumei a
cozinha e pus roupa a lavar. Os braços doíam-me
imenso assim como todo o corpo. Não tinha cabeça para reler o relatório que
tinha ficado de apresentar no dia seguinte. Ia assim mesmo, sem revisão alguma.
Não me apetecia ver televisão, mas não deixei de pensar em todos aqueles que
cruzaram comigo, perceberam a minha situação e jamais cogitaram qualquer ajuda.
Não era maldade, antes um descaso absoluto.
Só queria dormir. Lavei-me com muita dificuldade, despi-me e atirei-me para a cama.
Mentalmente revi o dia. Começava a perceber a amargura daquele comentário desdenhoso do meu amigo paraplégico, no entanto a minha experiência ainda estava no começo. Faltavam ainda seis dias. Nunca uma semana se me apresentou tão longa, tão ameaçadora e angustiante, mas desistir estava fora de questão!
(Continua)
GAVB
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